Bom senso

Antes do STF, juiz permitia aborto de anencéfalos

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8 de junho de 2012, 14h27

Mais de 10 anos antes de o Supremo Tribunal Federal discutir e autorizar o aborto nos casos em que o feto não tem cérebro ou a parte vital dele, a Vara do Júri de Santos já havia criado uma jurisprudência na comarca sobre o tema.

Após a primeira decisão nesse sentido, em agosto de 2000, até dezembro de 2005, outras oito gestantes da região foram autorizadas a fazerem a interrupção da gravidez sem que elas e os médicos sentassem nos banco dos réus para serem julgados pelo crime de aborto, previsto no artigo 128 do Código Penal.

Lotado na Vara do Júri de Santos naquela época e, atualmente, titular do 2º Tribunal do Júri de São Paulo, no Fórum de Santana, o juiz Gilberto Ferreira da Cruz é direto ao relembrar das decisões que adotou sem ter expressa previsão legal nem orientação consolidada do STF.

“Direito é bom senso e o fato de a gestante de feto anencéfalo não contar com autorização prevista em lei para realizar o aborto agride o meu bom senso”, afirma Ferreira da Cruz. O juiz, então, nas nove vezes em que foi provocado a apreciar a matéria, desenvolveu raciocínio jurídico próprio para fundamentar o seu ponto de vista.

Todas as decisões foram tomadas ao analisar Medidas Cautelares criminais inominadas. Elas resultaram na expedição de alvarás autorizando as gestantes a realizar o aborto, desde que as intervenções fossem feitas por médico especializado e em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido.

Sessão histórica
Em abril deste ano, ao apreciar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ajuizada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde, o Supremo decidiu por oito votos a dois que não é crime a interrupção da gravidez de fetos com diagnóstico de anencefalia.

A sessão durou dois dias e alguns ministros consideraram o “julgamento mais importante de toda a história da corte”. Mais que não considerar crime, sete dos dez votantes sustentaram que, na hipótese em exame, a interrupção da gestação sequer pode ser considerada aborto, ante a inviabilidade de vida fora do útero da mãe.

O Código Penal tipifica o aborto como crime, mas prevê duas hipóteses em que é autorizada a interrupção da gravidez. A primeira delas, denominada aborto necessário, é quando a gravidez põe em risco a vida de gestante. A outra, chamada de aborto sentimental, permite a interrupção de gravidez decorrente de estupro.

Com base na recente decisão do STF, que põe fim à polêmica jurídica sobre o assunto, o Conselho Federal de Medicina editou neste mês regras regulamentando o aborto de fetos anencéfalos. Conforme elas, que têm força de lei para médicos, estes podem fazer a interrupção de gravidez desde que observem alguns requisitos.

O primeiro deles, obviamente, é o interesse e a concordância da gestante. Também é necessário que haja atestado de anencefalia do feto assinado por dois médicos, além de exame de ultrassonografia, a partir da 12ª semana de gravidez, comprovando o diagnóstico.

Leia a entrevista com o juiz Gilberto Ferreira da Cruz:
ConJur — Sem o Código Penal autorizar o aborto na hipótese sob exame e sem o recente entendimento do STF, qual o fundamento adotado nas Medidas Cautelares ajuizadas entre 2000 e 2005, em Santos, para autorizar gestantes de fetos anencéfalos a realizar aborto?
Gilberto Ferreira da Cruz — Direito é bom senso. Se o legislador permite o aborto de um feto sadio, nos casos de comprovado risco de vida da gestante ou de gravidez decorrente de estupro, porque o Direito Penal, mesmo silenciando, proibiria o aborto de um feto anencéfalo, sem qualquer viabilidade de vida extrauterina?

ConJur — Como superar a falta de previsão legal?
Gilberto Ferreira da Cruz — A interpretação extensiva e analógica, no Direito Penal, é proibida apenas para as normas incriminadoras, a fim de que não sejam violados os princípios da legalidade e da anterioridade (não existe crime nem pena sem lei anterior que os defina). No entanto, as normas penais permissivas admitem esse tipo de interpretação e a analogia.

ConJur — O senhor usou Direito Comparado?
Gilberto Ferreira da Cruz — As legislações mais modernas e atualizadas com a ciência médica, como a de Portugal, sem hipocrisias ou argumentos pessoais retrógrados, permitem o aborto executado por médico, desde que fundado na defesa da integridade psicológica da gestante ou nos casos de malformação congênita ou moléstia incurável.

ConJur — Sobre o silêncio da legislação brasileira, o que comentar?
Gilberto Ferreira da Cruz — Por que não suprir lacuna penal tão grotesca com a interpretação analógica? Em 1940, quando foi editado o nosso Código Penal, não era possível diagnosticar a anencefalia do feto. Se, naquela época, existisse esse recurso da Medicina, acredito que o legislador acrescentaria essa hipótese de aborto às duas que são legalmente autorizadas.

ConJur — Além da condição específica do feto, as suas decisões também levaram em conta a situação da gestante e do pai da criança?
Gilberto Ferreira da Cruz — Claro que sim, porque estávamos diante de um quadro em que a grávida esperava a morte e não a vida. Tanto para a mulher quanto para o seu companheiro, a gestação era uma tortura reiterada, que, na maioria das vezes, poderia produzir sequelas ao casal ao ponto de ele não querer uma nova gravidez. Sabedores do quadro de anencefalia, por antecipação científica inconteste, a gestante e o pai biológico passavam a vivenciar situação de dano psicológico intenso e incalculável, porque o feto teria a sua vida naturalmente ceifada ao final da gestação ou logo após o parto.

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