Direito Civil Atual

O paraíso dos conceitos jurídicos do jurista alemão Rudolf von Jhering (parte 6)

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5 de junho de 2017, 8h02

ConJur
Para dar continuidade a esta série de artigos sobre o Paraíso dos Conceitos Jurídicos de Jhering, e antes de ingressarmos na resposta que MacCormick ofereceu aos Critical Legal Studies, é preciso fazer uma breve reflexão sobre a tradição jurídica brasileira, desde sempre em permanente conflito de identidade. Ora Jekyll, ora Mister Hyde. Falemos do antigo artigo 386, do Decreto 848, de 11 de outubro de 1890, que organizou a Justiça Federal logo após o golpe de estado que nos transformou em uma república presidencialista:

“Art. 386. (omissis) Os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações jurídicas na Republica dos Estados Unidos da America do Norte, os casos de common law e equity, serão também subsidiários da jurisprudência e processo federal.”

De uma “penada”, fomos transformados em um país de common law como fonte subsidiária do Direito, uma espécie de neo-institucionalização rediviva (e invertida) da “lei da boa razão” (a Lei de 18 de agosto de 1769), pela qual se proibia a utilização de textos ou autores se houvesse preceito das Ordenações, de leis extravagantes ou de usos do Reio, impondo que o direito romano só deveria ser aplicado “conforme a boa-razão – que era a recta ratio do jusracionalismo buscada nos textos que dela não se houvessem apartado e nas normas do direito das gentes observadas unanimemente pelos povos civilizados”[1].

O paralelo é relevante. As Ordenações Filipinas, em seu título LXIV, livro III, trazia regulamentação sobre como os casos deveriam ser julgados quando houvesse lacuna nas ordenações, esclarecendo o que se deveria entender por “boa razão”; nas ordenações, se fosse matéria de “pecado”, deveria ser resolvida através do Direito canônico; se não fosse pecado, resolver-se-ia através do Direito romano, e na falta de leis imperiais, deveriam ser observados os comentários (glosas e opiniões) de Acúrsio e Bártolo (comentadores do Corpus Iuris Civilis); persistindo a falta, o caso seria remetido ao rei, que decidiria então, e sua decisão valeria para casos semelhantes.

A Lei da Boa Razão surge, essencialmente, para conter ou tentar impedir abusos (arbítrio dos juízes) na aplicação da lei, sendo esta a redação, presente nos comentários críticos de José Homem Corrêa Telles: “considerando ser muito conveniente para o bem público, que até nos ditos casos ‘omissos’ haja uma lei, e norma fixa, e constante para a decisão das causas; e não fique a administração da justiça dependente do arbítrio dos juízes;”[2]. Uma grande quantidade de exemplos de Leis Romanas abusivas, ou contrárias à “boa razão” é exemplificada: 1) leis que consideravam sagrados os locais, mesmo depois de destruídos os edifícios; 2) suicídio por aborrecimento da vida, e não por temor de castigo, que não anulava o testamento; 3) lei que considerava indigno o herdeiro que não vingava a morte do de cujos, acusando o matador; 4) lei que permitia ao homem casado possuir uma concubina, que podia herdar seus bens; 5) lei que permitia aos cônjuges desfazer o matrimônio por mutuo consenso; 6) lei que permitia que a mulher passasse a segundas núpcias depois de quatro anos de ausência do marido etc.

Da boa razão (1769), que buscava afastar fontes subsidiárias que permitiam o abuso, passamos ao judge made law subsidiário (1890), e com isso, inserimos entre nós a tradição do common law norte-americano, que por sua vez já trazia em si a tradição do common law da Inglaterra, que passa a conviver com o civil law, algo caricato como tentativa de inserir entre nós os balizamentos institucionais, e mais do que isso, de uma “tradição sem raízes”. Ficamos entre a desconfiança no papel do juiz, depois da revolução francesa, e entre a confiança no papel do magistrado, depois da revolução gloriosa inglesa. Ou mais especificamente, na desconfiança do papel do magistrado (antes da LBR – lei da boa razão) para um voto de confiança mitigado (depois do decreto 848/1890). Num jogo de palavras: confia-se desconfiando, e desconfia-se confiando, mesmo que autores como Jerome Frank[3] vejam mais semelhanças entre os modelos (civil law e common law) do que usualmente se costuma vislumbrar.

É um problema de matriz teórica do direito, mais especialmente vinculado a determinadas áreas, como a separação de poderes e o controle de constitucionalidade. Precisamos refletir sobre a institucionalização do judicial review não apenas no Brasil, mas na América Latina como um todo. Uma região caracterizada pela crônica instabilidade política e por constituições de vida curta, de países inseridos na tradição do civil law, deveria ter sido solo infértil para o enraizamento das sementes de Marbury v. Madson, como apontado por Keith Rosenn[4]. Segundo sua análise, inteiramente baseada em Mauro Cappelletti, o desenvolvimento do controle concentrado de constitucionalidade (centralized judicial review) foi uma resposta para três dificuldades que os países de civil law enfrentaram ao tentar implementar o controle difuso (decentralized judicial review) desenvolvido em um país de common law.

Primeiro, os países de civil law teriam aderido mais rigidamente à doutrina da separação de poderes, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade da lei é percebida como uma função política, e, portanto, incompatível com o poder judiciário de sua tradição. Segundo, os países de civil law não desenvolveram a doutrina do stare decisis, e, portanto, cada pessoa afetada pela declaração de inconstitucionalidade precisaria ajuizar a sua própria ação judicial, criando o ambiente propício para o surgimento de decisões conflitantes. Terceiro, os juízes inseridos na tradição do civil law estariam em situação incompatível para o exercício dos poderes inerentes ao judicial review, uma vez que os tribunais supremos, no sistema da civil law, seriam grandes e desajeitados com suas múltiplas divisões, mas, curiosamente, na América Latina, desenvolveram-se modelos híbridos para tentar superar tais dificuldades[5], ignorando matrizes teóricas e suas implicações.

Para o professor Keith Rosenn, o modelo de súmulas no Brasil, desde a década de 1960, teria o efeito análogo ao stare decisis, numa clara confissão de que as súmulas enfraquecem o apego à separação de poderes de nossa tradição, sem embargo de outros problemas jurídico-teóricos que surgem da observação, trazendo a lume não apenas a tentativa de percepção desta busca constante pelo stare decisis[6], mas os problemas por trás de uma importação acrítica e inadequada, que gera mais problemas e mais complexidades.

Entre nós, basta observarmos que alguns anos depois do decreto que instituiu o common law, também tentamos dar força à nossa esquizofrenia jurídica, com norma impositiva para “conferir força normativa à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, por meio do Decreto 23.055, de 9 de agosto de 1933 (algo que o Novo Código de Processo Civil de 2015 parece ter tentado fazer 82 anos depois do decreto que não funcionou, e a CF/88 tentou fazer com as súmulas e decisões vinculantes). Tal diploma normativo não prevaleceu, segundo Barros Monteiro, porque por mais insistente que seja a jurisprudência, “não constitui norma imperativa, a cujo comando não se possa fugir”, mencionando que isso estaria adequado, pois “o único compromisso que têm os juízes é com a lei e a própria consciência”[7].

Mais uma vez com razão Lenio Streck quando criticou não apenas a expressão “decido conforme a minha consciência”[8], mas também a recepção teórica inadequada[9], indicando que precisamos urgentemente de pelo menos quatro posturas teóricas, com urgência: 1) nova teoria das fontes; 2) nova teoria da norma; 3) nova teoria da interpretação; e, 4) nova teoria da decisão[10], e, por parte dos juristas, responsabilidade política com esta equação jurídica, que passa pela compreensão dos dois corpos do rei, reflexão também repetidamente recordada por Lenio[11].

A seguinte passagem de Ernest H. Kantorowicz é luminosa, evidentemente atualizando e distinguindo as várias passagens e transformações do conceito: “Aqui, como em outras passagens, descobre-se que no conceito organológico de ‘corpo político e místico’, continuavam vivas as forças constitucionais que limitavam o absolutismo real. Isso se tornou manifesto quando, em 1489, o Parlamento de Paris, a suprema corte da justiça francesa, protestou contra as pretensões do Conselho do Rei no governo de Carlos VIII. O Parlamento, um corpo encabeçado pelo Rei e composto dos Doze Pares, o chanceler, os quatro presidentes do Parlamento, alguns funcionários e conselheiros e de uma centena de outros membros (supostamente segundo o modelo do Senado Romano), opôs-se à interferência e proclamou-se ‘un corps mystique meslé de gens ecclésiastiques et lais […] representants la personne du roy’, porque essa Corte Suprema do reino era ‘a Justiça soberana do Reino de França, e o verdadeiro trono, autoridade, magnificência e majestade do próprio Rei’. Naturalmente, a ideia era de que o rei e seu conselho não podiam agir contra o Parlamento, porque esse ‘corpo místico’ representava ou era até idêntico à pessoa do rei”[12].

Podemos dizer, com a liberdade acadêmica de que nos valemos, que isso equivale ao chão (fonte), às paredes (norma), à visão (interpretação) e à caminhada (decisão) dentro de qualquer paraíso dos conceitos jurídicos, e que caminhar em terreno acidentado, com mármores e granito de fábricas, cores, tamanhos e texturas distintos, certamente acarreta inúmeras dificuldades, potencializadas ainda mais se estivermos em estado de “daltonismo jurídico” “e miopia normativa” que perceba paredes mais próximas ou distantes do que de fato estão. Eleva-se a potencialidade destrutiva à milésima potência quando se realiza, como os Critical Legal Studies, o exercício de “trashing” que desconsidera implicações importantes nas tradições jurídicas, pois até para se realizar alterações de rumo, e de rota, é necessário saber de onde vieram e para onde vão. Continuaremos na próxima coluna.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[1] MOREIRA ALVES, José Carlos. Panorama do Direito Civiil Brasileiro: Das Origens aos dias atuais. Revista da Faculdade de Direito da USP, v.88, 1993.
[2] CORRÊA TELLES, José Homem. Comentário Crítico à Lei da Boa Razão, em data de 18 de agosto de 1769. Lisboa: Typographia de Maria da Madre de deus, 1865, p. 36.
[3] FRANK, Jerome. Civil Law influences on the Common Law – Some Reflections on ‘Comparative’ and ‘Constrastive’ Law. University of Pensilvannia Law Review, v. 104, n. 7, 1956.
[4] ROSENN, Keith. Judicial Review in Latin America. Ohio State Law Journal, v. 35, 1974.
[5] ROSENN, Keith. Judicial Review in Latin America. Ohio State Law Journal, v. 35, 1974.
[6] AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Controle de constitucionalidade: evolução brasileira determinada pela falta do stare decisis. Revista dos Tribunais, v. 101, n. 920, p. 133–149, jun., 2012.
[7] MONTEIRO, Washington de Barros. Da jurisprudência. Revista da Faculdade de Direito da USP, v. 56, n. 2 , 1961.
[8] STRECK, Lenio. O Que É Isto – Decido Conforme Minha Consciência? 5ª Ed. Porto Alegre: Do advogado, 2015.
[9] STRECK, Lenio. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011.
[10] STRECK, Lenio. Entrevista. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 81, n. 4, ano XXIX, dezembro 2011, p. 16.
[11] STRECK, Lenio. Senso Incomum: O que é preciso para (não) se conseguir um Habeas Corpus no Brasil. ConJur de 24/8/2015.
[12] KANTOROWICZ, Ernst H. Os Dois Corpos do Rei: Um Estudo Sobre Teologia Política Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 140.

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