Esfera privada

Leia decisão da Argentina sobre usuário de droga

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31 de agosto de 2009, 11h48

A liberdade individual, desde que não cause danos a outras pessoas, está no cerne da decisão dos sete ministros da Suprema Corte Argentina que declararam inconstitucional o parágrafo 2º do artigo 14 da Lei 23.737 daquele país. O dispositivo punia criminalmente pessoas que fossem flagradas com quantidades pequenas de drogas, supostamente para consumo pessoal.

Os ministros entenderam, com base em tratados internacionais, que o direito a privacidade impede que as pessoas sejam objetos de ingerência arbitrária ou abusiva na esfera privada. “O artigo 19 da Constituição Nacional constitui uma fronteira que protege a liberdade pessoal frente a qualquer intervenção alheia, inclusive a estatal. Não se trata apenas de respeito às ações realizadas na esfera privada, senão a de reconhecimento de um âmbito em que cada indivíduo adulto é soberano para tomar decisões livres sobre o estilo de vida que deseja”, disse o presidente da corte argentina, ministro Ricardo Lorenzetti.

Os ministros também levaram em consideração que, principalmente no caso de pessoas que se tornam viciadas em drogas, as vítimas mais visíveis são os próprios consumidores e suas famílias. “Tem sentido sustentar que uma resposta punitiva do Estado ao consumidor se traduz em uma revitimização”, entenderam.

Os ministros deixam claro que a decisão da Suprema Corte não implica a legalização da droga. “Não está a declarar isso expressamente, pois este pronunciamento certamente vai ter repercussão social. Por isso, deve-se informar através de uma linguagem democrática e que pode ser entendida por todos, em especial pelos jovens, que são, em muitos casos, protagonistas dos problemas relacionados às drogas”, disseram. A decisão foi publicada no site da Suprema Corte argentina.

Os ministros também decidiram que os poderes públicos devem assegurar uma política contra o tráfico de drogas e adotar medidas preventivas de saúde, como informações e campanhas educativas, voltadas aos grupos mais vulneráveis.

Questões de política pública criminal não ficaram de fora dos votos dos ministros. Um dos criminalistas mais importantes da América Latina, o ministro Raúl Zaffaroni, disse em seu voto que, embora não seja função do controle de constitucionalidade julgar política criminal, deveria ser quando há contradição evidente entre a norma e os efeitos dela. Para o ministro, a decisão da corte não prejudica e até favorece a política criminal de repressão ao tráfico.

O ministro afirmou que a lei questionada tem sido um instrumento de punição que quase nunca se traduz em uma pena efetiva. Também entende que, hoje, há um grande gasto de esforço, dinheiro e tempo da polícia, que acarretam “procedimentos inúteis do ponto de vista de política criminal”. Para ele, prova disso são os quase 20 anos desde que a Suprema Corte mudou o entendimento sobre o assunto. Em 1986, no caso conhecido como Bazterrica, a corte havia declarado a inconstitucionalidade do artigo 61 da Lei 20.771, que tinha conteúdo similar ao questionado desta vez.

A ministra Carmen Argibay explicou que, após o caso, várias outras decisões foram no sentido de que a Constituição argentina resguardava, por exemplo, carregar no casaco pouco mais de 50 gramas de maconha ou guardar 0,66 gramas da mesma droga no armário de casa. Mas, afirmou a ministra, já houve decisão no sentido contrário, como no caso em que o acusado foi flagrado fumando maconha em local público.

Anos depois, em 1990, no caso Montalvo, os ministros mudaram o entendimento. Foi com base neste último caso que as instâncias inferiores, no caso apreciado agora pela Suprema Corte, decidiram em relação às pessoas que foram flagradas com cigarros de maconha e condenadas em primeiro grau na cidade de Rosário. A sentença entendeu que se tratava de um delito de “perigo abstrato” e que a conduta podia alcançar outras pessoas, por fazer parte da cadeia do tráfico. A defesa recorreu e o caso chegou à Suprema Corte depois de três anos em que os jovens foram flagrados pela polícia.

Mais do que as intenções dos juízes ao decidir determinado caso, o que deve ser levado em consideração são as regras que serviram de base para a decisão, explicou a ministra Carmen Argibay. No caso Montalvo, disse, a maioria dos ministros entendeu que a conduta do acusado tinha possibilidade de causar dano a terceiros.

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No Brasil, o porte de drogas, mesmo que para consumo próprio, é crime. O juiz de Direito Rubens Casara, do Rio de Janeiro, explicou a diferença no que se refere ao usuário de drogas entre as leis argentina e brasileira. No país vizinho, havia a imposição de pena restritiva de liberdade. No Brasil, ser pego com drogas para consumo próprio é punido com penas restritivas de direitos.

Casara explica que, no Brasil, não se trabalha com a questão da quantidade de droga apreendida para definir se a pessoa é traficante ou usuária. “Muitas vezes, a pessoa é acusada por tráfico, mas é uso”, disse.

O juiz admite a possibilidade de casos semelhantes chegarem ao Supremo Tribunal Federal, embora não faça qualquer previsão sobre o resultado. “A principiologia que serviu de base normativa no caso julgado pela Suprema Corte Argentina é a mesma aplicável ao Brasil”, arrisca, no entanto. Ele disse que já houve decisões nesse sentido no Rio e em São Paulo. “Eu mesmo já julguei nesse sentido.”

Clique aqui para ler a decisão da Suprema Corte da Argentina em espanhol.

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