Ações incrementadas

A Polícia Federal se firma no combate ao crime organizado

Autor

  • Rodrigo Carneiro Gomes

    é delegado da Polícia Federal pós-graduado em Processo Civil Segurança Pública e Defesa Social. Foi chefe do serviço de apoio disciplinar da Corregedoria-Geral e ex-assessor de ministro do STJ. É professor da Academia Nacional de Polícia lotado na Diretoria de Combate ao Crime Organizado e autor do livro O Crime Organizado na visão da Convenção de Palermo Ed. Del Rey

23 de dezembro de 2006, 6h00

Este texto sobre a Polícia Federal faz parte da Retrospectiva 2006, uma série de artigos em que especialistas analisam os principais fatos e eventos nas diferentes áreas do direito e esferas da Justiça ocorridos no ano que termina.

No ano de 2006, foram incrementadas ações policiais contra organizações criminosas de alto poder ofensivo, mas antes desconhecidas do Poder Público, devido à sua grande capacidade de infiltração no Estado, na sociedade e influências políticas.

O incremento das ações decorreu de inúmeros fatores, como mudança de mentalidade, estratégia policial, ações de inteligência, investimento tecnológico, aumento do efetivo policial, novas instalações para realização de perícias, treinamento e trabalhos em regime de força-tarefa com outros órgãos como Receita Federal, INSS, Controladoria-Geral da União e Ministério Público.

A resistência de alguns setores pode ser atribuída à falta de conhecimento da metodologia policial e um temor infundado em torno da figura do policial. Esse temor, contudo, tende a desaparecer porque uma das funções do profissional de segurança pública e de cidadania é se aproximar da sociedade e promover ações éticas e transparentes.

Prisão temporária

Cada vez mais é identificado em operações policiais o “modus operandi” das máfias: suborno, coação de testemunhas, destruição de provas, que reafirmam a necessidade de uma ressalva legal que não é presunção de culpa do investigado: a prisão temporária, instituída pela Lei 7.960/89, após a Constituição Federal, que garante a colheita probatória, preservando-se o corpo de delito.

Preservada a prova, torna-se dispensável a manutenção da prisão do investigado que, na ausência de elementos que justifiquem a prisão preventiva, pode aguardar o desfecho do inquérito policial e da ação penal no convívio de seus familiares.

Não há com isso desmoralização da Justiça ou da Polícia. O que acontece é que para a sociedade é transmitida uma falsa idéia de impunidade, do “país da pizza”. Ao contrário, a mensagem que deve ser assimilada é que o Estado respeita os direitos e garantias individuais e coletivas e não se orienta cegamente com fixação em prisão, mas no devido processo legal, ampla defesa e contraditório, já que a Constituição Federal estabeleceu o princípio da presunção da não-culpabilidade.

A Polícia Federal observou, desde cedo, que a apuração delitiva de autoria de um desempregado que rasura a Carteira de Trabalho e Previdência Social (para ganhar mais tempo de serviço para aposentadoria) e a autoria delitiva de uma organização criminosa (que corrompe, sonega tributos, mata, comanda e trafica) devem ser tratadas de forma diversa.

Inicialmente, a Polícia Federal promovia as investigações por ordem de antiguidade, de acordo com os recursos humanos e materiais disponíveis, isso num primeiro momento. Num segundo momento, que se pode chamar de uma segunda fase no conceito de racionalidade de investigação, constatou-se que a repressão local de um delito, sem atuação coordenada, não dava fim à criminalidade verificada, pois havia um movimento “poça d´água”.

Explico. Quando pisamos numa poça d´água (a poça representando a criminalidade local e a pisada representando a atuação do Estado), no local ocupado pela pegada (atuação do Estado) não existirá mais a poça (crime constatado e reprimido). A criminalidade, contudo, em torno da pegada, continuará existindo, pois os criminosos apenas se deslocaram fisicamente para fugir à ação do Estado.

Daí surgiu a diretiva operacional da Polícia Federal em atuar sempre de forma coordenada, em vários Estados, com efetivo proporcional às dimensões da área de ação, segurança da comunidade e do corpo policial, para impedir que a organização criminosa continue operando atividades ilícitas.

Com o advento da lei de combate ao crime organizado, (Lei 9.034/95), houve autorização legal para a seletividade e especialização (terceira fase) de ações da Polícia Federal, isto porque técnicas de investigação especiais como infiltração policial e ação controlada ou entrega vigiada são vocacionadas, inclusive por imperativo legal, prioritariamente ao combate de organizações criminosas.

Inaugurada a fase de “seletividade” das ações policiais, são criadas diretoria e delegacias regionais de combate ao crime organizado, delegacias especializadas em prevenção e repressão ao tráfico de armas, crimes financeiros, dentre outras. O “pool” de magistrados especializados em matéria de associações de tipo mafiosas, na Itália, existe desde a década de 80.

Por iniciativa do ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça, o Conselho da Justiça Federal editou a Resolução 517, que especializou as Varas Federais de combate à lavagem de dinheiro também em julgamento de ações de organizações criminosas, o que é um grande avanço na mentalidade do Poder Judiciário, que estabelece diferenças claras entre o aparelho do Estado para quem furta melancias ou manteiga, beirando a insignificância ou o desvalor da ação, daquele fundamental para acabar de vez com a grande criminalidade detratora da sociedade brasileira.

A união da PF

O pensar e agir de forma diferenciada são valores garantidos constitucionalmente e devem ser respeitados e incentivados como forma de promover o debate, melhoria e aperfeiçoamento das instituições. O que não é sadio para qualquer órgão da Administração Pública é a polarização das idéias que promove quebra de unidade e da solidez, desagregação e enfraquecimento institucional com prejuízo para o exercício da atividade pública. A raiz de qualquer dissenso interno não é o pensar e o agir diferenciado, mas a vontade de impor idéias próprias, pessoais, sem amplo debate. Este é um mal que assola a sociedade brasileira como um todo.

Crimes de colarinho branco

A sonegação fiscal e as fraudes em processos licitatórios e na aplicação de verbas públicas são os principais responsáveis, direta e indiretamente, pela carência de investimento nas áreas de saúde, educação e moradia popular, portanto serão sempre áreas prioritárias de repressão estatal.

É um tipo de criminalidade por opção, pois os autores não cometem o delito por falta de condições financeiras, educação ou necessidade, mas simplesmente por ganância, daí porque as ações da Polícia Federal são bem recebidas pela população brasileira, estarrecida com sucessivos escândalos de corrupção, em sentido amplo.

Na prática, as operações policiais conjugam ação repressiva e preventiva, pois também desestimulam a obtenção de vantagem financeira por meio transverso, de forma ilegal, inibindo novas ações criminosas e a continuidade daquelas em progressão.

Não somos ingênuos a ponto de imaginar que a sonegação fiscal e a criminalidade em geral, favorecidos, em grande parte, por problemas estruturais e organizacionais do Estado, vão chegar a termo, pois a sedução do dinheiro fácil sempre vai existir e os meios criminosos estão se tornando mais complexos e sofisticados, na medida em que a polícia consegue estancar determinada via criminosa.

Por isso, é fundamental que o investimento em segurança pública seja uma constante, prioridade de governo, sem cortes orçamentários e financeiros, com ótica preferencial em ações de inteligência, treinamento policial e aquisição de equipamentos.

O criminoso de “colarinho branco”, que antes já sabia, agora tem certeza de que não encontra guarida do Estado e, assim como aqueles que o protegem, independentemente do grupo econômico ou político dominante, em questão de tempo, sofrerão o devido processo legal em decorrência de condutas que atentem contra a ordem legal.

Cortando na carne

A Polícia Federal é mais rigorosa com os seus do que com terceiros, não por motivação política ou pessoal, mas por determinação legal. O Estatuto da PF, a Lei 4.878/65, no seu artigo 43, possui um extenso elenco de transgressões disciplinares. Parte delas, para as demais categorias do funcionalismo público, seria infração ética e para outras sequer isso. Isto foi objeto de discussão na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, realizada no início do mês de dezembro, em Ribeirão Preto (SP).

Temos dezenas de instruções normativas que regulamentam o procedimento policial; a violação dessas instruções normativas também configura transgressão disciplinar. Em parte, o rigor normativo e legal é razoável, pois o policial é um servidor público diferenciado, tendo em vista que tem autorização legal para portar e usar arma de fogo e se apresenta como representante do Estado em confronto com as duas maiores garantias constitucionais, que são a liberdade e a vida.

Por outro lado, não deixa de ser questionável o rigor, muitas vezes excessivo, pois o policial federal se depara com várias situações em que sua vida familiar e social são submetidas ao crivo da Administração Pública, fora da exaustiva jornada de trabalho.

O papel da Polícia Federal

As Polícias Judiciárias civil e federal representam a estrutura administrativa pública criada pela Constituição Federal, especificamente, para a investigação dos crimes. Podem agir de ofício, mediante representação ou requisição. Em qualquer das três hipóteses é a Polícia quem decide a metodologia da investigação, sua abrangência, os alvos potenciais, administra os recursos materiais e humanos à sua disposição, inclusive sua escassez, exerce juízos de valoração da saciedade da colheita probatória e decide cada um dos passos da investigação meticulosamente.

A Polícia não é mera executora de ordens, pois a iniciativa do Ministério Público ou do Poder Judiciário para início de uma investigação, quando o órgão policial não age de ofício, é apenas o pontapé inicial de um extenso, minucioso e categórico trabalho investigativo.

Na fase da denúncia, o Ministério Público se baseia no relatório do Delegado, produzido com lastro nas provas colhidas no Inquérito Policial e indicativo da tipificação dos delitos. Na fase processual (ação penal, após o recebimento da denúncia), o que foi colhido perante a Polícia Judiciária, é, em regra, confirmado perante o juízo.

São raros os casos de provas produzidas na ação penal que não são repetições de diligências policiais (como os depoimentos e reconhecimentos de pessoa ou coisa, provas irrepetíveis – perícias, buscas e apreensão, arrecadação, quebra de sigilo fiscal, bancário, telefônico), ou de processos administrativos da Receita Federal, INSS, Banco Central ou que não são um desdobramento lógico da ação policial, essa, verdadeiramente, uma atitude investigativa, ficando a cargo do Ministério Público a síntese fática da apuração policial e a subsunção jurídica da conduta do investigado, de acordo com os elementos de prova colhidos, para elaborar sua peça vestibular que é a denúncia e dar início ao processo penal.

Por outro lado, toda investigação policial é sensível e, por isso, exige delicada sintonia, confiança e integração entre a Autoridade Policial, membro do Ministério Público e magistrado, sob pena de o trabalho ser inócuo. Todos representam a atuação estatal na apuração de um delito e a resposta do Estado a uma determinada situação referida como “notitia criminis”.

Se é certo que a Polícia não é mera executora e nem o inquérito policial mera peça de informação, na mesma esteira pode-se dizer que não existe atuação legítima da Polícia sem a fiscalização do Ministério Público e a intervenção judicial. Por falar em fiscalização, não se pode descuidar do aspecto de que todos os órgãos envolvidos em investigação imprescindem de controle externo, ou seja, fora de sua própria estrutura orgânica, inclusive para se evitar o temerário ato de autolegislar sobre suas próprias atribuições e controle, como temos visto recentemente, preocupação que não é isolada, mas da sociedade, da OAB, de juristas como o professor Rogério Lauria Tucci e do recém-empossado integrante do Conselho Nacional do Ministério Público, Sérgio Alberto Frazão.

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  • é delegado da Polícia Federal, pós-graduado em Processo Civil, Segurança Pública e Defesa Social. Foi chefe do serviço de apoio disciplinar da Corregedoria-Geral e ex-assessor de ministro do STJ. É professor da Academia Nacional de Polícia, lotado na Diretoria de Combate ao Crime Organizado.

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