Exceção permanente

Gravações em presídio do Paraná ocorrem desde 2007

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25 de junho de 2010, 20h26

Não é só em Campo Grande que as conversas entre presos e seus advogados são espionadas pela Justiça e o Ministério Público. Uma representação entregue nesta sexta-feira (25/6) pela seccional paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil ao Conselho Federal da entidade denuncia que presídios do Sul não estão livres das câmeras indiscretas nos parlatórios. Autorizada por um colegiado de juízes de execução penal no Paraná, a gravação em aúdio e vídeo das conversas na Penitenciária Federal de Catanduvas, ao contrário do que ocorre em Mato Grosso do Sul, é institucionalizada. Advogados e presos sabem que estão sendo monitorados. Por ordem da Justiça, agentes penitenciários informam a situação aos defensores assim que estes põem os pés no presídio, sem exceção.

A prática vem desde 2007. Catanduvas, presídio de segurança máxima, é destino dos criminosos mais perigosos do país, chefes do crime organizado. O estabelecimento já abrigou Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira Mar, e Márcio Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, ambos ligados ao Comando Vermelho, que age nos presídios fluminenses. Segundo o colegiado de juízes da Seção de Execução Federal que ordenou as escutas, foi depois de episódios em que advogados atuaram como mensageiros da organização, levando para fora da detenção ordens para a prática de crimes, que se resolveu monitorar, com o conhecimento de detentos e advogados, todas as conversas nos parlatórios.

A decisão só chegou recentemente ao conhecimento da seccional, segundo o secretário-geral da entidade, Juliano Breda. Em ofício encaminhado ao comando nacional da OAB, o advogado revela despacho de fevereiro em que os juízes Sérgio Fernando Moro, da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba, e Leoberto Simão Schmitt Junior, substituto na 3ª Vara, autorizam a prorrogação das gravações no presídio de Catanduvas por 180 dias. O despacho atende a um pedido do diretor da penitenciária, Fabiano Bordignon, para “monitoramento ambiental do contato entre presos do Presídio Federal de Catanduvas e os seus visitantes, inclusive advogados, além da realização de outras escutas ambientais no presídio”.

Para Breda, o comportamento é inconstitucional, além de violar a privacidade entre advogado e cliente prevista na Lei federal 8.906/1994, o Estatuto da OAB. “O conteúdo da decisão revela um grave e frontal atentado contra as prerrogativas profissionais dos advogados, ao determinar que todos — absolutamente todos — os contatos entre presos e advogados na Penitenciária Federal de Catanduvas sejam monitorados e gravados, independentemente da existência de indícios da prática de infração penal pelos defensores”, diz o ofício. A situação já chegou ao conhecimento do presidente da OAB, Ophir Cavalcante Junior, que prometeu tomar providências.

Classe suspeita
O monitoramento não inclui defensores públicos, autoridades públicas e membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, que segundo o juiz federal Sérgio Moro, “não estão sujeitos a cooptação com os criminosos”, por não terem “vínculo estreito” com os detentos e poderem não retornar mais ao presídio em caso de pressão das organizações. Para o secretário-geral da OAB-PR, é uma “injustificável discriminação aos advogados privados”. Segundo Ophir Cavalcante, a diferenciação é “uma maneira indireta de dizer que apenas o advogado pode ser sócio do crime”.

O presidente da OAB afirma que o monitoramento de entrevistas só é permitido pela lei se o advogado estiver sob investigação. “Fora de indiciamento em processo criminal, a medida é arbitrária e uma tentativa de se justificar que, para combater o crime, pode-se violar o princípio da ampla defesa.”

A explicação da Justiça está no intuito para o qual os presídios federais foram criados, em 2006. O sentido era o de isolar chefes do crime, principalmente depois dos atentados organizados pelo chamado Primeiro Comando da Capital, o PCC, organização com atuação dentro e fora das detenções. Em maio de 2006, ataques planejados a delegacias e bases policiais, além de ameaças de bomba, provocaram pânico na população paulistana. A ordem para os ataques saiu de dentro dos presídios.

Em março de 2009, a advogada Elker Cristina Jorge foi acusada de ter levado uma carta do PCC aos chefes do Comando Vermelho em Catanduvas. A carta, interceptada com a advogada, era, segundo a Justiça, uma espécie de reconciliação entre as organizações, com relatos de ordens para crimes e retaliações. Segundo a direção do presídio, a advogada fez mais de 70 visitas a prisioneiros desde 2007, o que motivou sua prisão em flagrante. Pelo menos oito episódios semelhantes foram relatados pelo diretor de Catanduvas, Fabiano Bordignon, o que inclui uma suposta ordem para o assassinato de um juiz estadual de execução penal.

“Os fatos confirmam a necessidade de um controle dos contatos dos presos com os seus visitantes”, diz decisão colegiada de maio de 2009, proferida por seis juízes de execução federal do estado. Segundo Moro, a medida protege os próprios advogados, já que “evita que eles sejam pressionados a servir como mensageiros”, e fecha a brecha mantida aberta pela legislação mesmo nos presídios federais, onde o contato com o mundo exterior é restrito. “Os presos persistem recebendo visitas de familiares, inclusive visitas íntimas, e de advogados”, justifica a decisão, “o que tem frustrado os objetivos principais do sistema”.

Estado de sítio
Embora reconheça que a medida é de exceção, Moro afirma que sua manutenção é necessária devido ao “perfil dos criminosos nos presídios federais”. “Eles estão sob regime de exceção, todo presídio de segurança máxima precisa ter controle do contato do preso com o mundo exterior”, diz.

Ao renovar a autorização das gravações, em fevereiro, Sérgio Moro e Leoberto Schmitt justificaram a prorrogação por não haver “motivos para alterar o decidido”. No entanto, a Lei de Interceptações Telefônicas, a Lei 9.296/1996, prevê que deve haver motivo específico para prorrogar as escutas, e não para interrompê-las. Os períodos autorizados são de 15 dias, prorrogáveis por mais 15, e não de 180 dias, como diz a decisão. “A escuta em parlatório não é regulada pela Lei de Interceptações”, contesta Moro.

O juiz também interpreta o artigo 41 da Lei de Execuções Penais para manter o procedimento. O parágrafo único do dispositivo relativiza o direito do preso de ter “contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes”. Para Moro, quando a Lei 7.210/1984 afirma que os direitos podem ser “suspensos ou restringidos”, dá abertura para as gravações.

As escutas, em sua opinião, não violam o direito dos presos à ampla defesa. “O objetivo é prevenir a prática de novos crimes, e não investigar os passados”, explica. Segundo o juiz, provas colhidas durante as gravações não podem ser usadas nos processos em andamento. “O conteúdo vai para o Judiciário, que resolve se encaminha ou não ao Ministério Público, se houver a prática de novos crimes”, diz. “Até hoje, isso tem sido resguardado, e nenhum advogado reclamou. Pode-se dizer que é feito com concordância das partes, porque ninguém se opôs.”

Controle do Judiciário
O caso deve ser encaminhado ao Conselho Nacional de Justiça, segundo o presidente da Ordem, Ophir Cavalcante. Ele prometeu expor, na próxima segunda-feira (28/6), a questão aos membros do Conselho Federal, e sugerir a representação. “Não é um ato jurisdicional, é administrativo”, explica. Por esse motivo, ele afirma não caber Mandado de Segurança contra a decisão. O secretário da OAB-PR, no entanto, afirma que entrará com o MS para fechar as duas frentes.

Para Ophir, embora os casos de cooptação de advogados nos presídios sejam graves, não podem justificar a violação da dignidade e o direito à defesa de todos os presos, já que há detentos vindos de todo o Brasil a Catanduvas. “Isso abre a porta para o arbítrio e a falência do princípio da ampla defesa”, afirma. “Juiz não pode ter a brilhante ideia de monitorar tudo e todos para alcançar o advogado envolvido.”

Meios e fins
Nessa sexta, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa criticou as escutas feitas em parlatórios nos presídios federais. As primeiras denúncias foram feitas contra a prática no presídio federal de Campo Grande. A acusação é investigada em processo administrativo no Ministério da Justiça, por meio de inquérito policial, e a participação de procuradores está sendo verificada em processo aberto na Comissão Permanente do Sistema Penitenciário criada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (Processo 000.000.00745/2009-15).

De acordo com o IDDD, “as conversas mantidas entre advogado e cliente são invioláveis e seu sigilo é assegurado pela Constituição. Nem mesmo uma decisão judicial pode abrir caminho para a escuta nos parlatórios, lembrando que é este o único lugar destinado para que o preso possa com liberdade conversar com seu defensor e, com isso, propiciar o pleno exercício do direito de defesa”. A nota é assinada pela presidente da entidade, Marina Dias.

O Instituto dos Advogados Brasileiros também protestou, afirmando repudiar “enfaticamente tal iniciativa, eis que, vulnerando a inviolabilidade da comunicação do advogado com seu cliente, afronta a Constituição Federal e o Estatuto da Advocacia”, segundo seu presidente, Fernando Fragoso.

Já a Associação Nacional dos Procuradores Federais, a exemplo da Associação dos Juízes Federais do Brasil, saiu em defesa do juiz federal Odilon de Oliveira, que autorizou as gravações em Mato Grosso do Sul. “A inviolabilidade da relação entre advogado e cliente, garantida em lei, não pode ser usada para a prática de crimes. A autorização judicial de gravação de conversas entre presos e advogados, envolvidos nos crimes praticados por seus clientes, não viola as garantias fundamentais contidas na Constituição da República, ao contrário, é instrumento indispensável à manutenção da ordem pública e do Estado de Direito”, diz, em nota, o presidente da associação, Antonio Carlos Bigonha.

Clique aqui para ler a decisão que prorrogou as gravações.
Clique aqui para ler a representação da OAB-PR.

Processo 2007.70.00000137-2

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