Dentro do figurino

Supremo fortalece o papel de investigação das CPIs

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16 de dezembro de 2005, 19h56

Em meio a uma seqüência de revogações de atos irregulares de comissões parlamentares, o Supremo Tribunal Federal amparou fortemente, nesta sexta-feira (16/12), as decisões da CPI dos Correios.

No caso concreto, o empresário Renato Galli foi ao tribunal pedir a restauração de seus sigilos fiscal, bancário e telefônico; e a proibição de divulgação dos dados a seu respeito pela comissão — baseado no fato de que a CPI não deteria fundamentos e os poderes necessários para as decisões que tomou.

O ministro Celso de Mello, em despacho detalhado, contundente e didático, indeferiu a liminar pedida e respaldou o papel da CPI. O ministro entendeu que foram respeitados os requisitos legais exigidos para a determinação de quebrar os sigilos. A decisão enfatiza que “o que o Supremo tem censurado — e desautorizado — é a divulgação indevida, desnecessária, imotivada ou sem justa causa dos registros sigilosos”. Ou seja, o STF não pode proibir que o relatório da CPI —, a ser oferecido à apreciação dos parlamentares e da sociedade para aferição da culpabilidade dos acusados — omita as provas e indícios da responsabilidade dos investigados no crime em questão. Diferentemente de interpretação ventilada, o ministro não liberou a CPI para vazar notícias protegidas por sigilo. O despacho, como se lê abaixo, dá status de informação de interesse público aos dados coletados, cuja divulgação se sobrepõe ao interesse particular do acusado em mantê-la em sigilo.

Segundo Celso de Mello, a alegada falta de pertinência entre a atividade financeira do corretor de valores e o foco da CPMI não é suficiente para inviabilizar o desenvolvimento das investigações parlamentares.

Leia a íntegra da decisão de Celso de Mello

MED. CAUT. EM MANDADO DE SEGURANÇA 25.717-2 DISTRITO FEDERAL

RELATOR

:

MIN. CELSO DE MELLO

IMPETRANTE(S)

:

RENATO LUCIANO GALLI

ADVOGADO(A/S)

:

KARLA APARECIDA DE SOUZA MOTTA

IMPETRADO(A/S)

:

PRESIDENTE DA COMISSÃO PARLAMENTAR MISTA DE INQUÉRITO – CPMI DOS CORREIOS

DECISÃO: O exame dos elementos produzidos na presente ação mandamental parece evidenciar, ao menos em juízo de estrita delibação, que o ato impugnado teria observado, quanto à sua fundamentação, as exigências fixadas pela jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, em tema de quebra de sigilos bancário, fiscal e telefônico (RTJ 173/805, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 174/844, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RTJ 177/229, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 178/263, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RTJ 182/560, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).

Cumpre notar, por necessário, que a resolução ora impugnada, considerados os fundamentos que dão suporte ao Requerimento nº 1.473/2005, apoiar-se-ia em elementos evidenciadores de causa provável, apta a legitimar, ao menos em tese, a medida excepcional da quebra (ou transferência) de registros sigilosos.

Impende salientar, ainda, que a alegada falta de pertinência entre a atividade financeira do impetrante e o âmbito material do inquérito parlamentar promovido pela CPMI dos Correios não basta, só por si, para inviabilizar o normal desenvolvimento do inquérito parlamentar, eis que se revela possível, a qualquer Comissão Parlamentar de Inquérito, ampliar, legitimamente, o campo de suas investigações, estendendo-as a outros eventos, sem incidir em transgressão constitucional, desde que tais eventos guardem conexão, próxima ou remota, com o fato determinado que motivou a apuração congressional.

Esse entendimentoque encontra apoio no magistério da doutrina (ALEXANDRE ISSA KIMURA, “CPI – Teoria e Prática”, p. 38/39, item n. 2.3.3., 2001, Juarez de Oliveira; ODACIR KLEIN, “Comissões Parlamentares de Inquérito – A Sociedade e o Cidadão”, p. 33/38, 1999, Fabris Editor, v.g.) – tem o beneplácito da jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal:

I. – A Comissão Parlamentar de Inquérito deve apurar fato determinado. C.F., art. 58, § 3º. Todavia, não está impedida de investigar fatos que se ligam, intimamente, com o fato principal. (…).

(RDA 209/242, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, Pleno – grifei)

Vale referir, neste ponto, ante a extrema pertinência de suas observações, o registro que o eminente Deputado Federal ROBERTO MAGALHÃES fez consignar no Relatório Final referente aos trabalhos da denominada “CPI do Orçamento”:

Quanto à determinação do fato, este não se haverá de reduzir a uma única ação ou atividade. Se assim fosse, as Casas do Parlamento haveriam de constituir comissões de inquérito para cada pequeno fato, isoladamente, ainda que esses fossem componentes de um universo maior de irregularidades. Por essa razão, a CPMI pode e deve perquirir e investigar todos os fatos relacionados ao motivo principal de sua criação – ainda que estes não tenham originalmente sido previstos.

……………………………………………….

Pelo princípio da verdade real, as comissões parlamentares de inquérito têm o poder-dever de aprofundar suas investigações até atingir o total esclarecimento do assunto, ainda que o fato determinado desdobre-se em outros originalmente não previstos no ato de criação da comissão e, também, desde que não se perca de vista o objeto de investigação, tendo-se por linha a determinada pelos investigadores e não pelos investigados (…).” (grifei)

Sob os aspectos ora realçados, portanto, e em face da aparente legitimidade jurídico-constitucional do ato ora impugnado, não vejo como acolher a pretendida concessão de medida liminar.

Cabe apreciar, ainda, a outra postulação cautelar deduzida pelo ora impetrante, que pretende seja a CPMI dos Correios impedida de divulgarqualquer dado ou elemento a que teve – ou eventualmente venha a ter – acesso (…), obstando-se, inclusive, que sejam eles reproduzidos em qualquer documento público ou que constem do Relatório Final da CPMI a ser divulgado de forma pública” (fls. 31 – grifei).

Ao examinar idêntica pretensão, quando do julgamento plenário do MS 23.639/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (RTJ 177/229-240), tive o ensejo de destacar, a propósito do tema, o que se segue:

Não vejo, contudo, como determinar à CPI/Narcotráfico que se abstenha de divulgar dados ou registros sigilosos, pois não posso presumir que um órgão estatal vá transgredir as leis da República, notadamente em face da circunstância de que a atividade estatal reveste-se da presunção juris tantum de legitimidade e de fidelidade ao ordenamento positivo.

Situações anômalas, inferidas de suposta infringência das normas legais, não podem ser imputadas, por simples presunção, a uma Comissão Parlamentar de Inquérito constituída no âmbito das Casas do Congresso Nacional, especialmente se o impetrante – sem qualquer suporte probatório idôneo – não é capaz de demonstrar que o órgão ora apontado como coator vá divulgar, sem justa causa, o conteúdo das informações sigilosas a que legitimamente teve acesso.

Não se desconhece que a Comissão Parlamentar de Inquérito, embora dispondo de competência constitucional para ordenar a quebra de sigilo de dados reservados, não pode, agindo arbitrariamente, conferir indevida publicidade a registros sobre os quais incide a cláusula de reserva derivada do sigilo bancário, do sigilo fiscal e do sigilo telefônico.

Ocorre, no entanto, que essa vedação somente inibirá a CPI nos casos em que inexistir justa causa que autorize a divulgação, por esse órgão de investigação legislativa, dos dados informativos a que teve legítimo acesso.

Foi por tal razão que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o MS 23.452/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, deixou assentado, no tema em questão, que a preservação da confidencialidade dos registros sigilosos poderá deixar de subsistir, se e quando houver justa causa que legitime, embora excepcionalmente, o ato de “disclosure”, tal como sucede naquelas hipóteses em que a revelação dos documentos reservados constitua uma imposição fundada em relevante motivo de interesse público:

“- Havendo justa causae achando-se configurada a necessidade de revelar os dados sigilosos, seja no relatório final dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito (como razão justificadora da adoção de medidas a serem implementadas pelo Poder Público), seja para efeito das comunicações destinadas ao Ministério Público ou a outros órgãos do Poder Público, para os fins a que se refere o art. 58, § 3º, da Constituição, seja, ainda, por razões imperiosas ditadas pelo interesse sociala divulgação do segredo, precisamente porque legitimada pelos fins que a motivaram, não configurará situação de ilicitude, muito embora traduza providência revestida de absoluto grau de excepcionalidade.

(RTJ 173/805-810, 809, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

A produção de relatórios parciais constitui prática que não traduz nem se qualifica como ato abusivo das Comissões Parlamentares de Inquérito, cujos trabalhos – porque voltados ao esclarecimento de ocorrências anômalas que afetam, gravemente, o interesse geral da sociedade e do Estado – devem estar sujeitos a permanente escrutínio público, representando, por isso mesmo, forma legítima de apresentação de resultados, ainda que setoriais, das atividades desenvolvidas ao longo do inquérito legislativo, assim permitindo que a coletividade exerça, sobre tais órgãos de investigação, a necessária fiscalização social.

Na realidade, a divulgação de relatórios parciais traduz a legítima expressão do necessário diálogo democrático que se estabelece entre a Comissão Parlamentar de Inquérito e os cidadãos da República, que têm direito público subjetivo à prestação de informações por parte dos órgãos parlamentares de representação popular, notadamente nos casos em que se registra – considerada a gravidade dos fatos sob investigação legislativa – direta repercussão sobre o interesse público.

O que esta Suprema Corte tem censurado – e desautorizado – é a divulgação indevida, desnecessária, imotivada ou sem justa causa dos registros sigilosos, pelo fato de inexistir, em tal contexto, qualquer razão idônea ou fundada no interesse público, cuja constatação, uma vez demonstrada, revela-se capaz de justificar, só por si, o ato excepcional de pública exposição, à coletividade, das informações legitimamente obtidas pela Comissão Parlamentar de Inquérito.

É o que se registra na espécie ora em exame, em que a CPMI dos Correios, exercendo uma competência que lhe foi deferida pela própria Constituição da República, está na iminência de praticar ato regular e legítimo – a divulgação de relatório parcial de suas atividades – que decorre do complexo de poderes de que esse órgão de investigação parlamentar está juridicamente investido.

Note-se, pois, que, sob a perspectiva em referência, a apresentação de relatório parcial pela CPI – de que conste menção a dados regularmente obtidos mediante legítima quebra de sigilo – não constitui ato impregnado de arbítrio, ajustando-se, ao contrário, a uma das hipóteses de divulgação dos resultados do inquérito parlamentar autorizadas pelo Supremo Tribunal Federal, como se vê, claramente, da decisão proferida no MS 23.452/RJ, de que fui Relator, consubstanciada, no ponto, em acórdão cujo teor vale rememorar uma vez mais:

A QUESTÃO DA DIVULGAÇÃO DOS DADOS RESERVADOS E O DEVER DE PRESERVAÇÃO DOS REGISTROS SIGILOSOS.

………………………………………………..

Havendo justa causae achando-se configurada a necessidade de revelar os dados sigilosos, seja no relatório final (…), seja para efeito das comunicações destinadas ao Ministério Público (…), seja, ainda, por razões imperiosas ditadas pelo interesse sociala divulgação do segredo, precisamente porque legitimada pelos fins que a motivaram, não configurará situação de ilicitude, muito embora traduza providência revestida de absoluto grau de excepcionalidade.

(RTJ 173/805-810, 809, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Por tais razões, indefiro o pedido de medida cautelar.

2. Requisitem-se informações ao órgão ora apontado como coator, encaminhando-se-lhe cópia da presente decisão.

Publique-se.

Brasília, 16 de dezembro de 2005.

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

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