Diário de Classe

Moro e a relativização do sigilo profissional dos advogados

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2 de abril de 2016, 8h00

Spacca
Enquanto a Ordem dos Advogados do Brasil se preocupa com os fundamentos jurídicos do pedido de impeachment por ela protocolado na Câmara dos Deputados, inicia-se um novo capítulo da novela acerca da quebra do sigilo de advogados pelo juiz Sergio Moro.

Após o Supremo Tribunal Federal decidir pela ilegalidade da divulgação das conversas entre Lula e a presidente Dilma — o que certamente contribuirá para o ingresso de ações indenizatórias voltadas à responsabilidade civil do Estado (e regressiva do magistrado, que agiu com dolo) —, noticia-se que a Telefônica — operadora responsável pela execução da ordem de interceptação telefônica do ramal central da sede do escritório Teixeira, Martins e Advogados, em São Paulo — informou previamente o juízo, em duas oportunidades, que o telefone grampeado pertencia à banca (leia aqui). Isso é fato. E deveria ser uma preocupação de todos, advogados e cidadãos.

Tais ofícios revelam — ao contrário do teor das informações prestadas por Moro ao STF (página 18) — que ele tinha pleno conhecimento do grampo no escritório de Roberto Teixeira, no qual trabalham 25 advogados e são atendidos mais de 300 clientes.

Como se isso não bastasse, descobriu-se — e isso também é fato — que o pedido de interceptação telefônica do escritório de Roberto Teixeira contou (mais uma vez) com a astúcia do Ministério Público Federal: os procuradores da República incluíram o telefone do escritório de advocacia, porém informaram tratar-se de uma empresa de eventos do ex-presidente. Além do excesso de boa-fé, é surpreende a criatividade dos membros do parquet…

Na verdade, o que está em jogo é uma compreensão muito particular e absolutamente distorcida acerca da prerrogativa do sigilo profissional do advogado. Moro já deixou isso bastante claro em outras oportunidades. Essa não foi a primeira nem a segunda vez. E — se alguma medida não for efetivamente tomada pela OAB junto aos órgãos competentes — nada garante que será a última. A Espanha, por exemplo, foi bem eficaz nesse sentido: o famoso e festejado juiz Baltasar Garzón perdeu seu cargo por ter grampeado, no caso Gürtel, a conversa entre acusados e seus advogados.

Da Península Ibérica para o Brasil, temos que, em 2007, quando compartilhava a jurisdição da Vara de Execução Penal da Seção Judiciária do Paraná, Moro determinou a instalação de microfones e câmeras nas salas de visitas e nos parlatórios, para que fossem gravadas todas as conversas dos internos, inclusive com os advogados. Na ocasião, Moro justificou a adoção da medida policialesca: “O sigilo da relação entre advogado e cliente não é absoluto. Legítimos interesses comunitários, como a prevenção de novos crimes e a proteção da sociedade e de terceiros, podem justificar restrição a tal sigilo” (leia aqui).

Em resposta ao ofício encaminhado pela OAB, em 2009, Moro alegou que a instalação das escutas tinha como finalidade “prevenir a prática de novos crimes, e não interferir no direito de defesa”. Sensacional, não? É o que Lenio Streck chama de fator Minority Report… (leia aqui)

No entanto, isso não é tudo. Além de “prevenir crimes” (sic), Moro esclareceu, à época, que o registro de conversas entre os presos e seus advogados colhido, acidentalmente, como material probatório seria encaminhado ao colegiado de juízes de execução para evitar que as gravações fossem usadas em processos.

Todavia, ao contrário do imaginado por Moro, o sigilo profissional intrínseco à relação entre advogado e cliente não é uma prerrogativa colocada a serviço da autoridade policial ou judicial para que esta selecione aquilo que poderá utilizar como prova. Tampouco a “prevenção de crimes” é fundamento válido para a autorização de interceptações telefônicas.

Ora, a Constituição, em seus artigos 5º, incisos, X, XII e XIV, e 133 e o Estatuto da Advocacia, em seu artigo 7º, inciso II, garantem aquilo que entendemos por inviolabilidade do sigilo profissional do advogado. As exceções estão expressas na lei. Portanto, ou a prerrogativa existe e é respeitada, ou não. Não há semissigilo, sigilo parcial ou sigilo mitigado. A mesma garantia está positivada na Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 8º, 2, d).

Tudo indica termos chegados ao limite. Esticamos a corda até não ser mais possível. Se o CNJ e os tribunais superiores mostrarem-se complacentes com a relativização das prerrogativas dos advogados, estarão colaborando para o reforço de um imaginário perigosamente consequencialista, institucionalizando a política judiciária segundo a qual os fins justificam os meios.

Os fatos, aqui, são muito claros. Moro cometeu um rosário de ilícitos e equívocos administrativos. Tudo isso já é de conhecimento do STF e foi reconhecido pelo próprio Moro, que não somente confessou ser “irregular” (sic) o grampo das conversas de Lula e Dilma como também pediu sinceras escusas à corte pelo fato de ter divulgado, ilicitamente, um conjunto de gravações. Para completar, quando negou saber que o escritório havia sido “grampeado”, foi imediatamente desmentido pelos ofícios disponibilizados pela Telefônica!

Em suma, para fechar, recorro a uma frase que Moro gosta muito de dizer: ninguém está acima da lei. Se isso é verdade — e eu acredito que sim —, então Moro se enredou no paradoxo do cretense, em que Epimênides afirma: “Todos os cretenses são mentirosos”. Só que ele era um cretense. Logo, se era cretense, era mentiroso. E, portanto, sua premissa não era verdadeira. Para sair desse paradoxo, só há dois modos: ou ele deixar de ser cretense, o que é impossível; ou elaborar um raciocínio lógico por meio do qual “o meu enunciado não faz parte do conjunto dos enunciados aos quais eu me refiro”. Aliás, essa foi a saída de Kelsen para justificar a norma fundamental. O único problema é, no caso de Moro, ele não pode sustentar — nem mesmo ficticiamente — estar acima da lei e tampouco fazer crer que os advogados estejam abaixo da lei.

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