Ditaduras estrangeiras

Crimes de Estado não prescrevem, diz Rodrigo Janot

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19 de outubro de 2013, 7h55

Crimes de Estado cometidos sob regimes totalitários são crimes contra a humanidade e, nessa condição, não prescrevem. É o que defende o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ao pedir, em parecer, que o Supremo Tribunal Federal decrete a prisão preventiva do ex-policial argentino Manuel Alfredo Montenegro. O caso é de relatoria do ministro Gilmar Mendes.

O ex-policial é acusado, na Argentina, de prender ilegalmente e torturar três pessoas durante a ditadura militar de lá, que durou de 1972 a 1977. Ele teve prisão preventiva decretada em fevereiro de 2011 pelo Juízo Federal de Primeira Instância em Matéria Criminal e Correcional de Posadas, na Argentina. Hoje, segundo informações da Interpol no Brasil, Montenegro mora em Itaqui, no Rio Grande do Sul.

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No parecer, Janot (foto) afirma que tanto no Brasil quanto na Argentina os crimes contra a humanidade são imprescritíveis. E os crimes cometidos durante ditaduras se encaixam nessa classificação. Isso tanto do ponto de vista dos princípios do Direito quanto do ponto de vista dos costumes sociais, ou consuetudinário.

O PGR argumenta que o crime de prisão ilegal não tem a mesma definição no Brasil e na Argentina, mas o crime de tortura tem. E por isso Montenegro deve ser extraditado.

Anistia
Janot discute a questão da anistia aos que cometeram crimes políticos. No Brasil, vige a Lei 6.683/1979, que concedeu essa anistia aos crimes cometidos entre setembro de 1961 e agosto de 1979, durante a ditadura militar brasileira. A lei já foi alvo de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no Supremo Tribunal Federal, que negou o pedido. A alegação era de que a lei não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988.

Na Argentina, as duas leis que concediam anistia aos membros das Forças Armadas e das forças de segurança que cometeram crimes sob o regime totalitário foram declaradas inconstitucionais pela Corte Suprema de Justiça. “A progressiva evolução do direito internacional dos direitos humanos (…) já não autoriza o Estado a tomar decisões cuja conseqüência seja a renúncia à persecução penal dos crimes de lesa humanidade em prol de uma convivência social pacífica baseada no esquecimento de feitos dessa natureza”, diz a decisão do tribunal argentino.

Por mais que no Brasil exista uma Lei de Anistia declarada constitucional pelo Supremo, para Janot ela só se aplica à ditadura brasileira. “A Lei da Anistia faz, em todo o seu texto, múltiplas referências a aspectos muito próprios da realidade institucional brasileira, como reversão ao serviço público ou ao serviço militar, o cômputo de tempo de serviço ficto para fins de aposentadoria e as regras sobre declaração de ausência, revelando que se trata de lei que somente teve em vista fatos ocorridos no Brasil.” 

A prescrição
O parecer do procurador-geral da República afirma que, como os crimes cometidos pela ditadura argentina não foram anistiados, o crime de tortura é imprescritível, pois cometido contra a humanidade. Para justificar, cita o penalista egípcio M. Cherif Bassiouni, “possivelmente a maior referência doutrinária contemporânea em Direito Penal Internacional”.

Bassiouni escreveu que “a punibilidade do autor independentemente de tempo e lugar é um ingrediente necessário da responsabilidade penal internacional, especialmente na medida em que não existe mecanismo repressivo supranacional capaz de aplicar consistentemente a lei”. “Insistir na persecução é, nesses casos, um dever moral, ético, jurídico e pragmático que nenhuma quantidade de tempo decorrido deve apagar”, completou Bassiouni.

E Janot complementa: “Nos regimes autoritários, os que querem o socorro do Direito contra os crimes praticados pelos agentes respectivos não deixam de obtê-lo porque estão dormindo, e sim porque estão de olhos fechados, muitas vezes vendados; não deixam de obtê-lo porque estão em repouso, e sim porque estão paralisados, muitas vezes manietados. Falar em sanção contra a inércia quando não é possível sair dela constitui, no mínimo, grave contrassenso e, no limite, hipocrisia hermenêutica”.

Passo adiante
Com isso, Janot faz uma interpretação extensiva do que vem dizendo o Supremo Tribunal Federal, segundo análise de Paulo Abrão, secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão Nacional da Anistia, ambas do Ministério da Justiça. Ele falou em palestra a jornalistas, na sexta-feira (18/10), em evento organizado pelo Ministério.

É que a jurisprudência do STF está definida no sentido de que os crimes de desaparecimento forçado (ou “sequestro qualificado”, como surge nas pesquisas no site do tribunal) cometidos por Estados totalitários não prescrevem, justamente por serem crimes contra a humanidade.

O último julgado é de 2011, de relatoria da ministra Cármen Lúcia (Extradição 1.150), e discute justamente um caso argentino. Um ex-policial é acusado de homicídio e sequestro qualificado. O primeiro crime prescreveu, segundo a relatora. O segundo é imprescritível. “A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é no sentido de que o crime de sequestro qualificado tem natureza permanente e, por isso, o prazo prescricional começa a fluir a partir da cessação da permanência, não da data do início do sequestro”, escreveu a ministra.

Cármen Lúcia seguiu o que pedia o parecer da PGR à época: “Em relação ao sequestro não há que se falar em prescrição, pois se trata de crime permanente tanto no Brasil como na Argentina. Nesse caso, o resultado delituoso se protrai no tempo enquanto a vítima estiver privada de sua liberdade e o prazo prescricional só terá início após a interrupção da ação do agente”. A ministra também cita precedente do ministro Marco Aurélio, de 2009, que também se refere a um caso de crime cometido por ex-oficial da ditadura militar argentina.

Regra de ouro
Com a declaração da recepção da Lei da Anistia brasileira pela Constituição de 88 e as decisões a respeito da ditadura argentina, o Supremo sinaliza que a imprescritibilidade se aplica apenas a casos fora do Brasil, segundo Paulo Abrão. “Isso é um recado para o mundo que você, ditador do futuro, tome o poder e faça o que quiser. Mas antes de deixar o posto, edite uma lei que te absolva de todos os seus crimes. A Lei da Anistia virou uma regra de ouro para ditadores”, declarou Abrão.

O importante no parecer de Janot, afirma, é que pela primeira vez os crimes de tortura e de prisão ilegal cometidos por funcionários de governos ditatoriais estão sendo equiparados aos crimes de desaparecimento forçado, nos termos da jurisprudência do STF. Mas só para os casos não brasileiros. 

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