Contas à vista

Orçamento republicano para a ciência e as futuras gerações

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

10 de novembro de 2020, 8h00

Tramita na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo o Projeto de Lei 627/20, que trata do Orçamento Estadual e nele consta nova ameaça ao fundo destinado ao financiamento da ciência, representado pelo corte dos saldos acumulados pela Fapesp anos a fio, visando a ter um colchão de conforto para os projetos de pesquisa em curso e a serem desenvolvidos pelo qualificado corpo de docentes e pesquisadores brasileiros.

Spacca
De certa forma trata-se de um assunto requentado, pois já havia sido tentado cortar esta verba durante a tramitação do PL 529/20. O assunto foi objeto de diversas manifestações, dentre as quais a que fiz a quatro mãos com o professor Heleno Torres, intitulada Governo paulista quer confiscar fundos de apoio à ciência. O projeto foi aprovado pela Alesp sem este corte orçamentário, transformando-se na Lei 17.293/20.

Este "revival" normativo pode ser tratado de diversas formas.

Uma é incitando o governador João Doria a não ser um exterminador da ciência, foco do artigo publicado pelos professores Alicia Kowaltowski e Paulo Nussenzveig, ambos da USP, o que foi contestado pelo deputado estadual paulista Carlos Pignatari, rebatendo aqueles argumentos e atacando o corporativismo, o que se revela uma miopia, pois é vedado por lei o uso desses recursos em atividades-meio, além de 5% (artigo 17, Lei 5.918/60). No âmbito político, existe também manifestação do deputado estadual Carlos Giannazi, contrário aos cortes apontados, dentre várias.

Outra forma de abordagem é a que foi feita pelos professores Luiz Davidovitch (da UFRJ) e Helena Nader (da UNIFESP), enfatizando os prejuízos que podem advir para a ciência brasileira, apontando que os cortes prejudicam o país.

Estou de acordo com as críticas apontadas e trilho outro caminho. A fórmula jurídica adotada é simplesmente inconstitucional.

A Constituição paulista determina no art. 271 que o Estado destinará no mínimo 1% de sua receita tributária à Fapesp, "como renda de sua privativa administração, para aplicação em desenvolvimento científico e tecnológico". O artigo 176 estabelece ainda uma exceção ao Princípio da Não Afetação orçamentária, permitindo que haja destinação de recursos para a pesquisa científica e tecnológica, o que está de acordo com o artigo 218, §5º, da Constituição.

A manobra orçamentária está na pretensão de o Estado utilizar para outras finalidades os saldos acumulados em razão da boa administração desses recursos pela Fapesp, destacando-se o pagamento de servidores públicos estaduais, ativos e aposentados, o que é de responsabilidade do Tesouro Público estadual para custeio com verbas gerais, e não com as que possuem destinação constitucional específica. É sabido que existe a possibilidade de uso da DRE (Desvinculação de Recursos Estaduais), porém esta não pode atingir verbas constitucionalmente vinculadas.

Simplificando: o Estado pretende utilizar em finalidades distintas aquilo que a Constituição concebeu para uso em finalidade específica. Existe um nome técnico para isso: tredestinação; e é inconstitucional, pois viola norma expressa da Constituição estadual. Simples assim.

Os mais apressados podem vir a dizer que a garantia é da arrecadação, e não dos saldos. Porém estariam errados, por vários motivos, dentre eles: (1) a técnica de fundos financeiros existe justamente para garantir operações de longo prazo, com acúmulo de recursos, de tal maneira que haja a possibilidade de sustentabilidade financeira para alcançar os objetivos determinados; (2) os recursos são constitucionalmente atribuídos à privativa administração da Fapesp, sendo inviável tredestiná-los, driblando a administração do órgão; (3) só existem saldos porque os recursos foram bem administrados; caso contrário, teriam se esvaído; (4) sem um colchão de recursos o planejamento de médio e longo prazo das atividades de ciência e tecnologia ficariam na dependência de verba do Tesouro Público estadual, que, à toda prova, não consegue planejar nem o financiamento de eventos certos e de longo prazo, como o pagamento dos servidores que se aposentam após décadas de prestação de serviços públicos.

A medida proposta destrói a capacidade de planejamento financeiro, acarretando a obrigação de gastar, a fim de evitar a existência de saldos no fundo, o que vai contra qualquer razoabilidade administrativa, atacando o Princípio da Eficiência, constante do art. 37, da Constituição Federal.

O fato é que, segundo declaração do próprio Governador do Estado de São Paulo ao jornal Folha de S.Paulo em 16 de outubro de 2020, a arrecadação estadual já retornou aos patamares pré-Covid, tendo o Secretário de Fazenda e Planejamento do Estado, Henrique Meirelles, afirmado que “a economia paulista (…) já está em patamar ligeiramente superior ao nível pré-pandemia, segundo cálculos da Fundação Seade (1,5% acima do nível de fevereiro)”.

Essa declaração faz coro com o que afirmou o Secretário da Receita Federal do Brasil, José Barroso Tostes Neto, ao mencionar que o comércio eletrônico registrou um aumento de 57,2% de vendas em setembro/20, em comparação com o mesmo mês do ano anterior, o que demonstra a plena recuperação do ICMS no Brasil.

No mesmo sentido é a declaração da Subsecretária de Relações Financeiras e Intergovernamentais da Secretaria do Tesouro Nacional, ao afirmar que: "os Estados estão, em conjunto, com o maior nível de disponibilidade de caixa da história, de acordo com dados do Tesouro Nacional. (…) O saldo reflete (…)a recuperação de receitas que já vem ocorrendo com a retomada da atividade econômica. Depois de um baque inicial com as medidas de paralisação, a reabertura da economia tem levado os governos estaduais a ter alta na arrecadação nos últimos meses".

Ou seja, o caixa público estadual já se recuperou.

Tudo isso aponta para o fato de que esses valores não devem ser considerados apenas no limitado quadro contábil de receitas versus despesas. Deve-se investir mais em ciência e tecnologia, pois isso pode nos permitirá aumentar as receitas. Um exemplo é ilustrativo: tivéssemos maior capacidade científica, poderíamos desenvolver nossa própria vacina contra o coronavírus, ao invés de litigarmos federativamente acerca de quem pagará aos laboratórios estrangeiros, além da importante redução de custos na produção dos ventiladores pulmonares desenvolvidos pela USP.

Seguramente os recursos geridos pela Fapesp poderiam ser melhor administrados, mas essa é uma questão de gestão interna do órgão. Um exemplo: sem compreender como funcionam as instituições e o sistema jurídico, a sociedade ficará ao sabor do jogo político e de conveniência como o atual, acerca da utilização dos recursos desse fundo financeiro, que é vedado pelas normas acima referidas; todavia, as verbas destinadas à pesquisa na área das Humanidades são sempre concedidas à conta-gotas pela Fapesp. Financiar pesquisas nessas áreas permitiria melhor conhecer o homem e a sociedade em que está inserido, destinatários finais de todos os esforços científicos e tecnológicos.

Enfim, o orçamento é locus jurídico onde os governos consolidam as decisões políticas da sociedade representada pelos deputados eleitos, o que revela seu caráter democrático. Mas ele também deve ser republicano, isto é abranger o maior número de pessoas, tanto na arrecadação quanto no gasto, com os olhos voltados à consecução dos objetivos nacionais inscritos nas Constituições. Um desses objetivos é a redução das desigualdades sociais e regionais (artigo 3º, III, CF), o que não se realiza apenas contingenciando e desvinculando verbas e buscando um equilíbrio orçamentário anual, através de um confronto de planilha entre receitas e despesas. É necessário olhar para o futuro, para as novas gerações, e os fundos financeiros com destinação específica existem exatamente para isso, tal como o da Fapesp.

É preciso acabar com o curtoprazismo no planejamento. Sem levantarmos os olhos e planejarmos um futuro melhor, ficaremos à mercê de ameaças conjunturais, como esta.

 

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Autores

  • é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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