Fundo de Garantia

Juiz autoriza saque do FGTS para doente de esclerose múltipla

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26 de dezembro de 2006, 14h24

Cada vez mais o saque do FGTS para tratamento de saúde tem sido permitido pelos tribunais do país, que ampliam as hipóteses previstas na Lei 8.036/90, que trata do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.

Seguindo essa corrente, o juiz federal Hamilton de Sá Dantas, da 21ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal, concedeu a uma portadora de esclerose múltipla a garantia do saque do dinheiro depositado em conta do FGTS.

“Forçoso é reconhecer que o elenco legal das enfermidades que autorizam o levantamento das importâncias depositadas na conta vinculada do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço não é taxativo. Enfermidades há que são igualmente graves e requerem cuidados médicos que demandam o dispêndio de quantias consideráveis para a realização do necessário tratamento”, afirma Hamilton de Sá Dantas, em sua decisão.

Anna Ferreira entrou com Mandado de Segurança na Justiça Federal depois que a Caixa Econômica Federal negou seu pedido de liberação do saldo na conta do FGTS. Anna argumentou que passou a ter de gastar muito com os altíssimos custos dos medicamentos e procedimentos terapêuticos para atenuar os sintomas da doença e impedir sua evolução. Diante da impossibilidade de custear o tratamento, pediu à Caixa a liberação de seu FGTS.

A Caixa Econômica, por sua vez, rejeitou o pedido alegando que a esclerose múltipla não se encontra no rol de doenças que possibilitam o saque. O juiz refutou a defesa da Caixa e acatou o pedido de Anna. “Está-se perante verdadeira lacuna no ordenamento jurídico que necessita de integração mediante a aplicação da analogia”, concluiu, confirmando a liminar que havia sido concedida a paciente.

Leia a íntegra da decisão

MANDADO DE SEGURANÇA

SENTENÇA Nº /2006

PROCESSO Nº 2006.34.00.018024-6

CLASSE 2100

IMPETRANTE: ANNA BEATRIZ VILLELA FERREIRA

ADVOGADOS: Drª. Maria Custódia Dias Raimundo e outro

IMPETRADO: GERENTE ADMINISTRATIVO DO FUNDO DE GARANTIA POR TEMPO DE SERVIÇO DA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL – CEF

SENTENÇA

Cuida-se de Mandado de Segurança impetrado por ANNA BEATRIZ VILLELA FERREIRA contra ato do GERENTE ADMINISTRATIVO DO FUNDO DE GARANTIA POR TEMPO DE SERVIÇO DA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, consubstanciado na negativa de seu pedido de liberação do saldo existente em sua conta vinculada do FGTS.

Esclarece a impetrante, inicialmente, que, em decorrência de ter sido acometida de esclerose múltipla, doença degenerativa do sistema nervoso central, reputada incurável pela Medicina, passou a arcar com os altíssimos custos dos medicamentos e procedimentos terapêuticos hodiernamente indicados para a atenuação dos sintomas e o impedimento da progressão da referida enfermidade. Entretanto, ao constatar a absoluta impossibilidade de custear o tratamento da moléstia sem prejuízo de sua própria subsistência, requereu à empresa pública a que se vincula a autoridade impetrada o levantamento do saldo de sua conta do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Tal pleito, entretanto, restou indeferido sob o argumento de que a esclerose múltipla não se encontra no rol de situações autorizadoras do saque do numerário depositado na conta vinculada, elencadas pela Lei n.º 8.036, de 11 de maio de 1990.

Insurgindo-se contra a negativa da autoridade indigitada coatora em liberar o montante existente em sua conta do FGTS, alega a impetrante que a relação constante do art. 20 da Lei n.º 8.036/90 não é taxativa, mas exemplificativa, podendo, assim, abarcar doenças nela não expressamente incluídas, de que faz exemplo a enfermidade de que padece. Invoca, nesse compasso, em favor de sua pretensão, os arts. 6º e 196, da Constituição da República, e 4º e 5º, do Decreto-lei n.º 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução ao Código Civil), asseverando, por fim, que a liberação dos valores depositados em conta vinculada ao FGTS para tratamento de saúde em face de enfermidades não listadas na Lei n.º 8.036/90 tem sido amplamente aceita pelos nossos tribunais, num evidente alargamento das hipóteses previstas para tanto (fl. 16).

Instruem a inicial os documentos de fls. 22/72.

Regularmente notificada, a autoridade indigitada coatora prestou suas informações às fls. 80/83, nas quais suscita, preliminarmente, a inadequação da via eleita. No mérito, sustenta inexistir direito líquido e certo a liberação do FGTS, uma vez que, ainda que se admita que o rol de doenças estabelecidas em lei seja meramente exemplicativo, a impetrante não logrou demonstrar a gravidade da enfermidade que lhe acomete, “a qual deve ser tão ruinosa quanto àquelas previstas em lei, ou situação econômica absolutamente adversa, que impeça o tratamento de doença menos gravosa, restando violentado o direito à saúde”.


O pedido de liminar foi deferido na decisão de fls. 87/91.

O Ministério Público Federal, em parecer acostado às fls. 101/105, opinou pela concessão da ordem.

É o relatório.

DECIDO.

Verifico que o objetivo da segurança era a concessão da ordem para assegurar a impetrante o direito a liberação dos valores existentes na conta vinculada do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS.

Embora a decisão liminar tenha satisfeito, em toda a sua plenitude, o pleito da Impetrante, não há que se falar em perda do objeto da ação, eis que somente a sentença de mérito tem o condão de torná-la definitiva, por produzir coisa julgada formal e material, até porque as medidas liminares, tendo caráter provisório, inclusive as satisfativas, mister se faz a prolação de sentença de mérito, por meio de concessão da segurança, a fim de tornar definitiva a liminar anteriormente deferida.

Esse entendimento, aliás, encontra-se sufragado nos seguintes julgados do egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª Região:

MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSUAL CIVIL. LIMINAR SATISFATIVA.

1. Em Mandado de Segurança é possível a concessão de liminares satisfativa.

2. Embora satisfativa, em face da provisoriedade de que se revestem, não obstante a prolação de sentença de mérito.

3. Apelo e remessa improvidos (AMS 1998.01.00.086479-4/DF, Rel. Des. Federal HILTON QUEIROZ).

PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. LIMINAR SATISFATIVA. PERDA DE OBJETO. INEXISTÊNCIA. TRIBUTÁRIO. MERCADORIA IMPORTADA. DESEMBARAÇO ADUANEIRO. GREVE. SERVIDOR PÚBLICO. DANO À TERCEIRO. IMPOSSIBILIDADE. SERVIÇO ESSENCIAL.

1. A liminar satisfativa não implica perda de objeto de mandado de segurança.

2. O direito constitucional de greve não pode ensejar paralisação de serviço essencial, mormente se disso resultar dano irreparável ao contribuinte.(AMS 2002.33.00.012455-0/BA, Rel. Des. Federal MÁRIO CÉSAR RIBEIRO)

Passo, então, ao exame do mérito.

Ingressou a impetrante com o presente Mandado de Segurança visando à liberação dos saldos constantes em sua conta vinculada ao FGTS, a fim de prover as despesas com o tratamento de grave enfermidade que lhe acometeu.

As hipóteses de levantamento do saldo existente na conta vinculada do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS estão previstas no art. 20 da Lei n.º 8.036, de 11 de maio de 1990, que, relativamente à controvérsia a ser dirimida na presente demanda, dispõe:

Art. 20. A conta vinculada do trabalhador no FGTS poderá ser movimentada nas seguintes situações:

(…)

XI – quando o trabalhador ou qualquer de seus dependentes for acometido de neoplasia maligna;

(…)

XIII – quando o trabalhador ou qualquer de seus dependentes for portador do vírus HIV;

XIV – quando o trabalhador ou qualquer de seus dependentes estiver em estágio terminal, em razão de doença grave, nos termos do regulamento.

Consoante se depreende da súmula fática da petição inicial, requer a impetrante a liberação do numerário depositado em sua conta vinculada do FGTS para custear seu tratamento médico de doença grave, denominada esclerose múltipla, que lhe foi negada pela autoridade impetrada sob o fundamento de que se trata de situação não contemplada no aludido dispositivo legal.

Sucede, entretanto, que o saque dos valores depositados em conta de FGTS para tratamento de saúde tem sido reiteradamente aceito pelos Tribunais pátrios, num alargamento das hipóteses positivadas no texto legal.

Infere-se dos documentos acostados aos autos que a impetrante foi acometida de doença de acentuada gravidade, merecendo destaque, no tocante a esse aspecto da lide, o atestado médico de fl. 45, que ora passo a transcrever:

(…) acompanho a Paciente Anna Beatriz Villela Ferreira desde dezembro/2000, quando iniciou sua patologia com quadro vertiginoso, distúrbio do equilíbrio e movimentos clônicos em mão direita. Foi investigada na ocasião e tratada e o diagnóstico suposto foi de CID-G35.

Em 27/05/2003 retornou com novo surto e o diagnóstico de CID G35 foi firmado, baseado em critérios clínicos e Laboratoriais.

Em 2004 apresentou mais 3 surtos, sendo que o último a deixou com seqüela mais importante de ataxia sensitiva e hemiparesia à direita, hiper-reflexia nos 4 membros, Babinski bilateral com retirada em tríplice flexão e tremor intencional em Membro Superior à direita.

Conclusão: Trata-se de CID G35 forma surto e remissão. Doença autoimune. Requer tratamento nos surtos e preventivo que é de auto custo.

Diante disso, forçoso é reconhecer que o elenco legal das enfermidades que autorizam o levantamento das importâncias depositadas na conta vinculada do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço não é taxativo. Enfermidades há que são igualmente graves e requerem cuidados médicos que demandam o dispêndio de quantias consideráveis para a realização do necessário tratamento. Assim, está-se perante verdadeira lacuna no ordenamento jurídico que necessita de integração mediante a aplicação da analogia, consoante orienta o brocardo latino de conformidade com o qual onde há a mesma razão, deve haver a mesma disposição legal.


Não se pode olvidar, de igual modo, em casos que tais, a finalidade social de toda norma jurídica, bem como o direito fundamental à saúde, como, aliás, já decidiu o egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª Região no julgamento da Apelação Cível n.º 1997.01.00.030233-6/MT, que ora trago à colação:

ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. FGTS. LEVANTAMENTO PARA CUSTEIO DE TRATAMENTO DE SAÚDE DO TRABALHADOR. POSSIBILIDADE. ARTS. 196 DA CF/88, 4º E 5º DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. LEGITIMIDADE PASSIVA EXCLUSIVA DA CEF. DESNECESSIDADE DE LITISCONSÓRCIO PASSIVO DA UNIÃO FEDERAL. ARTS. 4º E 7º DA LEI N.º 8.036/90.

(…)

III – A jurisprudência do TRF/1ª Região orientou-se no sentido da possibilidade de levantamento da conta vinculada do FGTS, mesmo sob a égide da Lei n.º 8.036/90, para fins de custeio de despesas com enfermidade grave do trabalhador, à luz do art. 196 da CF/88 e dos arts. 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo os quais a saúde é direito fundamental assegurado constitucionalmente, e, “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, devendo atender, na aplicação da lei, aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

IV – Apelação da CEF improvida.

V – Remessa oficial, tida como interposta, provida.

VI – Apelação da União Federal prejudicada (Rel. Des. Federal ASSUSETE MAGALHÃES).

Em igual sentido, já se pacificou a jurisprudência do colendo Superior Tribunal de Justiça. Veja, a título exemplificativo, o seguinte julgado:

FGTS. LEVANTAMENTO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO NO ROL CONSTANTE DO ART. 20 DA LEI 8.036/90. POSSIBILIDADE. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. MEDIDA PROVISÓRIA 2.164. ART. 29-C DA LEI 8.036/90.

1. Este colendo Superior Tribunal de Justiça pacificou entendimento no sentido de que a enumeração constante do art. 20 da Lei nº 8.036 não é taxativa, devendo ser interpretada em consonância com os princípios do ordenamento constitucional e aos fins sociais a que a lei se dirige.

2. Incidência da Súmula nº 83/STJ.

3. A questão dos honorários advocatícios, nos processos em que se discute Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, encontra-se pacificada nesta Corte no sentido de que a verba honorária só será excluída nos processos iniciados após 27.07.2001, data da edição da MP 2.164, hipótese ocorrente.

4. Recurso Especial parcialmente provido (REsp 606942, Rel. Min. CASTRO MEIRA).

Na mesma linha de coerência e concordância também aqui me sirvo dos fundamentos do parecer ministerial, que passam, igualmente, a integrar a presente motivação:

8. A controvérsia funda-se, em suma, na interpretação do art. 20 da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, em particular seus incisos XI, XIII e XIV, litteris:

‘Art. 20. A conta vinculada do trabalhador no FGTS poderá ser movimentada nas seguintes situações:

Art. 20. A conta vinculada do trabalhador no FGTS poderá ser movimentada nas seguintes situações:

XI – quando o trabalhador ou qualquer de seus dependentes for acometido de neoplasia maligna. (Incluído pela Lei nº 8.922, de 25.7.941994).

XIII – quando o trabalhador ou qualquer de seus dependentes for portador do vírus HIV; (Incluído pela MPV 2.164-41, de 24.08.2001).

XIV – quanto o trabalhador ou qualquer de seus dependentes estiver em estágio terminal, em razão de doença grave, nos termos do regulamento; (Incluído pela MPV 2.164-41, de 24.8.2001).

9. A autoridade apontada como coatora aduziu que não se encontrava prevista a moléstia que acometera a impetrante (Esclerose Múltipla) nos dispositivos legais pertinentes. Efetivamente, a lei só se refere ao trabalhador que sofre de neoplasia maligna ou porta o vírus HIV ou então ao que sofrendo de outra doença grave, encontre-se em estágio terminal, conforme regulamento. Como é evidente, nenhum do três casos expressos se aplica à situação da impetrante.

10. O silêncio da lei em relação a casos como o da ora impetrante, entretanto, não leva à conclusão de que não tenha direito ao levantamento dos valores de seu FGTS. A aplicação da lei, como ressabido, não se esgota na verificação da identidade entre o fato e a norma. É preciso, antes disso, definir o sentido e a extensão da norma, interpretar propriamente a lei.

11. Conforme lição de Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito), ao buscar o sentido da norma jurídica, ‘o jurista, esclarecido pela Hermenêutica, descobre, em Código, ou em um ato escrito, a frase implícita, mais diretamente aplicável a um fato que o texto expresso’. Toda interpretação de lei deve ser, e aí encampamos a lição do jurista brasileiro, teleológica, deve buscar o porquê da inserção daquela regra no ordenamento. Desse modo, poderemos extrair, das expressões do direito, ‘o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta’.

12. Necessário, portanto, que descubramos a ‘frase implícita’ dos dispositivos legais que sustentam a pretensão ora deduzida em juízo. Concluímos que, ao fazê-lo, não há como negar o direito da impetrante ao levantamento de seu Fundo de Garantia. A enumeração dos casos em que pode o trabalhador movimentar a sua conta vinculada objetiva, indubitavelmente, atender a hipóteses em que exista premente necessidade econômica do trabalhador, em especial por razões de saúde. Este é o sentido do art. 20 da Lei nº 8.036/1990.

13. A sustentar nossa posição está ainda a interpretação sistemática do dispositivo, conjugando-o com a proteção constitucional à saúde, como direito indisponível e garantido pelo Estado.

Revela-se abusivo, pois, ao saque aqui postulado e determinar o ato atacado na presente ação mandamental.

Diante do exposto e com base nas razões de fato e de direito aqui mencionadas, confirmando a liminar anteriormente deferida, CONCEDO A SEGURANÇA para declarar o direito do impetrante ao saque aqui postulado e determinar o levantamento do saldo da sua conta fundiária, para fins de custeio do tratamento da grave doença que lhe acomete (Esclerose Múltipla).

Sem honorários (Súmula n°s 512 do STF e 105 do STJ).

Custa já antecipadas.

Publique-se. Registre-se. Intime-se.

Brasília, 15 de dezembro de 2006.

HAMILTON DE SÁ DANTAS

JUIZ FEDERAL TITULAR DA 21ª VARA

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