Academia de Polícia

Inquérito policial é o mais importante instrumento de obtenção de provas

Autor

  • Márcio Adriano Anselmo

    é delegado da Polícia Federal doutor pela Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela UCB e especialista em investigação criminal pela ESP/ANP e em Direito do Estado pela UEL.

4 de agosto de 2015, 8h01

Spacca
A questão da prova no processo penal é sempre tema de incansáveis discussões na doutrina. Como bem coloca Gomes Filho[1], “é dos mais importantes da ciência do processo, na medida em que a correta verificação dos fatos em que se assentam as pretensões das partes é pressuposto fundamental para a prolação da decisão justa.”

O termo prova é utilizado tanto como meio de prova, como resultado, ou ainda como elementos de prova. Nesse sentido, cabe inicialmente situar o papel da investigação criminal e, mais precisamente, do inquérito policial, nesse cenário.

A investigação criminal é definida por Eliomar da Silva Pereira[2] como “pesquisa, ou conjunto de pesquisas, administrada estrategicamente, no curso da qual incidem certos conhecimentos operativos oriundos da teoria dos tipos e da teoria das provas, apresentando uma teorização sob várias perspectivas que concorrem para a compreensão de uma investigação criminal científica e juridicamente ponderada pelo respeito aos direitos fundamentais, segundo a doutrina do garantismo penal.”

O inquérito policial, por sua vez, é o instrumento, no direito processual penal, que legalmente materializa a investigação criminal, presidida pela autoridade policial, nos termos do artigo 4° do Código de Processo Penal. Acerca do inquérito policial, Pitombo destaca que[3]:

Não guarda cabimento asserir-se que surge como simples peça informativa; para, em seguida, afirmar que os meios de prova constantes do inquérito, servem para receber, ou rejeitar a acusação; prestam para decretar a prisão preventiva; ou para conceder a liberdade provisória; bastam, ainda, para determinar o arresto e o seqüestro de bens, por exemplo.

Dizer-se que o inquérito policial consiste em mero procedimento administrativo, que encerra, tão só, investigação, é simplificar, ao excesso, a realidade sensível. Resta-se, na necessidade esforçada de asseverar, em conseqüência, que a decisão judicial, que receba a denúncia ou a queixa, embasada em inquérito, volta no tempo e no espaço judiciarizando alguns atos do procedimento . As buscas e as apreensões, bem como todas as perícias – exames, vistorias e avaliações – emergem quais modelos de tal operação. Espécie de banho lustral sobre os meios de prova, encontráveis no inquérito. Sem esquecer eventual encarte de documentos – instrumentos ou papéis – aos autos de inquérito.

O inquérito policial materializa, portanto, uma fase anterior ao processo penal propriamente dito, destinada a subsidiar o início deste, atuando como um filtro, para, segundo Aury Lopes Jr[4], “purificar, aperfeiçoar, conhecer o certo”. Por ora, nos ocuparemos da relação entre teoria das provas e inquérito policial. Usando-se a perspectiva de Alexandre Morais da Rosa[5], podemos, sem dúvida, compreender também a fase pré-processual como um jogo, marcado pela estratégia e tática dele decorrentes. Assim, não se pode desconsiderar a fase da investigação preliminar, sobretudo em razão de seu papel na formação do convencimento do juiz, assim como na formação do juízo do órgão acusador ou, por outro lado, da defesa. Claro está que a investigação criminal não se destina unicamente à acusação, mas sim ao esclarecimento de fatos apontados como infrações penais e sua respectiva autoria.

Embora seja recorrente na doutrina a expressão de que não se produz prova no inquérito policial, tal expressão apresenta-se falaciosa, uma vez que a quase totalidade dos elementos probatórios carreados às ações penais são identificados ou produzidos no curso da investigação criminal na fase pré-processual, ou seja, no curso do inquérito. Ou seja, as tão conhecidas “operações policiais”, em sua grade maioria, não são nada além do que uma fase de um inquérito policial, destinada à arrecadação de provas e indícios de autoria e materialidade de infrações penais.

Adota-se a tradicional classificação das provas descrita por Malatesta, que classifica as provas conforme três critérios: objeto, sujeito e forma. A classificação quanto à forma nos interessa aqui, segundo a qual forma da prova é a modalidade ou maneira pela qual se apresenta. Quanto à forma, a prova pode ser testemunhal, documental ou material. Entre as três formas, apenas a prova testemunhal é a que necessariamente deve ser produzida em juízo, no curso da ação penal, ainda sujeita a exceções. Da mesma forma, Antonio Scarance[6] destaca como meios de prova típicos as provas testemunhal, pericial, reconhecimentos e a prova documental.

Quanto à prova documental, é pacífico na doutrina ser submetida ao contraditório diferido ou postergado. Ou seja, a mesma é identificada, colhida e inserida no caderno probatório e será submetida ao contraditório em momento posterior, no curso da ação penal.

As provas periciais, igualmente, são produzidas, em sua grande maioria, no curso do inquérito policial e submetidas ao contraditório no curso da ação penal.

Ainda citando Antonio Scarance[7], ao tratar dos meios de pesquisa ou obtenção de prova, o autor os engloba em quatro grupos: exames, vistorias e revistas; buscas, apreensões e sequestros; as interceptações, as escutas e as quebras de sigilo; e as ações especiais para investigação da criminalidade organizada. Dessas medidas, notadamente cautelares, em sua grande maioria são empregadas no curso do inquérito policial.

E frise-se ainda que cada vez mais a fase de investigação preliminar tem sido permeada de atos em que se assegura o contraditório que, embora de maneira mitigada, tem sido presente.

Ainda com relação aos meios de investigação da prova que, segundo Tonini[8], tem como característica a questão da surpresa, que permite a obtenção da fonte de prova, é bom destacar que são produzidos, em sua grande maioria, no curso do inquérito policial.

Autores como Aury Lopes Júnior e Ricardo Jacobsen Gloeckner[9], apesar de reconhecerem a importância do inquérito policial, sobretudo por servirem de base para a decretação de medidas cautelares reais e pessoais, destacam que as provas renováveis, como a testemunhal, acareações e reconhecimentos (quanto a estes últimos, discordamos dos autores, por considerá-los irrepetíveis) devam ser reproduzidas na fase processual, com que concordamos em absoluto, o mesmo não ocorre com os outros meios de prova.

Tampouco a distinção entre atos de prova e atos de investigação preconizada pelos referidos autores[10], ainda nos parece não oferecer solução com relação às fontes de prova identificadas por meio do inquérito policial, notadamente quando os autores sugerem, como medida extrema, a exclusão do inquérito policial dos autos do processo, não deixando claro qual seria o caminho a ser adotado com as provas documentais já carreadas.

O artigo 155 Código de Processo Penal, com a nova redação dada pela Lei 11.690/2008, segundo a qual “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas” (grifo nosso) vem a reforçar ainda a importância a fase de investigação preliminar.

Embora o espaço aqui não permita a discussão acerca das provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, fato é que o Código de Processo Penal, em sua redação atual, autoriza textualmente ao juiz utilizar-se, na formação de sua convicção, das provas produzidas nessas modalidades.

Eliomar da Silva Pereira[11] destaca ainda que “embora não existam partes e contraditório, no inquérito policial considerado como procedimento ‘penal de investigação no Brasil’, há um sujeito de direito (portanto não apenas um objeto da investigação) com interesses legítimos à defesa, talvez não ampla, mas em alguma medida proporcional aos atos de restrição ao âmbito de proteção de direitos fundamentais do investigado.”

A posição do autor é reforçada pela decisão do STF no HC 73.271/SP, pelo ministro Celso de Mello, de onde se extrai que:

A unilateralidade das investigações preparatórias da ação penal não autoriza a Polícia Judiciária a desrespeitar as garantias jurídicas que assistem ao indiciado, que não mais pode ser considerado mero objeto de investigações.

O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação policial.

Vale destacar ainda decisão recente do STJ no RHC 36.109/SP, relatado pelo ministro Jorge Mussi, de cuja ementa se extrai que:

5. Embora o Ministério Público seja o principal destinatário dos elementos de convicção reunidos no inquérito policial, o processo penal como um todo é orientado pelo princípio da verdade real, de modo que eventuais novas provas obtidas em sede inquisitorial, ainda que já iniciada a ação penal, podem e devem ser juntadas aos autos. 6. O simples fato de já haver processo penal deflagrado não altera a natureza das provas colhidas pela autoridade policial, que permanecem inquisitivas, prescindindo de contraditório para a sua obtenção, cuja validade para a formação da convicção do magistrado está condicionada à observância do preceito contido no artigo 155 do Código de Processo Penal.

Observa-se, portanto, que a Polícia Judiciária desempenha papel fundamental na fase da investigação preliminar, cuja atuação é imperativa para a fase de persecução penal consubstanciada na ação penal. Some-se ainda o fato de que os elementos angariados pela autoridade policial no curso do inquérito são a base para a decretação das medidas cautelares que afetam diretamente direitos fundamentais do investigado, tais como a quebra de sigilo das comunicações telefônicas e os sigilos bancário e fiscal.

Dos atos produzidos no inquérito policial, portanto, apenas a oitiva de testemunhas e eventual acareação são medidas que devem ser repetidas em juízo, ao passo que todo o conjunto de documentos e perícias realizados no curso do mesmo são utilizados como prova na ação penal.

Por fim, sem perder-se em questões de efetividade, eficiência ou eficácia do inquérito policial, novamente em razão da limitação de espaço, é perceptível por mera observação empírica, a qualquer operador na seara do Direito Penal, que o inquérito policial é o mais importante instrumento de colheita de provas de infrações penais.  

Embora não se possa deixar de apontar, para os crimes de pequena monta, a banalidade do instrumento das prisões, sejam elas provisórias ou não, não há que se discutir que o Brasil possui hoje uma população carcerária gigantesca, alcançando, segundo dados divulgados recentemente pelo Ministério da Justiça[12], números que ultrapassam 600 mil presos. Assim, sem perder-se em discussões filosóficas, o inquérito policial está longe de ser considerado um instrumento arcaico e ineficaz para os seus propósitos e apresenta-se como a base da absoluta maioria das ações penais em curso ou já julgadas no país.


[1] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Notas sobre a terminologia da prova (reflexos no processo penal brasileiro). In: YARSHELL, Flavio Luiz  e MORAES, Maurício Zanoide. Estudos em homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2005, p. 303.
[2] PEREIRA, Eliomar da Silva. Teoria da Investigação Criminal. Coimbra: Almedina, 2011.
[3] PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. O indiciamento como ato de polícia judiciária. Revista dos Tribunais, n. 577, p. 313.
[4] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 280.
[5] ROSA, Alexandre Morais da. A teoria dos jogos aplicada ao processo penal. 2ª ed. Empório do Direito, 2015.
[6] FERNANDES, Antonio Scarance. Tipicidade e sucedâneos de prova. In: Fernandes, Antonio Scarance; ALMEIDA, José Raul Gavião de; e MORAES, Maurício Zanoide de. Provas no Processo Penal – Estudo Comparado. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 13-45.
[7] Op. Cit., p. 24-26;
[8] TONINI, Paolo. A prova no processo penal italiano. Trad: Alexandra Martins e Daniela Mróz. São Paulo: RT, 2002, p. 242-243.
[9] LOPES JUNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação Preliminar no Processo Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 324.
[10] Op. Cit. 322-323.
[11] PEREIRA, Eliomar da Silva. Introdução: Investigação Criminal, Inquérito Policial e Polícia Judiciária. In: PEREIRA, Eliomar da Silva e DEZAN, Sandro Lúcio. Investigação criminal conduzida por Delegado de Polícia. Comentários à Lei n° 12.830/2013. Curitiba: Juruá, 2013.
[12] Conforme divulgado em http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/06/23/prisoes-aumentam-e-brasil-tem-4-maior-populacao-carceraria-do-mundo.htm. Acesso em 1/8/2015.

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