Pensando a lápis

Neurodireitos: proteger a mente humana dos efeitos das novas tecnologias?

Autor

  • Sílvia Piva

    é advogada doutora e mestra em Direito do Estado pela PUC-SP. Pesquisadora do mestrado profissional em Direito Tributário da FGV e do programa de pós-graduação do TIDD (Tecnologias da Inteligência e Design Digital) da PUC-SP. Integrante da Comissão Direito e Artes do IASP.

11 de julho de 2022, 8h00

Tecnologias estão transformando a forma como agimos, pensamos e percebemos o mundo? Estão modulando nossos valores em sociedade? Será possível decodificar o pensamento humano, ou aprimorar sua capacidade cognitiva, a partir das ligações das redes neurais às redes digitais? Desafiaremos o nosso conceito de humano?

Perguntas difíceis têm surgido no século 21, em decorrência da rapidez com que as tecnologias emergem em nosso cotidiano. Desde muito tempo já se discute sobre a neutralidade ou não das tecnologias, se são meras ferramentas ou se somos afetados por elas, ainda que não sejam evidentes diretamente seus benefícios ou malefícios.

Apesar das importantes discussões sobre a neutralidade ou não das tecnologias, para nós, não só as tecnologias não são neutras como deixaram de ser ferramentas, para se transformarem em verdadeiras forças que nos moldam. Somos tecno dependentes e, conforme Lucia Santaella, estamos em verdadeira simbiose com as tecnologias. Nossa vida "onlife" (Luciano Floridi, em Onlife Manifesto) é a nossa experiência da vida interconectada, na qual não faz mais sentido perguntar se estamos "on-line" ou "off-line". Estamos, a todo instante, "on-life".

A distinção entre realidade e virtualidade, para nós, é difusa, afinal, virtual e real não são oposições, mas complementares. Vivemos sob abundância de informações e mudamos a perspectiva binária para a complexa e distribuída pelas redes.

Como uma camada que se sobrepõe ao que já vivemos, tecnologias continuam a emergir em nosso contexto social, e muitas delas já vem chamando a atenção para a urgência de novos guias éticos e regulamentações jurídicas, uma vez que suas aplicações e consequências, além de não estarem totalmente claras, ainda não foram objeto de normatização.

Dentro da abrangência das tecnologias emergentes, devem ser consideradas as neurotecnologias, as quais tem sido alvo de recentes discussões sobre a necessidade particular de regulamentação de suas aplicações e que abrem a discussão sobre um campo ainda pouco explorado, mas que já ganhou "status" constitucional no Chile: os neurodireitos.

Antes, porém, de tratar sobre os neurodireitos, falaremos brevemente sobre quais são as neurotecnologias e para que se destinam, para então adentrar no objetivo deste artigo.

Neutotecnologias, segundo definição da Neurorighs Foundation é "qualquer tecnologia que registre ou interfira na atividade cerebral, especialmente as interface cérebro-computador". Diferentemente de outros tipos de tecnologias, as neurotecnologias interagem diretamente no cérebro humano. Trata-se de um termo abrangente, para descrever um grande espectro de métodos, sistemas e instrumentos, que trazem conexão direta com o cérebro, cujas atividades possam ser registradas e influenciadas[1].

Os recentes avanços em neurociência, alicerçados em tecnologias, como a inteligência artificial, as neuroimagens, a neuroestimulação, as  pesquisas de interface "brain-machine", evidenciam cada vez mais que essas técnicas podem ajudar a curar e prever várias doenças ligadas ao cérebro, mas também podem igualmente manipular e modificar nosso comportamento, nossas emoções, nossa percepção e nossas decisões.

Ao mesmo tempo, existem preocupações éticas quanto ao uso, na medida em que essas tecnologias avançam rapidamente.

Contextualmente, os neurodireitos avançaram a partir de novas disciplinas e subdisciplinas e do entrelaçamento com o campo de investigação da neuroética. A neuroética guarda sua relação com "o exame do é certo e errado, bom e ruim no tratamento, perfeição ou invasão indesejada e manipulação preocupante do cérebro humano"[2].

Um exemplo trazido por Yuste, neurocientista da Columbia University e um dos fundadores do Neurorights Foundation, em seus estudos, é o caso de escolas primárias da China, que exigem que alunos usem fones de ouvido para gravar seus níveis de concentração. Esses dados são armazenados pelo professor em um computador e compartilhado com os pais, sem o consentimento da criança.

Recentemente, Elon Musk anunciou que, em breve, ocorrerão os primeiros testes em humanos do neuroimplante Neuralink, que pode ajudar pessoas com lesões na coluna, além de afirmar que será possível conectar nossos cérebros diretamente à internet, ou até mesmo nos permitir ouvir música sem fones de ouvido,

No Brasil, o Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra (IIN-ELS) desenvolve, desde 2006, atividades de ensino, pesquisa e extensão em Macaíba (RN), com o intuito de formar e capacitar profissionais na pesquisa em neurociências e neuroengenharia, para linhas de pesquisa que vão desde a reabilitação, desenvolvimento de próteses e órteses, até a neurociência computacional, cognição e processamento de sinais biológicos.

As pesquisas são vastas e indicam que poderemos prever  as intenções e escolhas de pessoas através da leitura de registros cerebrais[3], até implantes cerebrais se mostraram eficientes para transcrever pensamentos em texto.[4] 

Diante desse contexto, surge a necessidade de abordar aquilo que Rafael Yuste  denomina como os Neurorights, traduzido como Neurodireitos.

Os Neurodireitos são, em linhas gerais, definidos como "os princípios éticos, legais, sociais ou naturais de liberdade ou titularidade relacionados ao domínio cerebral e mental de uma pessoa; isto é, as regras normativas fundamentais para a proteção e preservação do cérebro e da mente humana"[5].

O termo foi cunhado por Sherrod Taylor, no início da década de 1990, em Neuropsychology and Neurolawyers.  O autor analisa a colaboração, no sistema de justiça norte-americano, de neuropsicólogos e advogados, nos litígios relacionados a acidentes e lesões cerebrais.

Rafael Yuste trata, portanto, de Novos Direitos Humanos para a Era da Neurotecnologia.  A partir da Neurorights Foundation busca "promover a inovação, proteger os direitos humanos e garantir o desenvolvimento ético da neurotecnologia".

Yuste, em sua proposta, elenca cinco neurodireitos, cuja preservação se faz necessária com o advento das neurotecnologias:

  1. O direito à identidade ou a capacidade de controlar tanto a integridade física quanto mental;

  2. O direito de agência ou de livre pensamento e livre-arbítrio para escolher suas próprias ações;

  3. O direito à privacidade mental ou à capacidade de manter os pensamentos protegidos contra qualquer tipo de divulgação

  4. O direito à capacidade de garantir benefícios e melhorias sensoriais. de forma equânime, a toda a população, a fim de evitar novos abismos sociais

  5. O direito à proteção contra vieses algorítmicos ou à capacidade de garantir que as tecnologias não insiram preconceitos.

Alinhado a essa perspectiva, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em dezembro de 2019, traçou nove princípios globais sobre as recomendações a respeito das inovações, de forma responsável, em neurotecnologia.

São eles:

  1. Promover a inovação responsável;

  2. Priorizar a avaliação de segurança;

  3. Promover a inclusão;

  4. Promover a colaboração científica;

  5. Permitir a deliberação social;

  6. Habilitar a capacidade de supervisão e órgãos consultivos;

  7. Proteger dados cerebrais pessoais e outras informações;

  8. Promover culturas de administração e confiança nos setores público e privado;

  9. Antecipar e monitorar o uso não intencional e/ou uso indevido potencial.

Com base nas diretrizes trazidas por Yuste, o Chile foi o primeiro país a contemplar os neurodireitos em sua Constituição, a partir de outubro de 2021, assim prevendo: O desenvolvimento científico e tecnológico estará a serviço das pessoas e será realizado com respeito à vida e à integridade física e mental. A lei regulará os requisitos, condições e restrições para seu uso em pessoas, e deve proteger especialmente a atividade cerebral, bem como as suas informações".

Poderíamos até pensar que muitos desses direitos já podem estar contemplados em nosso sistema constitucional e infraconstitucional vigente, a partir de uma interpretação mais ampla.

Contudo, a proposta de trazer novos guias éticos funda-se no fato de que, anteriormente, algumas questões não foram necessárias em outras tecnologias: a privacidade mental e a agência humana.

Os cenários e a aplicação que, em algum momento da nossa existência, foram restritos à ficção científica, já estão diante de nós. Talvez, considerar que nossos direitos já estejam protegidos, não venha a considerar os novos cenários que teremos, a partir de um avanço e uso cada vez mais frequente das neurotecnologias.

A inovação tecnológica, seja ela incremental e disruptiva, faz parte da essência da humanidade, porém, embora seja inerente à nossa sobrevivência, também pode trazer consequências indesejáveis e não previstas.

Novos guias éticos poderão, portanto, direcionar as pesquisas, a aplicação e o "design" de tecnologias para gerenciar efeitos positivos e negativos. Em todo debate de regulação, e governança, há também outro porém: regulações muito rígidas ou feitas de forma precoce poderm retirar o oxigênio necessário ao processo de inovação, mas deixar para depois pode ser tarde demais.

Assim, a OCDE traz a recomendação de "inovação responsável" em seu documento principiológico, para indicar uma possibilidade de norteador para o avanço da governança de novas tecnologias.

A nossa provocação final, portanto, se coloca a partir de como o Direito caminhará para a proteção das novas controvérsias que emergirão nesses novos contextos, uma vez que diversas questões filosóficas, éticas e normativas precisarão ser refletidas e enfrentadas nos anos que se aproximam.

Referências

  1. Ienca, M., Andorno, R. Towards new human rights in the age of neuroscience and neurotechnology. Life Sci Soc Policy, 13, 5 (2017). https://doi.org/10.1186/s40504-017-0050-
  2. Ienca, M. What are neurorights, and why do we need them? https://actu.epfl.ch/news/what-are-neurorights-and-why-do-we-need-them/
  3. It’s Time for Neuro – Rights. https://www.cirsd.org/en/horizons/horizons-winter-2021-issue-no-18/its-time-for-neuro–rights
  4. Ienca, M. We must expand human rights to cover neurotechnology. https://ethz.ch/en/news-and-events/eth-news/news/2021/10/marcello-ienca-we-must-expand-human-rights-to-cover-neurotechnology.html
  5. Farinella, F., Evgenyevna, E. Human neuro-rights. Gulyaeva.https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/6414
  6. Ienca, M. On Neurorights. https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnhum.2021.701258/full
  7. OECD. Recommendation on Responsible Innovation in Neurotechnology.https://www.oecd.org/science/recommendation-on-responsible-innovation-in-neurotechnology.htm
  8. The Science of Mind Reading. Annals ofTechnology December 6, 2021 Issuehttps://www.newyorker.com/magazine/2021/12/06/the-science-of-mind-reading
  9. Machines can read your brain. There’s little that can stop them. https://www.politico.eu/article/machines-brain-neurotechnology-neuroscience-privacy-neurorights-protection/
  10. Neurotechnology can already read minds: so how do we protect our thoughts? https://english.elpais.com/spanish_news/2020-08-24/neurotechnology-can-already-read-brains-so-how-do-we-protect-our-thoughts.html?ssm=TW_CC
  11. Chile en la historia mundial: primer país que tendrá ley de neuroderechos https://www.elmostrador.cl/cultura/2021/09/23/chile-en-la-historia-mundial-primer-pais-que-tendra-ley-de-neuroderechos/
  12. https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnhum.2021.701258/full

[3] (Haynes et al. 2007) Haynes J-D, Sakai K, Rees G, Gilbert S, Frith C, Passingham RE. Reading hidden intentions in the human brain. Curr Biol. 2007;17(4):323–8.

[4] NATURE PODCAST. 12 May 2021 – The brain implant that turns thoughts into text Benjamin Thompson ; Shamini Bundellhttps://www.nature.com/articles/d41586-021-01292-5) ; Willett, F.R., Avansino, D. T., Hochberg, L. R. et al. High-performance brain-to-text communication via handwriting. Nature 593, 249–254 (2021). https://doi.org/10.1038/s41586-021-03506-2);

[5] Ienca, M, (2021) On Neurorights. Front. Hum. Neurosci. 15:701258. doi: 10.3389/fnhum.2021.701258.

Autores

  • é advogada, doutora e mestra em Direito do Estado pela PUC-SP. Pesquisadora do mestrado profissional em Direito Tributário da FGV e do programa de pós-graduação do TIDD (Tecnologias da Inteligência e Design Digital) da PUC-SP. Integrante da Comissão Direito e Artes do IASP.

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