Fins e meios

A relatividade das provas ilícitas e processualmente ilegítimas

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

28 de novembro de 2008, 23h00

A questão da prova ilícita é uma das mais apaixonantes no âmbito do processo penal. A doutrina estrangeira é rica sobre o assunto, sendo certo que cada país possui normas próprias e muito parecidas entre si.

O tema no Brasil sofreu profundas modificações jurisprudenciais e doutrinárias no decorrer dos anos, mormente quando de alteração da composição do Supremo Tribunal Federal, que é quem dá a última palavra sobre o assunto, ou seja, se determinada prova deve ou não ser considerada ilícita.

Não pretendemos fazer uma abordagem histórica e comparativa sobre o assunto, que demandaria um livro. Vamos procurar enfrentar o tema de acordo com a nova legislação e pautados principalmente na Constituição Federal.

Limites à produção probatória

O direito à prova, como qualquer outro, não é absoluto. É certo que a ordem constitucional e legal sempre deve ser observada, mormente quando da postulação em Juízo, um dos momentos culminantes do Estado Democrático de Direito.

A busca da verdade real é o objetivo principal do processo penal. No entanto, há limites que não podem ser ultrapassados. São exemplos desses limites: a proibição da leitura de documento ou a exibição de objeto que não tiver sido juntado aos autos com a antecedência mínima de três dias úteis, dando-se ciência à outra parte (artigo 479, “caput”, do CPP); a proibição de depor a determinadas pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar sigilo (artigo 207, CPP) etc.

Embora as partes (acusação e defesa) possuam o direito constitucional à produção da prova, eles devem conviver harmonicamente com outros direitos também de ordem constitucional, de modo que nenhum deles seja irregularmente exercido e venha a colocar em risco a ordem pública e direitos de terceiros. Destarte, havendo dois direitos de cânone constitucional conflitantes, deverá preponderar aquele de maior valia e que não seja pernicioso à sociedade.

O processo, como o meio pelo qual o Estado exerce a jurisdição, tem de ser pautado pela estrita legalidade. Essa legalidade nada mais é do que a observância aos mandamentos constitucionais e legais que regem tanto o processo civil quanto o penal. É uma garantia das partes, que vêem no Estado o mecanismo para a solução de seus conflitos de interesses. Assim, há necessidade da perfeição do ato judicial para que ele possa produzir seus efeitos, sob pena de ser declarado inválido ou ineficaz.

Provas ilícitas

Para o exato entendimento do assunto, há necessidade de ser feita diferenciação entre a prova ilícita e a processualmente ilegítima.

Os professores Scarance Fernandes, Gomes Filho e Ada Grinover, de forma extremamente clara, assim definiram prova ilícita:

“Por prova ilícita, em sentido estrito, indicaremos, portanto, a prova colhida infringindo-se normas ou princípios colocados pela Constituição e pelas leis, freqüentemente para a proteção das liberdades públicas e dos direitos da personalidade e daquela sua manifestação que é o direito à intimidade. Constituem, assim, provas ilícitas as obtidas com violação do domicílio (Artigo 5º, inciso XI, CF) ou das comunicações (artigo 5º, inciso XII, CF); as conseguidas mediante tortura ou maus tratos (artigo 5º, inciso III, CF); as colhidas com infringência à intimidade (artigo 5º, inciso X, CF), etc” (conforme “As Nulidades do Processo Penal”, p. 109).

Diz, sobre o assunto, Mirabete, em “Código de Processo Penal Interpretado”, p. 218:

“Pode-se afirmar assim que são totalmente inadmissíveis no processo civil e penal tanto as provas ilegítimas, proibidas pelas normas de direito processual penal, quanto as ilícitas, obtidas com violação das normas de direito material”.

Dessa forma, se a prova violar norma de direito processual será considerada processualmente ilegítima; violando norma ou princípio de direito material, notadamente os contidos na Constituição Federal para a proteção das liberdades públicas, a prova será considerada ilícita.

As normas de direito processual já contemplam dispositivos para excluir do processo as provas que afrontem as regras criadas para regulamentar a sua obtenção e produção. A sanção para o seu descumprimento já se encontra descrita na própria norma processual, que poderá ser, pelo menos em regra, a declaração ou decretação da nulidade da prova. Assim, a transgressão da norma proibitiva ocorrerá no momento da produção probatória no processo.

Por outro lado, as provas ilícitas infringem normas ou princípios de direito material, sobretudo de direito constitucional, ensejando infração de Direito penal, civil ou administrativo. Consubstanciam-se em afronta às liberdades públicas protegidas pela Constituição Federal, como quando a prova é colhida mediante o emprego de tortura, com indevida violação do domicílio, do sigilo das conversações telefônicas, da correspondência, da intimidade etc. Havendo violação dessas normas ou princípios, o direito material estabelece sanções específicas, inclusive de índole penal. Nesse caso, a transgressão ocorre no momento da colheita da prova, antes ou concomitante ao processo, mas externamente a este (conforme diz Luiz Francisco Torquato Avolio, em “Provas Ilícitas, Interpretações Telefônicas e Gravações Clandestinas”, p. 44-45). A sanção processual para a prova ilícita será sua inadmissibilidade, ou seja, não poderá ser juntada aos autos.


O artigo 157, “caput”, do Código de Processo Penal, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei 11.690, de 9 de junho de 2008, define a prova ilícita como a obtida em violação a normas constitucionais ou legais.

Salientamos, contudo, que não é a violação a qualquer norma ou princípio constitucional que importará ilicitude da prova, mas apenas naqueles casos em que houver desrespeito a normas ou princípios de direito material relacionados com a proteção das liberdades públicas.

Do mesmo modo, não será a violação a qualquer norma legal que ocasionará a ilicitude da prova. A violação na obtenção da prova deverá caracterizar lesão a direito material e configurar infração de Direito penal, civil ou administrativo. Com efeito, a violação a norma de natureza processual não levará à ilicitude da prova, mas à sua nulidade.

Entender que a violação a qualquer norma legal resultaria em sua inadmissibilidade processual levaria à inexistência de nulidade, já que toda e qualquer violação a norma legal caracterizaria ilicitude probatória. Deixaria, portanto, de existir nulidade processual e haveria apenas ilicitude, o que não nos parece razoável e muito menos de ser essa a intenção da lei.

Todavia, para efeito de invalidade, pouco importa se a violação é de ordem material ou processual. Dizem Grinover, Scarance Fernandes e Gomes Filho, em “As Nulidades no Processo Penal”, p.113:

“… ao prescrever expressamente a inadmissibilidade processual das provas ilícitas, a Constituição brasileira considera a prova materialmente ilícita também processualmente ilegítima, estabelecendo desde logo uma sanção processual (a inadmissibilidade) para a ilicitude material”.

Assim, sendo a prova considerada ilícita, também será processualmente ilegítima e não poderá ser empregada no processo. No entanto, a recíproca não é verdadeira. A prova processualmente ilegítima nem sempre será considerada ilícita, exceto quando a nulidade também caracterizar violação a norma de direito constitucional, relacionada à proteção das liberdades públicas, bem como violação a norma legal, que implique infração a direito material.

Visando a dar efetividade ao mandamento constitucional que proíbe o emprego processual da prova ilícita, o parágrafo 3º do artigo 157 do Código de Processo Penal, com a sua nova redação, determina sua inutilização. Assim, preclusa a decisão de desentranhamento da prova considerada ilícita, o juiz determinará sua destruição, sendo facultado às partes acompanhar o incidente. É certo, também, que, embora a norma não o diga expressamente, mesmo que tenha sido indeferida a juntada aos autos da prova considerada inadmissível, o juiz deverá determinar sua destruição.

Contudo, a determinação da inutilização da prova poderá acarretar sérios problemas processuais. Isso porque, dependendo do meio empregado para sua obtenção, ela será considerada objeto material de um delito. Nesse caso, somente poderá ser destruída após a elaboração do laudo pericial e quando não mais interessar ao processo que apura o crime decorrente de sua obtenção. Além disso, essa prova, observado o princípio da proporcionalidade, também poderá ser empregada para demonstrar a inocência do acusado e, para os que entendem possível, provar a autoria ou materialidade de um delito.

Com efeito, o Juiz de Direito deverá ser muito cauteloso ao determinar a destruição da prova considerada ilícita.

Provas ilícitas por derivação

Provas ilícitas por derivação são aquelas material e processualmente válidas, mas angariadas a partir de uma prova ilicitamente obtida. Ou seja, são provas que, por si só, são admissíveis processualmente, mas possuem fonte ilícita, que as viciam.

A jurisprudência dominante não admite a prova derivada da ilícita com fundamento na teoria adotada pela Suprema Corte norte-americana, que a denominou fruits of the poisonous tree (frutos da árvore envenenada). De acordo com essa teoria, o defeito da árvore transmite-se a seus frutos. Assim, se a árvore está envenenada, seus frutos também estarão. Portanto, se a prova foi obtida por meio ilícito, todas as demais provas dela decorrentes também são ilícitas por derivação.

A partir da decisão proferida no caso “Silverthorne Lumber Co. v. United States (251 US 385; 40 S. Ct. 182; 64 L. Ed. 319), em 1920, as cortes americanas passaram a não aceitar uma prova obtida através de práticas ilícitas, visando, com isso, desencorajar aqueles que pretendessem obter provas utilizando-se de métodos ilegais.

Em suma, de nada adiantaria proibir a admissão processual da prova ilícita e permitir a juntada e análise judicial das que lhes são decorrentes.

A Lei 11.690, de 9 de junho de 2.008, inseriu no Código de Processo Penal dispositivo sobre o tema, até então inexistente em nosso ordenamento jurídico. O artigo 157, parágrafo 1º, do Código de Processo Penal, com a sua nova redação, dispõe que são inadmissíveis no processo as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.


Com efeito, a própria norma excepciona duas hipóteses em que será possível a admissão da prova derivada da ilícita:

1ª) quando não evidenciado o nexo de causalidade entre a prova ilícita e a sua derivação. Nesse caso, não se trata de exceção propriamente dita, mas de inexistência da derivação. Isso porque, não havendo nexo de causalidade entre a prova ilícita e outra prova qualquer, está não será contaminada, uma vez que não decorrente da prova considerada ilícita;

2ª) quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. O parágrafo 2º do artigo 157 do Código de Processo Penal dispõe que é considerada fonte independente aquela que, por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova. Nesse caso, a fonte independente não possui qualquer relação com a prova considerada ilícita. Ela não deriva daquela, mas de investigação ou instrução criminal regulares. A fonte é capaz, de, por si só, usando de métodos regulares de obtenção de prova, chegar ao fato objeto da prova considerada ilícita. Nesse caso, a fonte independente fatalmente chegaria à mesma prova que se originou da ilícita, motivo pelo qual a lei não a macula, podendo ser aproveitada no processo. Note-se que se trata de uma presunção legal de licitude, já que a lei, dentro de um critério de razoabilidade, entende que seria possível chegar-se ao objeto da prova com o emprego dos trâmites típicos e de praxe próprios da investigação ou instrução criminal. A título de exemplo, suponhamos que por meio de uma interceptação telefônica ilegal seja apreendido carregamento de drogas. Como a apreensão decorreu de uma prova ilícita, ela é contaminada pela ilicitude probatória, bem como todas as demais provas dela decorrentes. No entanto, paralelamente à interceptação telefônica ilegal, corriam outras diligências investigatórias independentes e lícitas (oitiva de testemunhas, apreensão legal de documentos etc.), de modo que, por meio delas, fatalmente chegar-se-ia ao carregamento de drogas. Com efeito, como essas diligências são consideradas fontes independentes, a apreensão do carregamento de drogas não será contaminada pela ilicitude e poderá ser admitida no processo.

Tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça, em vários julgados, já haviam minimizado os efeitos da teoria dos frutos da árvore envenenada. Assim, de acordo com essas decisões, quando as provas ilícitas por derivação não tiverem sozinhas levado à decisão condenatória, ou seja, quando a condenação basear-se em outras provas independentes e lícitas, estas não serão contaminadas (Nesse sentido, ver: STF – HC 73101/SP. 2ª Turma. Relator Ministro Marco Aurélio. 26/03/1996. RHC 74807/MT. 2ª Turma. Relator Ministro Maurício Correa. 22/04/1997. HC 75892. 2ª Turma. Relator Ministro Marco Aurélio. STJ – RHC 7363/RJ. 6ª Turma. Relator Ministro Anselmo Santiago. 07/05/1998).

Por outro lado, continuamos a entender que as provas derivadas das ilícitas poderão ser empregadas no processo, desde que observado o princípio da proporcionalidade, uma vez que nenhuma liberdade pública tem caráter absoluto e poderá ceder quando houver conflito com outro direito de igual ou maior valia.

Ademais, se a prova derivada da ilícita observar a todos os princípios processuais contidos na Constituição (contraditório, ampla defesa e devido processo legal), seu emprego não poderá ser obstado por simples lei ordinária, que não pode contrariar a Lei Maior. Se é possível até o aproveitamento da prova ilícita, em casos excepcionais e graves, observado o princípio da proporcionalidade, certamente será admissível a derivação daquela.

Princípio da proporcionalidade

A proibição da utilização de prova obtida por meio ilícito é uma garantia do particular contra o Estado. Daí, partindo-se desse pressuposto, a prova obtida por meio ilícito só não poderia ser utilizada pelo Estado em desfavor do acusado.

Depois da vida, a liberdade é o bem jurídico mais importante que o homem possui. A liberdade é protegida pela Constituição Federal por meio de vários princípios. Podemos destacar, dentre outros, o do devido processo legal, que já engloba o do contraditório e da ampla defesa, o da presunção de inocência, o da legalidade etc. De tal forma, fica claro e evidente que esses princípios se sobrepõem à norma constitucional que proíbe a utilização de prova ilícita, caso esta seja usada em favor do acusado.

Embora não previsto expressamente no ordenamento jurídico brasileiro, há um princípio de índole constitucional, que decorre de uma interpretação sistemática de normas constitucionais, que permite o sacrifício de um direito ou garantia constitucional em prol de outro direito ou garantia constitucional. Aliás, o parágrafo 2º, do artigo 5º da Carta Magna, embora não acate expressamente o princípio da proporcionalidade, diz que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Ou seja, a existência de um direito ou garantia constitucional não exclui a aplicação de outros, acolhendo, implicitamente, a possibilidade de conflito entre valores constitucionais.


A doutrina brasileira, baseada no direito alemão, tem aceitado a aplicação do princípio (ou teoria) da proporcionalidade para solucionar questões envolvendo conflitos entre normas constitucionais. Preconiza o princípio da proporcionalidade a possibilidade do sacrifício de um direito ou garantia constitucional em prol de outro de igual ou superior valia, notadamente quando está em jogo interesse público relevante.

A propósito desse tema, a Corte Constitucional Alemã, em decisão proferida em 16/03/1971, devidamente traduzida, dispôs:

“O meio empregado pelo legislador deve ser adequado e exigível, para que seja atingido o fim almejado. O meio é adequado quando com o seu auxílio se pode promover o resultado desejado; ele é exigível quando o legislador não poderia ter escolhido outro igualmente eficaz, mas que seria um meio não-prejudicial ou portador de uma limitação menos perceptível a direito fundamental” (conforme BverfGE, 30, 316. Apud: Willis Santiago Guerra Filho, Ensaios de teoria constitucional, p. 75).

Sobre o assunto, o ensinamento de Grinover:

“A teoria, hoje dominante, da inadmissibilidade processual das provas ilícitas, colhidas com infringência a princípios ou normas constitucionais, vem, porém, atenuada por outra tendência, que visa corrigir possíveis distorções a que a rigidez da exclusão poderia levar em casos de excepcional gravidade. Trata-se do denominado verhaltnismassigkeit prinzip (sic), ou seja, de um critério de proporcionalidade, pelo qual os tribunais da então Alemanha Federal, sempre em caráter excepcional e em casos extremamente graves, têm admitido a prova ilícita, baseando-se no princípio do equilíbrio entre valores fundamentais contrastantes” (conforme Ada Pelegrini Grinover e outros, em “As nulidades no processo penal”, p. 134).

O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subpostulados: o da necessidade ou exigibilidade, o da adequação e o da proporcionalidade em sentido estrito. O meio a ser empregado será necessário quando não houver outro menos lesivo a direitos fundamentais. Será adequado quando com seu auxílio é possível a obtenção do resultado almejado. Por fim, com a ponderação dos valores em confronto e havendo adequação e exigibilidade dos meios a serem empregados, será possível o sacrifício de um direito ou garantia constitucional em prol de outro de igual ou superior valia.

Pelo princípio da proporcionalidade as normas constitucionais estão articuladas em um sistema. Há valores constitucionais que se sobrepõem a outros em matéria de importância. O direito à vida é o mais importante e, mesmo assim, pode ser sacrificado em casos expressamente previstos em lei, como ocorre com a legítima defesa, o estado de necessidade etc. Ocorrem situações em que um direito deverá ser sacrificado em prol de outro de igual ou superior valia, dada à relatividade dos direitos e garantias constitucionais.

De acordo com o princípio da proporcionalidade, havendo conflito entre valores constitucionais, serão eles sopesados para verificar qual deverá preponderar no caso concreto.

Destarte, em nosso ordenamento jurídico, nenhum direito ou garantia constitucional é absoluto. Assim, sempre será possível o sacrifício de um direito em prol de outro de igual ou superior valia, dada à relatividade dos direitos e garantias constitucionais.

Além desses argumentos jurídicos, outro motivo lógico é que não seria justo deixar alguém ser condenado por uma infração penal quando é possível demonstrar sua inocência através de uma prova obtida ilicitamente.

Porém, quando se trata de aplicar o princípio da proporcionalidade em favor da sociedade, ou seja, contra o acusado, a doutrina dominante se insurge, dizendo que os direitos e garantias individuais deste último têm de ser respeitados.

É pacífico que os direitos e garantias individuais elencados na Constituição Federal não são absolutos, encontrando seus limites nos demais direitos e garantias igualmente consagrados na Magna Marta (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas, segundo Alexandre de Moraes, em ”Direito Constitucional, p. 58).

A vedação da utilização da prova ilícita no processo é um direito de índole constitucional. Contudo, outros direitos e garantias individuais existem e tiveram origem no mesmo poder constituinte originário. Assim é que a Constituição também consagra o direito à vida, à segurança, à tranqüilidade, à intimidade, à saúde etc. Perguntamos: quais desses direitos são mais importantes? Será que o direito à intimidade de um perigoso seqüestrador homicida é mais valioso que o direito à vida, à saúde e à propriedade do seqüestrado? Será que o direito da sociedade a viver em paz é menos importante que o direito à intimidade de um seqüestrador ou de um traficante?


Interessante julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, anterior à Lei 9.296/96, que regulamentou a interceptação telefônica, bem demonstra a crescente orientação dos Tribunais acolhendo o princípio da proporcionalidade. Diz a ementa:

“Prova criminal – Interceptação Telefônica – Inviolabilidade do sigilo que não tem caráter absoluto – Aplicação do princípio da proporcionalidade – Hipótese em que a polícia tendo suspeita razoável sobre o envolvimento no comércio de drogas, obteve autorização judicial – Recurso provido. Havendo conflitância entre o direito à intimidade e o direito à prova (due process of law), deve prevalecer o que atenda ao interesse maior, vale dizer ao interesse da sociedade” (ApCrim nº 185.901-3 – Indaiatuba – 3ª Câmara Criminal – Relator Segurado Braz – 30/10/95 – v.u.).

No mesmo sentido seguiu um acórdão do Superior Tribunal de Justiça acatando o princípio da proporcionalidade, deixando claro que a inadmissibilidade das provas ilícitas no âmbito do processo penal não tem caráter absoluto:

“Constitucional e Processo Penal. Habeas Corpus. Escuta telefônica com ordem judicial. Réu condenado por formação de quadrilha armada, que se acha cumprindo pena em penitenciária, não tem como invocar direitos fundamentais próprios do homem livre para trancar ação penal (corrupção ativa) ou destruir gravação feita pela polícia. O inciso LVI do artigo 5º da Constituição, que fala ‘são inadmissíveis as provas obtidas por meio ilícito’, não tem conotação absoluta. Há sempre um substrato ético a orientar o exegeta na busca de valores maiores na construção da sociedade. A própria Constituição Federal Brasileira, que é dirigente e programática, oferece ao juiz, através da ‘atualização constitucional (verfassungsaktualisierung), base para o entendimento de que a cláusula constitucional invocada é relativa. A jurisprudência norte-americana, mencionada em precedente do Supremo Tribunal Federal, não é tranqüila. Sempre é invocável o princípio da ‘Razoabilidade’ (Reasonableness). O ‘princípio da exclusão das provas ilicitamente obtidas’ (Exclusionary Rule) também lá pede temperamentos. Ordem denegada” (Acórdão da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, publicado no DJU de 26.02.96, p. 4.084, rel. Adhemar Maciel, autos do HC nº 3982/RJ, v.u.).

Salienta Marco Antonio de Barros (em “Sigilo profissional. Reflexos da violação no âmbito das provas ilícitas”, Justitia, v. 175, p. 26), também entendendo pela relatividade das garantias constitucionais e sobre a possibilidade de aplicação da teoria da proporcionalidade, dependendo da análise do caso concreto:

“Destarte, a prudência recomendada ao juiz no âmbito do direito material se repete no direito processual. A ele compete, no enfoque do caso concreto, examinar o cabimento da aplicação da teoria da proporcionalidade ou razoabilidade para temperar o rigor da inadmissibilidade da prova ilícita, mesmo porque, pelo sistema constitucional vigente, não há falar-se em garantia absoluta, extremada e isenta de restrição decorrente do respeito que se deva a outras garantias de igual ou superior relevância”.

No sistema inglês, inclusive, a regra prevalente é a utilização de provas ilegalmente obtidas. Lá, tem-se entendido que seria temerária à administração da Justiça a não-utilização de provas ilegalmente obtidas, sob o fundamento de que o Tribunal deve verificar como os fatos criminosos ocorreram e não como a prova foi obtida pela polícia. Contudo, essas provas podem ser excluídas pelo juiz discricionariamente, não constituindo tal atitude uma regra geral (conforme Antonio Magalhães Gomes Filho, em “Direito à prova no processo penal”, p. 101).

É claro que aquela pessoa que obtiver uma prova de maneira ilícita deverá ser punida, caso a sua conduta seja criminosa. Uma coisa é a utilização dessa prova judicialmente, outra é a apuração da prática delitiva devido à sua obtenção.

Adotado o princípio da proporcionalidade, que sopesa valores constitucionais em conflito, torna-se perfeitamente possível a utilização de uma prova ilícita ou de sua derivação em casos excepcionais e graves, haja vista a relatividade das normas constitucionais e o fato de estas não poderem salvaguardar práticas ilícitas.

Atualmente, embora majoritária a jurisprudência repelindo a utilização de provas ilicitamente obtidas, forte corrente jurisprudencial começa a surgir acolhendo o princípio da proporcionalidade em casos excepcionais e graves, tanto em favor quanto em desfavor do acusado, uma vez que nenhuma norma constitucional tem caráter absoluto.

Embora a legislação ordinária tenha tratado da prova ilícita e de sua derivação, considerando-as inadmissíveis processualmente, o intérprete deve ter em mente que não existem direitos e garantias constitucionais absolutos.

Com efeito, o tema continuará sendo objeto de debates, até porque os princípios que regem a matéria são de índole constitucional e não será a legislação ordinária que irá solucionar questões que vêm sendo discutidas há diversos anos, mormente após a promulgação da Constituição Federal.

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  • Brave

    é promotor de Justiça em São Paulo, mestre em Direito das Relações Sociais e professor da PUC-SP, Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e da Academia da Polícia Militar do Barro Branco.

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