Defesa da concorrência

As atuais propostas de alteração da Lei de Defesa da Concorrência

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26 de julho de 2021, 8h00

Nas últimas semanas, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) se tornou um dos principais centros das atenções do governo (e governantes). O fim do mandato de algumas das principais autoridades da autarquia  e a consequente "troca de cadeiras" desses cargos  lançou uma disputa de interesses em Brasília. Apesar do (comum) jogo político em tempos de trocas de cargos, recentemente, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) também tem sido objeto de outras ações políticas: desde o fim de 2019, tramitam na Câmara dos Deputados cinco projetos de lei (PLs) para alteração da Lei nº 12.529/2011 (Lei Brasileira de Defesa da Concorrência, ou LDC). A seguir, faremos uma breve análise de dois desses projetos, que nos chamam especial atenção.

Spacca
O PL 4063/2019, de autoria do deputado Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PSL), propõe inserir ao artigo 36 da Lei nº 12.529/2011 novo inciso determinando que "sempre que uma empresa ou grupo de empresas controlar um terço ou mais de mercado relevante, será instaurado inquérito administrativo para apuração de infrações à ordem econômica por parte desta empresa ou grupo de empresas, sem prejuízo de outras ações de defesa da concorrência". Como justificação, o deputado acredita ser obrigação da LDC estabelecer parâmetros para investigar "níveis elevados de posição dominante" em mercados relevantes.

O ponto que aqui nos chama mais atenção é a determinação de que "sempre" que uma empresa ou grupo detiver um terço de certo mercado, esta deverá ser investigada pela autoridade por infrações à ordem econômica. Primeiramente, cumpre esclarecer que não se trata de redação equivocada. Durante a tramitação, a Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços não apenas votou pela aprovação do PL como também rejeitou emenda proposta pelo deputado Lucas Vergilio (Solidariedade) que propunha alteração da expressão "sempre" para "na hipótese de […] e haja indícios das práticas relacionadas neste artigo", alegando que tal redação desviaria o PL de seu conteúdo original.

Quantos às problemáticas suscitadas pelo projeto, ao propor um novo parâmetro para "níveis elevados de posição dominante", o PL conflitua diretamente com o §2º do próprio artigo 36 da LDC, que dispõe deter posição dominante presumida a empresa que controla 20% de determinado mercado relevante. Ou seja, na tentativa de aumentar o enforcement antitruste no país, o PL, na verdade, acaba por afrouxar o conceito de posição dominante atualmente previsto pela LDC. Não obstante, ao não presumir, como dispõe o parágrafo citado, mas, de fato, concluir pela posição dominante a partir do controle de um terço de determinado mercado, o PL acabará por punir agentes que possam ter conquistado mercado a partir de um processo natural de maior eficiência em relação aos seus concorrentes. Ora, se o §1º do artigo 36 da LDC dispõe ser lícita tal situação, o que justificaria a instauração de inquérito administrativo para investigar a empresa ou grupo sem que houvesse quaisquer indícios de infração à ordem econômica [1]?

Por sua vez, o não menos controverso PL 2491/2020, de autoria do mesmo deputado, que dispõe sobre medidas para regular os capitais estrangeiros no país com o objetivo de impedir operações que tragam risco à segurança ou à ordem pública, propõe uma série substancial de alterações na LDC. A primeira delas é classificar como infração à ordem econômica os atos que realizem "operações com capital estrangeiro na economia brasileira que impliquem risco à segurança e à ordem pública". Na mesma toada, no artigo 88, que trata sobre atos de concentração, o PL propõe não apenas uma readequação dos valores de faturamento para operações que envolvam "relevante capital estrangeiro", como também proíbe aqueles que suscitem riscos à segurança ou à ordem pública no Brasil. Por fim, o PL também visa a excluir do acordo de leniência celebrado com o Cade os benefícios estendidos aos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei nº 8.137/1990.

Sem propor métrica à readequação dos valores de faturamento dos atos de concentração que envolvam capital estrangeiro, e tampouco apresentando definição à importante expressão "relevante capital estrangeiro", a própria redação do PL já traz consigo, s.m.j., insegurança jurídica ao Direito Concorrencial brasileiro e, especialmente, às empresas estrangeiras que aqui operam.

E mais. Quando analisamos o teor da proposta em si, a situação se agrava. Até a data de publicação do presente artigo, aproximadamente um quinto das operações notificadas ao Cade em 2021 envolvia diretamente uma empresa que operava no exterior. Ao não apenas proibir certas operações envolvendo capital estrangeiro, como também classificando-as como possíveis infrações à ordem econômica, o PL 2491/2020 fará com que investidores internacionais redobrem a atenção para investir no país sem que o Cade instaure investigação contra a empresa  ou até mesmo vete a operação sem sequer analisar seu mérito.

Não obstante, ao excluir do acordo de leniência os benefícios estendidos à Lei nº 8.137/1990  proposta que não é mencionada pelo deputado na justificação , o PL tornará mais ineficaz e desinteressante um dos principais instrumentos da autarquia para detecção de cartéis

Curioso ponto de contradição entre as duas propostas é que se por um lado o PL 4063/2019 exige maior demanda de funcionários da autarquia para que realizem vigilância antitruste sempre (literalmente) que uma empresa ou grupo alcançar participação de um terço em determinado mercado, por outro o PL 2491/2020 poderá esvaziar o Cade em razão da fuga de investimentos estrangeiros no país.

Não se defende aqui que alterações à legislação concorrencial não sejam bem-vindas. Em verdade, há outros pontos da LDC que mereciam atenção do legislador, como os critérios da base de cálculo das multas aplicadas pelo Cade ou a criação de instrumentos para facilitar a responsabilização civil por infrações à ordem econômica. Contudo, ao propor tais mudanças, é necessário compreender sobre o que trata o Direito da Concorrência, bem como o que esperar das alterações dentro do contexto legislativo em que ela se inserirá. Caso contrário, o efeito não apenas será aquém do interesse político almejado, como também presenciaremos um enfraquecimento institucional de uma das autarquias mais respeitadas do país.

 

[1] "§1º. A conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito previsto no inciso II do caput deste artigo".

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