Opinião

Denúncias vazias por organização criminosa dão margem ao arbítrio

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27 de fevereiro de 2017, 6h40

A operação “lava jato” e suas diversas ramificações nos trazem, a cada momento, sustos de ilegalidade. As mais variadas distorções de nosso ordenamento jurídico são justificadas com o intuito de fortalecer a ideia ou a novel metodologia empregada, de que as prisões cautelares são estrategicamente importantes para o jogo dos processos movidos pelas “premiadas” colaborações.

Não é incomum a determinação de prisões antecipadas sem qualquer aprofundamento nas investigações policiais. Meros e intocáveis indícios são trazidos à tona, fornecidos à grande mídia, para só depois, com os acusados presos, dar-se início ao verdadeiro aprofundamento de uma investigação.

Nesse ínterim, normalmente surgem os incômodos da legalidade: acusados presos que precisam ser denunciados e julgados, sob pena de serem postos em liberdade. Esse anunciado desastre é o maior abalo que se pode ter no plano estrategicamente montado pela acusação.

Processo de acusado solto ressalta a ampla defesa e corrói o pressuposto maior de um processo de delação — a intimidação.

O que se fazer então? A resposta é simples: enquanto se apura os crimes atribuídos aos acusados — lavagem de dinheiro, corrupção, falsidades etc. —, oferece-se rapidamente uma denúncia pelo crime de organização criminosa.

Ninguém desconsidera a qualidade de delito autônomo da organização criminosa, bem como do posicionamento jurisprudencial e doutrinário acerca da possibilidade de esse delito ser processado em autos diferentes dos crimes eventualmente cometidos pelos seus membros estavelmente associados entre si.

Não se trata, aqui, de rechaçar tal possibilidade, mas apenas de demonstrar que, na grande diversidade dos casos, os indícios utilizados para demonstrar a existência de uma organização criminosa, a Orcrim, correspondem, na verdade, aos indícios dos demais delitos imputados, de tal maneira que a análise das provas de materialidade e autoria do delito de Orcrim guardam necessária conexão instrumental e probatória com os indícios deste último. Tudo não passa de uma dissimulação voltada a burlar comezinhos princípios constitucionais.

O superveniente oferecimento de denúncia apenas pelo delito de Orcrim possui uma série de consequências, normalmente desprezadas pelos órgãos acusatórios.

A primeira delas é a inépcia material da denúncia e a consequente ausência de justa causa para a ação penal. É que embora a acusação realize esforço cognitivo para sustentar a suposta existência de um nível de hierarquia e divisão de tarefas inerentes ao delito, o parquet normalmente não apresenta absolutamente nenhuma prova autônoma da existência da organização, apontando-se exclusivamente os indícios da prática dos outros crimes, anteriormente citados como intuito de justificar a precipitada prisão, para embasar o oferecimento da denúncia por Orcrim.

Apesar da descrição — que apenas de forma aparente cumpriria os requisitos para o delito de Orcrim —, não há menção a absolutamente nenhuma evidência ou prova autônoma capaz de subsidiar o alegado, ou seja, que aquelas pessoas teriam estabelecido uma reunião estável com o premeditado objetivo de praticar condutas criminosas.

Em suma, normalmente não são angariadas provas para demonstrar (1) o dolo dos acusados de se associarem, ab initio, com a ilícita finalidade de praticar crimes indeterminados, e, inclusive, elementos que comprovem a descrita delimitação temporal dessa associação; a denúncia se limita a descrever indícios de materialidade de crimes determinados imputados a alguns dos denunciados, sem evidenciar a existência de uma associação autônoma; (2) o efetivo liame subjetivo entre os membros com o intuito de se colocarem à disposição da Orcrim — que deve ser distinguido de meras relações negociais, empresariais e vínculos trabalhistas; bem como (3) a permanência e estabilidade dessa associação ao longo do tempo, diferenciando-a do concurso de agentes para o cometimento de crimes em concurso material/continuidade.

Na prática, a acusação subverte a lógica probatória de uma Orcrim e parte da análise de outros crimes — normalmente ainda em apuração —, em tese cometidos por alguns dos seus integrantes, para, regressando no tempo, considerar que qualquer e todas as atuações daqueles indivíduos, mesmo que isoladas, estiveram relacionadas à atuação de uma organização estável e permanente.

A segunda consequência, e esta se apresenta como de maior gravidade, está relacionada à inépcia formal da denúncia e ao cerceamento de defesa impingido aos acusados em decorrência da ilegal cisão do fato delitivo. Isso porque, diante da necessária conexão instrumental e probatória, a prova da prática dos outros crimes ainda em apuração, embora não seja suficiente, é prejudicial para a comprovação da Orcrim, sendo impossível se cogitar o exercício da acusação (e especialmente da defesa) de forma separada.

Não se pode cogitar, por consequência, que tal escolha da acusação possa se sustentar no que dispõe o artigo 80 do CPP, norma que visa a otimizar a busca pela verdade, com integral respeito às garantias de proteção ao cidadão, e não a proteger a persecução criminal ou a conveniência da atividade acusatória.

Embora seja possível relativizar tais objetivos em casos específicos de processos complexos, tal ponderação há de ser feita exclusivamente pelo magistrado, pois cabe “ao Juiz, e somente a ele, decidir se a disjunção é, ou não, relevante”[1]. A jurisprudência também é firme em apontar que “a teor do art. 80 do CPP, é facultado ao magistrado aquilatar a conveniência da reunião dos processos, nos casos de conexão ou continência” (TRF-5, HC 2081/CE).

Por outro lado, para que o magistrado delibere sobre o tema, faz-se imprescindível que o feito lhe seja apresentado de forma integral e completa. Afinal, “não se trata de um dispositivo que prevê a não união dos feitos. É exatamente o oposto: se os feitos já estiverem unidos, por conexão ou continência, poderá haver a separação dos processos. (…) Já na hipótese do art. 80, uma vez formado o processo único, o juiz, segundo a dicção legal, poderá, facultativamente, separar os processos”[2].

Portanto, a aplicação do artigo 80 do CPP só tem lugar quando toda a imputação está em um feito único. Se a acusação estiver distribuída em mais de uma ação penal, o mínimo que se exige, para a correta compreensão da acusação, é que todas as denúncias já tenham sido apresentadas e todas as imputações colocadas perante o juízo.

Nos casos de oferecimento em separado de denúncias pelo crime de organização criminosa, acontece exatamente o oposto: embora haja uma relação de simbiose entre a apuração do delito de organização criminosa voltado à prática de outros crimes citados quando das prisões e na própria denúncia, em vez de se apresentar o fato criminoso em sua integralidade para o juiz deliberar sobre o desmembramento, a acusação escolhe (sem fundamento legal) por apresentar apenas a imputação de organização criminosa, anunciando que denunciará posteriormente pelos outros crimes (cuja prova é insuficiente, porém prejudicial à existência da suposta Orcrim).

Se é assim, o fato criminoso em sua totalidade não pode ser cindido arbitrariamente pelo parquet, sob pena de inépcia da denúncia por violação ao artigo 41, do CPP: “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas”.

Como as acusações não são apresentadas em separado (na verdade uma parte delas é oculta, por não haver outra denúncia oferecida a fim de realmente poder se apurar a necessidade da cisão), a acusação termina por manipular as regras de conexão e competência.

A ilegal cisão do fato delitivo cerceia o exercício da defesa dos acusados, conforme expõem Pacceli e Fischer “é exatamente a descrição completa da imputação penal que permitirá o mais amplo exercício da defesa[…]”[3]. Observe-se que a cisão dos feitos simplesmente usurpa da defesa o direito primordial de “argüir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa”, pois a acusação não foi posta de forma completa.

Uma vez que o réu se defende dos fatos como narrados na inicial acusatória, e não da sua qualificação jurídica (STF, RT 779/487), a defesa está cerceada por não poder se defender do delito de organização criminosa sem se defender, na verdade, dos atos e condutas descritas nos demais crimes imputados à organização — pois a integralidade da prova destes últimos crimes não estão sequer juntada ao feito denunciado.

E veja-se que não se trata apenas de separar os feitos, mas de separar temporalmente as imputações, ou seja, de ocultar parte das acusações para expô-las a posteriori. Nesse contexto, também há grave violação ao contraditório, pois os acusados são instados e obrigados a apresentar na resposta à acusação todas as suas arguições sobre o “contexto” supostamente criminoso para, só depois disso, ter-lhe apresentada a acusação em sua inteireza (integralidade da prova apuradas em relação aos crimes praticados pela organização criminosa).

Portanto, o uso pela parte acusatória de prerrogativa exclusiva do magistrado de separar o processo manipula a ordem processual adequada e, por consequência, as regras do devido processo legal. O princípio do contraditório, além de determinar que a defesa se manifeste por último, pressupõe que, para sua manifestação, a defesa tenha prévio conhecimento de toda a imputação, sendo completamente inadmissíveis as provas secretas e as imputações incompletas/desconhecidas, afastando “os processos secretos que ensejam o arbítrio”[4].

Portanto, é obrigação do órgão acusador, sob pena de inépcia formal da denúncia, apresentar em juízo absolutamente todos os contornos e todo o conteúdo de sua acusação, sem postergar para outro momento fatos, elementos, descrições ou imputações, muito menos para depois do pronunciamento defensivo.

Registre-se que esse ônus/obrigação não entra em conflito com a possibilidade legal de posterior aditamento da denúncia a qualquer tempo, pois o aditamento é aplicável quando, de alguma forma, há um conhecimento superveniente da acusação acerca de fatos, e a acusação passa a ter acesso a informações que lhe eram completamente desconhecidas no momento em que ofereceu a denúncia. Não é bem o que tem acontecido.

Não sendo, portanto, em razão da falta de indícios, a cisão reflete o intuito de “facilitar o trâmite” em privilégio da acusação, que (I) não verá as prisões preventivas prematuramente decretadas nos autos serem afetadas pelo excesso de prazo necessário para serem concluídas as diligências que o parquet entende necessárias e (II) não estará obrigada a disponibilizar à defesa a integralidade da prova imprescindível para o exercício do contraditório.

A arbitrária cisão por uma das partes (no caso, o Ministério Público) coloca a acusação, de maneira artificial e ilegal, em situação diferenciada e superior, pois cerceia a defesa ao deixar parte das imputações oculta e viola o contraditório por forçar a defesa a se manifestar acerca do contexto criminoso antes do Ministério Público apresentar a denúncia com a completude de suas imputações.

As denúncias oferecidas exclusivamente para se apurar o crime de organização criminosa, na forma delineada acima, são apenas simulacros de acusação, uma bengala, que permite artificialmente a sustentação do arbítrio.

A tese referida foi sustentada e acolhida na ordem de Habeas Corpus 6.243/PE perante o Tribunal Regional Federal da 5ª Região.


[1] FILHO, Fernando Tourinho. Código de processo penal comentado, v.1. – 13ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 320.  
[2] BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 358.
[3] Comentários ao Código de Processo Penal e 12 sua jurisprudência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 100.
[4] MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO. Comentários à Constituição brasileira de 1988. Vol. 1. – São Paulo: Saraiva, 1990, p. 68.

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