Opinião

No julgamento do RE nº 1.017.365 no STF, estarão em jogo os direitos dos indígenas

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8 de outubro de 2020, 7h12

Nos próximos meses, haverá o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.017.365 perante o Supremo Tribunal Federal, e o que estará em jogo é a adoção da teoria do indigenato ou da teoria do marco temporal.

Tal visão guarda real pertinência com o descumprimento das disposições constitucionais de proteção aos indígenas, especificamente quanto à preservação de sua cultura e da posse direta das terras tradicionalmente ocupadas por eles, circunstâncias que podem acabar por permitir seu verdadeiro extermínio.

Importante relembrar que em breve o Supremo Tribunal Federal colocará em pauta o julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, com repercussão geral, tendo como discussão clara o Parecer Normativo Vinculante nº 001/2017/GAB/CGU/AGU (GMF-05) da Advocacia-Geral da União, aprovado pelo presidente da República. O relator do caso, ministro Edson Fachin, asseverou: "(…) Questões como o acolhimento pelo texto constitucional da teoria do fato indígena, os elementos necessários à caracterização do esbulho possessório das terras indígenas, a conjugação de interesses sociais, comunitários e ambientais, a configuração dos poderes possessórios aos índios e sua relação com procedimento administrativo de demarcação, apesar do esforço hercúleo da corte na Petição 3.388, não se encontram pacificadas, nem na sociedade, nem mesmo no âmbito do Poder Judiciário".

Portanto, com tal parecer aprovado pelo presidente da República, a Funai faria uma revisão geral em todas as terras demarcadas, bem como deixaria de demarcar eventuais áreas onde não existisse comprovação de ocupação indígenas na data de 5 de outubro de 1988 — o que consistiria um verdadeiro desastre para toda comunidade indígena.

Importante mencionar que o constituinte de 1988 preocupou-se em proteger, em abstrato, os indígenas, suas terras, tradições, hábitos, de maneira a preservar a cultura dos nativos do país, em detrimento do processo de colonização. Referida proteção se encontra em acordo com o contexto de redemocratização e garantia de direitos.

O artigo 231 da Constituição de 1988 afirma que "(…) são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".

Assim, verifica-se que a proteção constitucional concedida aos indígenas foi ampla, relacionada à sua organização social, cultural e linguística, todavia, baseada em seu direito de posse sobre a terra que, tradicionalmente, ocupam, a eles deferindo, inclusive, a exploração de seus frutos e riquezas.

A Constituição de 1988, entretanto, buscou fixar, de maneira específica e mediante certos requisitos, uma definição acerca do que seriam as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, embasado, nesse sentido, quanto à sua utilização pelos povos nativos para sua sobrevivência.

Esses requisitos se relacionam aos seus usos, costumes e tradições. Assim, "(…) não se vai tentar definir o que é habitação permanente, modo de utilização, atividade produtiva, ou qualquer das condições ou termos que as compõem, segundo a visão civilizada", mas, sim, "(…) segundo o modo de ser deles, da cultura deles" (SILVA, 2020, p. 784).

Assim, direitos e interesses dos índios têm natureza de direito coletivo, comunitário, de modo que concernem à comunidade toda e a cada índio em particular, ideia que reconduz à "(…) comunidade de direito que existia no seio da gentilidade. Os bens da gens pertenciam conjuntamente a todos os gentílicos" (SILVA, 2020, p. 835).

Esse direito é distinto em relação a cada indivíduo, por não ser exclusivo, mas é indiviso, inalienável e indissoluvelmente ligado à qualidade de membro da coletividade, de modo que "(…) a Constituição reconhece legitimação para defendê-los em juízo aos próprios índios, às suas comunidades e às organizações antropológicas e pró-índios" (SILVA, 2020, p. 836).

Essas garantias não se estendem apenas às comunidades originais e não integradas, alcançando, também, os descendentes das respectivas etnias, abrangendo tanto as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas como o direito à preservação das memórias e hábitos dos povos nativos.

Da mesma forma o artigo 17 da Lei 6.001 de 1973 (Estatuto do Índio) afirma que são terras indígenas aquelas "(…) ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem os artigos 4º, IV, e 198, da Constituição", as áreas reservadas e "(…) as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas".

O artigo 19 determina que "(…) as terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo", a regulamentar o procedimento voltado à demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas.

Acerca do tratamento dado aos indígenas, antes da própria Constituição Federal de 1988, verifica-se que desde 1934 há proteção às terras indígenas, sendo que no julgamento das Ações Civis Originárias nº 362 e nº 366 no STF, o ministro relator Marco Aurélio Mello, do STF, fez o histórico das Constituições nacionais:

"(…)) Desde a Carta de 1934 é reconhecida a posse dos indígenas das terras que tradicionalmente ocupam: artigo 129. Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las (…)".

Assim versava a Constituição de 1937: "Artigo 154 — Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada a alienação das mesmas". Na de 1946, estava previsto: "Artigo 216 — Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem (…)".

Eis os dispositivos da Carta de 1967: "Artigo 4º — Incluem-se entre os bens da União: (…) IV. as terras ocupadas pelos silvícolas; (…) Artigo 186 — É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes (…)".

A Emenda 1/1969 preceituou: "Artigo 4º — Incluem-se entre os bens da União: (…) IV. as terras ocupadas pelos silvícolas; (…) Artigo 198 — As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes. §1º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas. §2º A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio".

Neste viés, a teoria do indigenato, em que pese ser historicamente recente, tem raízes ainda no século XVII, no Brasil, relacionando-se diretamente ao massacre ao qual os nativos brasileiros foram submetidos durante o processo de colonização portuguesa e, posteriormente, com a expansão urbana e agrícola.

Essa foi criada por João Mendes Júnior, no início do século XX, considerando o período de exploração, exclusão e genocídio contra os povos indígenas durante a colonização. É um direito congênito. O direito dos povos indígenas às terras tradicionais antecede a criação do Estado brasileiro (MENDES JÚNIOR, 1912, p. 21).

Dessa forma, o Estado deve somente demarcar e declarar os limites espaciais do território indígena (MENDES JÚNIOR, 1912, p. 21), sem, entretanto, imiscuir-se em suas bases, em suas manifestações culturais, assim como em suas tradições, nem mesmo impor às populações nativas o seu ordenamento jurídico.

O instituto do indigenato tem influência direta e inevitável em relação aos direitos dos indígenas sobre as suas terras, em decorrência da ocupação "tradicional", atualmente resguardadas pela Constituição de 1988, fazendo com que sua natureza jurídica seja outra que não a de mera propriedade privada.

Além do instituto do indigenato, a consagrar direitos originários dos povos indígenas, a posse e o usufruto de suas riquezas nela existentes, o fato de a Constituição efetiva a propriedade das terras indígenas à União foi medida voltada a efetivamente protegê-los, não se relacionando à tutela orfanológica que antes caracterizada as políticas indigenistas (MARÉS, 2006, p. 48).

Dessa maneira, a proteção jurídico-constitucional dos povos indígenas pela Constituição, que inclui o instituto do indigenato, consagrou aos índios efetivas prerrogativas jurídicas que, por sua vez, não representam favores ou caridade, mas, sim, efetivos direitos públicos subjetivos.

A decisão do Supremo Tribunal Federal do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, consagradora da teoria do marco temporal, foi (e ainda é) alvo de severas críticas pela doutrina, especialmente de parte de alguns constitucionalistas e dos jus-indigenistas, afirmando-se que referido entendimento é incompatível com a melhor interpretação da Constituição de 1988.

O marco temporal da Constituição Federal de 1988 é de utilização questionável, pois "(…) viola o reconhecimento constitucional do direito originário do índio sobre a terra", desconsiderando, assim, "(…) os requisitos técnicos e legais que garantem a posse da terra e o usufruto de seus recursos pelos índios" (ROTH, 2006, p. 71).

A visão sobre a incapacidade relativa "(…) moldou a regulamentação dos órgãos voltados ao cuidado indígena, o SPI (1910-1967) e a Funai (1967-)", que viabilizavam a integração das comunidades indígenas à sociedade brasileira, desacreditando os movimentos de valoração de suas culturas (ROTH, 2006, p. 71).

Em 2010, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a questão fundiária em Mato Grosso do Sul "(…) tem criado grande insegurança e instabilidade entre os moradores da região, até com o aumento do quadro de violência entre os interessados", afirmando ser necessário o procedimento demarcatório do território indígena Guarani-Kaiowá.

Não se trata, contudo, de um entendimento isolado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Isso porque, em outras oportunidades, o Excelso Pretório relativizou a aplicação da teoria do marco temporal, bem como afirmou que a decisão acerca da Terra Indígena Raposa Serra do Sol não seria vinculante.

No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal, em 16 de agosto de 2017, julgou improcedentes duas ações civis originárias (ACOs 362 e 366), movidas pelo Estado do Mato Grosso contra a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai), em razão da demarcação de terras indígenas.

Em decorrência da similaridade de pretensões deduzidas, foram decididas em conjunto. O autor pretendia ser indenizado pela demarcação de terras indígenas. A ACO 362 se voltou à compensação pelas áreas "devolutas" anexadas ao Parque Indígena do Xingu, criado em 1961.

A ACO 366 reclamou demarcações de terras indígenas dos povos Nambikwara, Paresí e Enawenê-Nauê, ocorridas na década de 1980. Por unanimidade, o plenário do STF determinou que o Estado não deveria ser indenizado, pois referidas terras eram de ocupação tradicional dos povos indígenas.

Portanto, estes teriam direitos originários sobre os seus territórios tradicionais. Referidos julgados se voltam contra a tese do marco temporal. Em que pese a tese não ter sido objeto central das ações, os ministros do STF ponderaram acerca do tema e criticaram a utilização vinculatória das condicionantes do caso Raposa Serra do Sol.

Nesse prisma, espera-se que o STF, ao analisar o RE 1.017.365, interprete a Constituição Federal de maneira efetiva, com a maior amplitude possível aos direitos fundamentais dos indígenas, afastando a tese do marco temporal e acolhendo a tese do indigenato, pois não se pode desconsiderar mais de 500 anos de violência, sofrimento, necropolítica, genocídio e destruição a que foram submetidos tais povos, os quais foram claramente expulsos de suas terras tradicionais anteriormente à data de 5 de outubro de 1988, sob pena de se negar a essas comunidades os mais relevantes diretos consagrados pela Constituição da República e vários tratados internacionais de que o Brasil faz parte.

 

Referências bibliográficas
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Autores

  • é procurador da República em Curitiba, mestre em Direito pela Universidade Paranaense e especialista em Direito Notarial e Registral e em Direito Civil pela Universidade Anhanguera (Uniderp).

  • é advogada, mestranda na área de Estado, Poder e Jurisdição (Uninter), especialista em Direito Público pela Uniderp, especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Uniderp e especialista em Direito Notarial e Registral pela Universidade Anhanguera.

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