Opinião

Nova Lei de Licitações e CPC/2015: pontos de contato e de diálogo entre as fontes

Autor

  • José Henrique Mouta Araújo

    é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) doutor e mestre (Universidade Federal do Pará) professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) procurador do estado do Pará e advogado.

27 de setembro de 2021, 20h39

Este ensaio tem por objetivo analisar, em rápidas passagens, alguns pontos de contato entre a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 14.133, de 1º/4/2021) e o Código de Processo Civil de 2015, sintetizando alguns apontamentos que foram lançados em recente evento organizado pela Associação Norte Nordeste de Professores de Processo (Annep).

No evento realizado no último dia 10, no formato online, tratei do importante diálogo entre as fontes normativas, incluindo também a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) [1], partindo da premissa constante no artigo 15, do CPC/15: "A aplicação da norma processual ao direito administrativo de forma supletiva e subsidiária".

De imediato, é possível observar a ligação entre os diplomas em comento, na previsão do artigo 5º da Lei 14.133/2021, quando consagra os princípios informadores da licitação (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, interesse público, probidade administrativa, igualdade, planejamento, transparência, eficácia, segregação de funções, motivação, vinculação ao edital, julgamento objetivo, segurança jurídica, razoabilidade, competitividade, proporcionalidade, celeridade, economicidade e desenvolvimento nacional sustentável), somando-se às disposições da LINDB.

Em relação aos princípios, também é necessário fazer alusão aos que estão previstos no CPC/15, em especial a primazia da resolução de mérito, cooperação, contraditório substancial etc.

Ademais, a nova Lei de Licitações também trouxe importante modificação em relação à contagem dos prazos, que passa a ser em dias úteis (exemplos: artigo 164, §único — impugnação ao edital ou pedidos de esclarecimento; artigo 165 — recursos; e artigo 171, §§1º e 2º), unificando o tratamento que já vem sendo dado pelo legislador de 2015. Essa uniformização na contagem de prazos em dias úteis melhor organiza o tratamento legislativo para os processos judiciais (artigo 219 do CPC/15) e administrativos.

Outro aspecto importante que permite apontar uma (tentativa) de ligação entre as legislações refere-se ao sistema de precedentes. A legislação processual civil possui vários dispositivos que consagram a necessidade de observação dos padrões decisórios advindos de órgãos do sistema de Justiça, em especial nos artigos 926 a 928.

Há, inclusive, uma interligação entre os precedentes administrativos e o andamento das demandas judiciais, como se pode observar nos artigos 496, §4º, IV (dispensa de remessa necessária quando a decisão judicial estiver com "entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa"); 985, §2º, e 1040, IV, do CPC/15 (comunicação do resultado do IRDR ou do padrão decisório advindo do recurso repetitivo para o órgão ou agência reguladora para fiscalização e aplicação da tese adotada).

No âmbito do Direito Administrativo, há o importantíssimo debate acerca da força vinculante dos enunciados de súmula e orientações do(s) Tribunal(is) de Contas. No Projeto de Lei nº 4.253/2020, que culminou com a edição da Lei nº 14.133/2021, existia dispositivo expresso no sentido de que os órgãos de controle da Administração Pública direta, autárquica e fundacional federal se orientassem pelos enunciados das súmulas do Tribunal de Contas da União relativos à aplicação da nova lei, o que poderia trazer maior segurança jurídica, previsibilidade, celeridade, economia, diálogo entre os órgãos (administrativo, regulador e fiscalizador) e isonomia. Contudo, o artigo 172 da nova Lei de Licitações foi vetado. 

Nestes breves apontamentos, é razoável afirmar que o artigo 172 (que possui redação semelhante ao Enunciado nº 222 de súmula do Tribunal de Contas da União), talvez com algum ajuste redacional, poderia caminhar no mesmo sentido da teoria dos precedentes judiciais e administrativos prevista na legislação processual civil. Assim como o CPC estabeleceu diálogo e cooperação entre os precedentes judiciais e administrativos, a nova legislação poderia estimular uma teoria de precedentes com a conjunção dos entendimentos internos e externos (das cortes de contas), sem qualquer imposição destes últimos que pudesse provocar a válida discussão quanto a usurpação de competência.

E mais, considerando o contido no já mencionado artigo 15 do CPC/15, é absolutamente defensável a aplicação do sistema de precedentes ao processo administrativo (internos e externos).

Já no âmbito da teoria de nulidades, é necessário observar que os dispositivos a nova lei dialogam com as premissas do CPC/15, ao estabelecer, por exemplo: a) saneamento de irregularidades (artigo 147) — clara ligação com o princípio da primazia da resolução de mérito previsto em várias passagens do CPC/15; b) prevalência do interesse público na nulidade e suspensão e análise de impactos, riscos, custos e despesas (artigo 147 e 148). Tais aspectos estão em consonância com a teoria de nulidade no Direito Processual Civil e a permanência de alguns atos, visando à primazia da resolução de mérito e superação de óbices processuais (artigos 277, 280 e 281, do CPC, dentre outros).

No encerramento da licitação também é possível identificar que a nova lei faz interlocução com as normas fundamentais do Processo Civil. O artigo 71 consagra alguns encaminhamentos que também são muito comuns ao Processo Civil, a saber: verificação de irregularidades com retorno para saneamento; anulação em caso de ilegalidade insanável, com expressa indicação dos atos com tais vícios, tornando sem efeito os subsequentes e dependentes (semelhante ao constante no artigo 281 do CPC/15) e, com maior destaque, a necessidade de garantia do contraditório prévio com a manifestação dos interessados (§3º do artigo 71 da Lei 14.133/2021), nos casos de anulação e revogação.

A propósito, a previsão expressa acerca da necessidade de manifestação dos interessados antes de eventual anulação e revogação vai ao encontro do direito ao contraditório prévio e substancial (artigos 9º e 10 do CPC/15).

Em outra passagem, a Lei 14.133/2021 prevê (artigos 151 e 154) que nas contratações poderão ser utilizados os meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias (conciliação, mediação, comitê de resolução de disputas e arbitragem). Tais dispositivos dialogam diretamente com o chamado sistema multiportas e com o contido no artigo 3º do CPC/15.

Dois pontos ligados à atuação do Tribunal de Contas também merecem registro: a) possibilidade suspensão do processo licitatório (artigo 171, §1º) — o que tem ligação com o poder geral de tutela provisória consagrado na legislação processual civil (artigos 294 e seguintes do CPC/15); b) a necessidade de definição das medidas necessárias e adequadas para o saneamento processual (artigo 171, §3º, da Lei 14.133/2021), o que também configura clara ligação com a primazia de mérito (aproveitamento, na medida do possível, do "mérito" do processo licitatório).

Por derradeiro, importante observar que a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos incluiu o inciso IV ao artigo 1048 do CPC/15, consagrando a prioridade de tramitação os procedimentos judiciais "em que se discuta a aplicação do disposto nas normas gerais de licitação e contratação a que se refere o inciso XXVII do caput do artigo 22 da Constituição Federal".

Estes são alguns apontamentos iniciais relacionados ao claro diálogo entre as duas legislações.

 


[1] Propostas e inovações normativas em debate. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=jHjRE-h5Zk4 (início em 2h41).

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!