Segunda Leitura: princípio da insignificância tem de ser equacionado
28 de dezembro de 2008, 7h45
Este rigor impiedoso foi abrandado na Europa, no século XX. Destroçada economicamente por força de duas guerras mundiais, com problemas de desemprego e escassez de alimentos, constatou-se a existência de uma nova realidade. Isto foi muito bem posto na película italiana do pós-guerra, “Ladrões de Bicicleta”, com o comediante “Totó”.
Vem daí a teoria do princípio da insignificância, através do qual certas condutas, por sua irrelevância para a ordem jurídica, deveriam ser consideradas atípicas. Claus Roxin foi seu grande mentor e países como Alemanha, Portugal e Áustria, incluíram-na em sua legislação. No Brasil o Ministro Francisco de Assis Toledo foi o seu maior defensor.
A nossa realidade social, de má distribuição da renda, migração campo-cidade, explosão populacional, pouca atenção à Segurança Pública e outros fatores, resultou no aumento da criminalidade. Crimes outrora raros (p. ex., roubo, seqüestro e estupro de crianças), tornaram-se rotineiros.
Para as infrações de menor gravidade, criaram-se medidas oportunas destinadas a atenuar o rigor penal. Assim surgiu a possibilidade de transação ou suspensão do processo (Lei 9.099/95) e, em casos de condenação, a substituição da pena corporal por restritiva de direitos (CP, artigo 43). Estas soluções são adequadas à nossa cultura, onde programas como o chamado “tolerância zero” não têm possibilidades de sucesso.
Porém, mesmo sendo possível a transação nos crimes de bagatela, apenados até 2 anos (Lei 9.099/95, artigo 61), há situações em que a legislação não dá uma solução ideal. Refiro-me, agora especificamente, aos pequenos furtos, punidos com pena corporal de 1 a 4 anos e multa (CP, artigo 155). Se o criminoso for primário e de pequeno valor a coisa furtada, a pena pode ser reduzida em até 2 terços ou aplicada apenas a de multa (CP, artigo 155, § 2º). Todavia, esta solução legal não atende aos múltiplos casos hoje existentes.
Com efeito, pequenos furtos tornaram-se prática diária em estabelecimentos comerciais de todo porte. Desodorantes, alimentos, pequenos objetos, são subtraídos por cidadãos economicamente debilitados. De um lado a crise social a agravar tal situação. Do outro, o comerciante que, para enfrentar este problema, contrata seguranças, instala complexos sistemas de filmagem e outras medidas que a tecnologia lhe oferece. Os custos não são pequenos. E podem acabar sendo repassados ao consumidor.
Nestes pequenos atos ilícitos, que somados se tornam grandes, as decisões judiciais não guardam uniformidade. Por vezes o infrator é solto tão logo se faz a comunicação da prisão em flagrante. Em outras, principalmente quando tem antecedentes, permanece preso por semanas ou meses. Nestes casos a divulgação pela mídia aponta a discrepância. Sempre haverá a comparação com o autor de uma grande fraude financeira que, em liberdade, responde a uma demorada ação penal. Ou o homicida que, mesmo condenado pelo Tribunal do Júri , com o veredicto confirmado pelo TJ, solto permanece até o julgamento de recursos ao STJ e STF.
Aqui é importante lembrar que as decisões judiciais têm sempre conseqüências além do caso concreto. Por exemplo, a ordem judicial de fornecimento de determinados remédios afeta o sistema de saúde. A solução dada a uma complexa causa ambiental (p. ex., construções de hidroelétrica), poderá ter resultados sociais e ambientais significativos . Por isso tudo, a responsabilidade do juiz é cada vez maior e ele não pode se limitar à norma posta. Tem que ir além, conhecer, interessar-se, capacitar-se em áreas interdisciplinares.
Na esfera criminal dá-se o mesmo. E nos pequenos furtos, naqueles em que pode ser aplicado o princípio da insignificância, também. Vejamos. Praticado o crime, aciona-se a Polícia Militar, que leva o fato à Autoridade Policial Civil. Disto resultará um inquérito, com ou sem prisão em flagrante. Na fase judicial as decisões não são uniformes. O autor do furto poderá ou não ser denunciado ou condenado. Depende do magistrado que examina o caso. Isto gera insegurança jurídica para a vítima que, sem nada compreender e descrendo do sistema judicial, passa a ser, dele, crítica severa. E, em casos extremos, poderá chegar a contratar terceiros (criminalidade organizada) para resolver o que o Estado não resolve. Dar-lhe segurança.
Mas o problema não se resume à vítima. O Delegado de Polícia também fica sem saber como proceder. Se autuar o infrator em flagrante, poderá ver seu ato complexo e demorado revelar-se inútil. Então, ele pode não abrir inquérito, invocando o princípio da insignificância? Se não instaurar, arrisca-se a ser acusado da prática de prevaricação (CP, artigo 319)? E, se abrir um inquérito que não levará a nada, estará perdendo tempo precioso que poderia ser utilizado em casos de importância? Não chegou o momento de aplicar-se o critério da seletividade na ação policial, investigando só o que é de maior relevância?
Em suma, o princípio da insignificância é importante, mas precisa ser devidamente equacionado. É necessário que a lei defina quando pode ser reconhecido, poupando a instauração de inquéritos ou ações penais inúteis. Ou, alternativamente, que o crime de furto simples tenha a pena máxima reduzida a 2 anos, permitindo que a ocorrência seja objeto de simples Termo Circunstanciado (TC) e que possibilite transação no Juizado Especial Criminal (Lei 9.099/95, artigo 72). O problema, como tantos outros, aí está. E precisa ser enfrentado com equilíbrio e serenidade, a fim de que permaneça viva a crença nas instituições públicas. Para o bem de todos e, principalmente, da democracia.
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