Presunção de culpa

Para o fisco, contribuinte é culpado até prova em contrário

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5 de junho de 2007, 0h00

Uma empresa varejista de São Paulo recebeu a visita de fiscal do ICMS exigindo a comprovação de pagamentos de determinadas compras, alegando que o fornecedor era “inidôneo”, pois seria uma empresa constituída por laranjas. Segundo o fiscal, o atacadista não estava pagando impostos e as notas seriam “frias”, razão pela qual o varejista seria multado e poderia até ser processado criminalmente.

O fiscal achou suspeitas as provas dos pagamentos, que eram duplicatas quitadas, parte das quais com cheques de terceiros. O comerciante recebe em sua loja cheques de clientes e para reduzir seus custos com a CPMF prefere cedê-los a seus credores, dentre os quais alguns fornecedores. Na opinião do fiscal isso é indício de sonegação.

Na semana passada, recebi um cheque em pagamento de uma consulta. O cliente era uma pessoa jurídica, para quem eu emiti uma fatura, tudo na forma da lei. Mas o cheque, que era ao portador, ficou no meu bolso. Usei-o para comprar algumas garrafas de vinho numa loja cujo dono é meu amigo que, aliás, emitiu o documento fiscal. Tudo legal, tudo “nos conformes”. Mas se eu fosse contribuinte do ICMS o fiscal veria aí uma suspeita de sonegação. Perante o fisco todos são culpados até prova em contrário.

Mas até pessoas físicas podem ser vítimas dessa síndrome das notas frias. Um pecuarista contratou ema empresa de prestação de serviços para fazer manutenção em sua fazenda, incluindo reconstrução de cercas, preparo de terra e plantio de gramíneas. A empresa existe há mais de dez anos e ao consultar o seu CNPJ verifica-se que está ativa. O pecuarista adotou, à época da contratação as cautelas de praxe, inclusive exigindo cópia de contrato social, certidões, embora a empresa fosse muito conhecida e conceituada na região.

Parte dos pagamentos foi feita em dinheiro, a pedido da empresa prestadora de serviços, pois os operários contratados não possuíam conta bancária e nem havia agência de banco próxima da fazenda, localizada em local distante. Anos depois o pecuarista foi multado, sob a alegação de que a empresa era “inexistente de fato”, apesar de regularmente inscrita em todas as repartições e até ter sido multa pelo Ministério do Trabalho, por manter seus empregados em condições insalubres de serviços. Segundo o fiscal federal, as notas eram frias, porque o pecuarista pagou parte delas em dinheiro e porque a empresa “não existe”.

Com essas presunções, que se transformam em verdadeira síndrome que ataca os fiscais, eles partem da premissa de que todos são culpados até prova em contrário.

Mas o fisco estadual criou um tal Sintegra, que é um mecanismo destinado a dar alguma segurança nas pesquisas. Assim, qualquer contribuinte deve, antes de fazer negócio com outro, verificar a regularidade de seu fornecedor.

Todavia, em todas as respostas às consultas feitas no sistema da Fazenda informa-se que as informações não valem como prova da efetiva existência de fato e de direito da empresa consultada, nem podem ser usadas contra os autos de infração. Ou seja: o Fisco não responde por seus atos e as inscrições que fornece não servem para nada e que todos se danem se por acaso confiarem nos registros oficiais.

Por tudo isso, os contribuintes que forem vítimas dessa maluquice toda, dessas presunções de culpa, enfim, dessa palhaçada onde só fiscais estão certos e todos os outros estão errados, devem procurar se defender, inclusive no Judiciário. Ora, o contribuinte, recebendo mercadorias acompanhadas de notas fiscais formalmente regulares emitidos por empresas que estejam inscritas na repartição competente, possui razões bastante sólidas para não duvidar da legalidade desses documentos.

Ninguém pode ser obrigado a fiscalizar seus fornecedores. O particular não pode assumir função do Estado. Mas a administração tem a obrigação de tornar públicas as diligências que faz, quando estas possam interessar a terceiros, nos termos dos princípios inseridos no artigo 37 da Constituição Federal.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, pela sua 16ª Câmara Civil, na Apelação Cível 175.883-2/9 da Comarca de Taubaté , em 14 de abril de 1992, decidiu que não se pode cobrar do adquirente o imposto que não tenha sido pago pelo vendedor, se a “inidoneidade” dos documentos por este emitidos não foi divulgada mediante publicação no Diário Oficial.

No mesmo sentido é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que, em decisão unânime de sua 2ª Turma, no Agravo Regimental 73.817-RJ, decidiu que o crédito do ICMS não depende de prova de que o fornecedor tenha pago o tributo, mas apenas de que estava regularmente inscrito na repartição e de que o negócio tenha sido realizado.

Há outras decisões no mesmo sentido, ou seja, segundo as quais não pode o adquirente de mercadorias ou serviços responder pelo tributo que não tenha sido pago pelo seu fornecedor ou vice-versa. Assim consta, por exemplo, do RE 183.644-SP do STJ, (Relator o Min. Milton Luiz Pereira) RE 196.581-MG (Rel. Min. Garcia Vieira), RE 176.270-MG (Rel. Min. Eliana Calmon) , RE 90.153-SP (Rel.Min. José Delgado), etc.

Os contribuintes são cada vez vítimas de ações equivocadas do fisco, tanto na área federal quanto estadual e municipal. Infelizmente, muitas entidades que possuem obrigação de defender as empresas acabam se omitindo em relação aos abusos do fisco ou adotando posições tímidas, até porque não raras vezes seus dirigentes são ou querem ser políticos, o que lhes turva a visão e os inibe nas suas ações.

Concluindo: ninguém pode dizer que existam notas frias ou documentos inidôneos simplesmente porque o fornecedor não pagou os tributos ou mesmo em razão de ser empresa formada por supostos “testas de ferro” ou “laranjas”. Fraude não se presume. E cabe ao fisco provar que o adquirente esteja ciente da irregularidade ou que estava em “conluio” com o emitente do documento. Fora disso, o que tempos são meras presunções, meras acusações sem fundamento. Em síntese, apenas uma disposição do fisco em achar que todos somos culpados…

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