Garantias do Consumo

Menosprezo planejado de deveres legais pelas empresas leva à indenização

Autores

  • Claudia Lima Marques

    é professora e diretora da Faculdade de Direito da UFRGS doutora pela Universidade de Heidelberg mestre em Direito pela Universidade de Tübingen (Alemanha) advogada relatora-geral da Comissão de Juristas e ex-presidente do Brasilcon.

  • Laís Bergstein

    é advogada doutoranda em Direito do Consumidor e Concorrencial pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e coordenadora Acadêmica da Especialização em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais da UFRGS.

21 de dezembro de 2016, 7h00

Tempo. A primeira das vulnerabilidades do ser humano, segundo Frédérique Fiechter-Boulvard, é a de que a sua vida é finita.[1] Enquanto a ciência tenta entender o tempo, em si, sabemos ao menos que, para todos nós, ele é um recurso que cedo ou tarde se esgotará.[2] Mais do que isso, o tempo é um instrumento fundamental para o desempenho de toda e qualquer atividade humana.

E disso se infere a sua importância também para a ciência do Direito. Se o tempo é um recurso indispensável ao desempenho de toda atividade humana, além de um valor finito, escasso e não renovável, ele invoca e passa a merecer a tutela jurisdicional. Para François Ost, o tempo é, antes de tudo, uma construção social e, logo, um objeto jurídico.[3]

No ordenamento jurídico, além da preocupação geral com a passagem do tempo e da imposição da boa-fé objetiva e do dever de cooperar com os parceiros contratuais,[4]   já encontramos algumas normas especiais preocupadas com o tempo do consumidor. O Decreto nº 6.523, de 31 de julho de 2008 (conhecido como “Lei do SAC”), que impõe agilidade ao atendimento ao consumidor, é um bom exemplo, assim como as legislações municipais que limitam numericamente o tempo de espera em filas de bancos.[5]

Também a Lei 8.078/1990, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor (CDC), estabelece como princípio da Política Nacional das Relações de Consumo o incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, visando justamente à otimização dos recursos do consumidor, assim como limita a 30 dias o tempo de conserto dos bens não essenciais (artigo 18 caput in fine).

Significativa parcela dos consumidores — que se apresenta cada dia mais atenta aos seus direitos e obstinada a buscá-los — tem acionado o Poder Judiciário em busca da reparação do dano decorrente justamente da violação desse especial dever de indenidade: aquele que resulta na injusta perda do tempo, com embaraços, dificuldades, protelações, reconsertos sabidamente falhos e outras práticas comerciais abusivas dos fornecedores de produtos e serviços na esperança de impedir ou dissuadir o consumidor a alcançar seu direito de qualidade, adequação, segurança e boa-fé! Ao implementar sistemas morosos, pouco eficientes (como medida de economia ou mesmo para desestimular as reclamações), o fornecedor transfere ao consumidor todo o ônus resultante de sua inércia e, em alguns casos, os riscos inerentes à sua atividade.

Na obra pioneira sobre o tema no Brasil, Marcos Dessaune demonstrou a existência de situações que importam em um “prejuízo temporal” ao consumidor, as quais não se enquadram nos conceitos tradicionais de dano material, de perda de uma chance ou de dano moral. No seu entendimento haveria “uma nova e importante modalidade de dano [até então] desconsiderada no Direito brasileiro: o desvio dos recursos produtivos do consumidor, ou resumidamente, o “desvio produtivo do consumidor.”[6]

Não há dúvida de que o tempo é valor na sociedade atual e compõe o dano ressarcível nas relações de consumo, de modo que a sua perda não pode mais ser qualificada como “mero aborrecimento normal”, como inerente a cada relação contratual de consumo, – pela honra de consumir – estaria a ‘perda’ desnecessária e desrazoável de tempo.[7] Atualmente a doutrina especializada preocupa-se em responder se esse dano extrapatrimonial teria uma natureza autônoma ou se o mais adequado seria considerá-lo como elemento intrínseco ao dano moral.[8]

Avançamos bastante nesse aspecto da proteção do consumidor, prova disso é que decisões responsabilizando fornecedores pela imposição da perda do tempo do consumidor já são encontradas em diversos Estados brasileiros, como, por exemplo, nos Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul[9], do Rio de Janeiro[10], do Paraná[11], de São Paulo[12], do Distrito Federal[13] e do Maranhão[14]. O Superior Tribunal de Justiça já revelou sinais de preocupação com o tempo do consumidor ao decidir, por exemplo, que “configura  dano  moral,  suscetível  de  indenização,  quando  o consumidor   de   veículo   zero  quilômetro  necessita  retornar  à concessionária   por   diversas   vezes   para  reparo  de  defeitos apresentados no veículo adquirido.”[15]

Mas ainda há um longo caminho a ser trilhado e campanhas como a do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil[16] podem mudar esta cultura de menosprezo em relação ao existente dever de cuidado e de cooperação dos fornecedores de produtos e serviços no Brasil para com todos os consumidores!

Embora seja perceptível, de um lado, a conscientização de uma considerável parte dos membros do Poder Judiciário acerca da importância da valorização do tempo do consumidor, nota-se, de outro lado, a dificuldade de muitos em avançar para a cultura do dever de cuidado e cooperação com o consumidor também no que se refere ao tempo da prestação, das reclamações e do cumprimento com a garantia legal.

Há alguns anos Edgard Morin disse que para sairmos do século XX é preciso “saber ver” e “saber pensar”[17]. Não é possível olhar as relações de consumo com o mesmo pragmatismo com que se veem as relações civis, pois os seus protagonistas são sensivelmente diferentes. Todo consumidor é vulnerável (art. 4º, I, CDC), seja fática, jurídica, técnica ou economicamente. Além disso, toda a informação sobre os produtos e serviços ofertados no mercado é concentrada nos fornecedores, vez que somente eles conhecem efetivamente as características das suas respectivas linhas de produção e, naturalmente, selecionam os dados que serão divulgados.

São igualmente concentrados no fornecedor os recursos para a resolução de eventuais os problemas decorrentes do contrato de consumo. Caso o fornecedor não disponibilize ao seu parceiro contratual canais e ferramentas adequadas e aptas a prestar o devido atendimento, o consumidor não pode evitar de buscar a ajuda – o que seria perfeitamente evitável com um simples ato de boa-fé de cooperação – junto às autoridades competentes, como o Procon e as agências reguladoras, ou na sociedade civil, nas associações de defesa do consumidor, e depois, acionar o Poder Judiciário.

Todas essas medidas são dispendiosas porque consomem tempo e, na maioria das vezes, certo investimento financeiro. A percepção de tais peculiaridades das relações de consumo nos conduz à conclusão de que há dano a ser reparado quando o consumidor é compelido a recorrer ao Poder Judiciário para solucionar um problema ocasionado e não admitido pelo fornecedor.

Cumprir com seus deveres, impostos pelo CDC, não é favor, é obrigação! Não adianta alegar “ditadura do consumidor” ou “indústria do dano moral”, pois a indústria do dano de massas é o problema, que campanhas como a da OAB podem reverter. Não pode valer a pena causar dano aos consumidores! Não pode valer a pena causar dano a milhões de consumidores e ter apenas que pagar algumas migalhas para os poucos que reclamam! Temos que inverter esta equação e evitar os danos de massa, evitar os litígios, com sanções exemplares àqueles que procuram preservar este sistema perverso, de descumprimento em massa e lucro! Na verdade, uma pesquisa conduzida no âmbito da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo, comprovou que a famigerada “indústria do dano moral” não existe no Brasil. Os pesquisadores concluíram que “a temida indústria de reparações milionárias não é uma realidade no Brasil, mesmo diante da situação atual de ausência de critérios legais para o cálculo do valor da reparação por danos morais.”[18] Desmistificou-se, cientificamente, um equivocado senso comum que, não raras vezes, era invocado como argumento de decisões judiciais.

Ainda a corroborar a possibilidade de indenizar o consumidor pelo injusto retardo na resolução das lides de consumo, verifica-se que o Superior Tribunal de Justiça já desatrelou o dano moral da repercussão psicológica provocada à pessoa do ofendido em diferentes situações. No julgamento dos casos das “pílulas de farinha”, por exemplo, o dano moral resultante da gestação não planejada foi desassociado de uma repercussão psicológica negativa para a mãe.[19] Em outro caso a Corte firmou o entendimento de que “o dano moral não pode ser visto tão-somente como de ordem puramente psíquica – dependente das reações emocionais da vítima –, porquanto, na atual ordem jurídica-constitucional, a dignidade é fundamento central dos direitos humanos, devendo ser protegida e, quando violada, sujeita à devida reparação.”[20]

Acolheu-se, com isso, a orientação doutrinária de que “o dano moral não está necessariamente vinculado a alguma reação psíquica da vítima. Pode haver ofensa à dignidade da pessoa humana sem dor, vexame, sofrimento…”[21] Tais julgados do Superior Tribunal de Justiça embasam a tese de que, a despeito da inexistência de abalo ou sofrimento psicológico maior, é cabível a reparação dos danos decorrentes da violação ao direito à autodeterminação, que tem raiz imediata no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/1988). Em outras palavras, o dever de reparar o dano extrapatrimonial provocado ao consumidor não decorre, necessariamente, de um abalo grave psíquico da vítima, mas pode ser resultante de uma situação de menosprezo consciente, de indiferença planejada – no afã de lucro com a inércia de muitos – frente aos seus legítimos reclamos.

Vale lembrar, ainda, que no âmbito das relações de consumo há, para fins de proteção e defesa do contratante vulnerável, uma sensível diferença: a prevalência do princípio da reparação integral dos danos (art. 6º, VI, CDC). Diante de expressa previsão legal, “devem ser reparados todos os danos causados, sejam os prejuízos diretamente causados pelo fato, assim como aqueles que sejam sua consequência direta.”[22] Tal disposição protetiva do CDC permite que a reparação dos danos causados ao consumidor seja perseguida com maior naturalidade do que ocorreria, por exemplo, nas relações civis, que são regidas pelos Códigos Civil ou Comercial.

A despeito da elevada mecanização e robotização das cadeias produtivas, é natural que exsurjam problemas em parte das relações de consumo. Mas compete aos fornecedores encontrar meios de solucionar eventuais problemas e conflitos de forma ágil e efetiva.  A conduta do fornecedor que fere o dever de indenidade e, mais do que isso, nega-se a solucionar o problema causado ao consumidor com agilidade e eficiência não resulta em simples aborrecimento ou dissabor quotidiano ao consumidor. O menosprezo e a indiferença geram, sim, um dano injusto que deve ser indenizado.

Precisamos ver e pensar de modo diferente as relações de consumo, exigindo de todos os fornecedores uma postura ética, cooperativa e responsável para, então, efetivamente deixarmos o século XX e avançarmos para um futuro promissor.


[1] Fiechter-Boulvard, Frédérique. La notion de vulnérabilité et sa consécration par le droit. Apud: Marques, Claudia Lima; Miragem, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 215. Veja também, em: Fiechter-Boulvard, Frédérique. La notion de vulnérabilité et sa consécration par le droit. Disponível em: <www.pug.fr/extract/show/107> Acesso em: 15 ago. 2016.
[2] Veja a obra de DESSAUNE , Marcos. Desvio Produtivo do Consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
[3] OST, François. O tempo do direito. Tradução de Élcio Fernandes. Bauru: Edusc, 2005. p. 12.
[4] MARQUES, Claudia. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 8. Ed., RT: São Paulo, 2016. p. 220ss.
[5] A exemplo das seguintes legislações municipais: Lei nº 5590, de 1 de julho de 2002, da cidade de Vitória/ES; Lei nº 5.254, de 25 de março de 2011, da cidade do Rio de Janeiro/RJ; Lei n° 1047, de 6 de agosto de 2001, da cidade de Palmas/TO; dentre outras.
[6]Dessaune, Marcos. Desvio Produtivo do Consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 134.
[7] Marques, Claudia Lima; Miragem, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 215-219.
[8] Veja, a respeito: Barocelli, Sergio Sebástian. Cuantificación de daños al consumidor por tiempo perdido. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 90/2013, p. 119-140, Nov-Dez, 2013;   Scramim, Umberto Cassiano Garcia. Da responsabilidade civil pela frustração do tempo disponível. São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 968, p. 83-99, jun., 2016;   Guglinski, Vitor Vilela. O dano temporal e sua reparabilidade: aspectos doutrinários e visão dos tribunais. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 99, p. 125-156, maio-jun., 2015; Maia, Maurilio Casas. Dano temporal indenizável e o mero dissabor cronológico no mercado de consumo: quando o tempo é mais que dinheiro – é dignidade e liberdade. Revista de Direito do Consumidor, v. 92, Mar/Abr – 2014, p. 161-176.
[9] Brasil. TJRS. Rec. Cível 20632-03.2013.8.21.9000. Bento Gonçalves. Terceira Turma Recursal Cível. Rel. Des. Fábio Vieira Heerdt. Julg. 30/01/2014. DJERS 06/02/2014; BRASIL. TJRS. RecCv 16980-75.2013.8.21.9000. Porto Alegre. Terceira Turma Recursal Cível. Rel. Des. Fábio Vieira Heerdt. Julg. 12/12/2013. DJERS 18/12/2013.
[10] Brasil. TJRJ. APL 0080014-13.2007.8.19.0004. Vigésima Quinta Câmara Cível. Relª Desª Isabela Pessanha Chagas. Julg. 18/12/2014. DORJ 07/01/2015.
[11] Brasil. TJPR. 10ª C.Cível. AC. 1055184-7. Curitiba. Rel.: Arquelau Araujo Ribas. Unânime. J. 07.11.2013.
[12] Brasil.TJSP. APL 0007852-15.2010.8.26.0038. Ac. 7182456. Araras. Quinta Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Fábio Podestá. Julg. 13/11/2013. DJESP 28/11/2013; BRASIL.TJSP. APL 0022332-16.2010.8.26.0032. Ac. 7934493. Araçatuba. Oitava Câmara Extraordinária de Direito Privado. Rel. Des. Fábio Podestá. Julg. 08/10/2014. DJESP 28/10/2014; BRASIL. TJSP. APL 0004337-70.2008.8.26.0028. Ac. 7882835. Aparecida. Quarta Câmara de Direito Público. Rel. Des. Paulo Barcellos Gatti. Julg. 22/09/2014. DJESP 03/10/2014.
[13] Brasil. TJDF. Rec 2013.01.1.116440-4. Ac. 765.495.Primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal. Rel. Juiz Leandro Borges de Figueiredo. DJDFTE 13/03/2014. Pág. 270.
[14] Brasil. TJMA. Rec 0006588-93.2013.8.10.0040. Ac. 148994/2014. Segunda Câmara Cível. Rel. Des. Antonio Guerreiro Júnior. Julg. 24/06/2014. DJEMA 27/06/2014.
[15] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 821.945/PI, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 23/06/2016, DJe 01/07/2016.
[16] Campanha de conscientização recentemente lançada pela Comissão de Defesa do Consumidor da Ordem dos Advogados do Brasil sob o mote: “mero aborrecimento tem valor”.
[17] Morin, Edgar. Para sair do Século XX. Tradução: Vera de Azambuja Harvey. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 23, 109.
[18] Püschel, Flavia Portella; Corrêa, André Rodrigues; Salama, Bruno Meyerhof; Hirata, Alessandro. A quantificação do Dano Moral no Brasil: Justiça, segurança e eficiência. Série Pensando o Direito nº 37/2011. Disponível em: <http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/37Pensando_Direito1.pdf>  Acesso em: 9 ago. 2016.
[19]Brasil. STJ. REsp 866.636/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 29/11/2007, DJ 06/12/2007.
[20] Brasil. STJ. REsp 910.794/RJ, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 21/10/2008, DJe 04/12/2008.
[21] Cavalieri Filho, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 82-83.
[22] Miragem, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 214.

Autores

  • é advogada e professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Diretora do Brasilcon e Coordenadora Brasileira da Rede Alemanha-Brasil de Pesquisas em Direito do Consumidor (DAAD-CAPES).

  • é advogada, mestre em Direito Econômico e Socioambiental (PUC-PR), doutoranda em Direito do Consumidor e Concorrencial (UFRGS) e associada ao Brasilcon.

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