Opinião

Sociedade limitada sob regência da Lei das S/A e a possibilidade de distribuição de lucros desproporcionais

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17 de março de 2025, 20h40

A sociedade limitada constitui-se como o tipo societário mais utilizado no Brasil, sendo comumente relacionada como uma sociedade híbrida, ou seja, a depender de suas características pode ter natureza de “pessoas” ou “de capital”.

Motivado por sua natureza híbrida, o legislador conferiu aos sócios das sociedades limitadas a possibilidade de optar pela aplicação supletiva da Lei 6.404/1976 (Lei das S/A), conforme estabelecido no artigo 1.053, parágrafo único, da Lei 10.406/2002 (Código Civil):

“Art. 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples.

Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima.” (grifo do articulista)

A expressão regência supletiva da Lei das S/A sugere uma função complementar, não substitutiva, e nem alternativa.

Embora pareça uma regra clara, ainda podem surgir dúvidas práticas sobre a aplicação das normas da Lei das S/A ou das normas do capítulo das sociedades simples, isso quando aquela é definida como regramento supletivo e as suas regras se mostram omissas ou se diferenciam das previstas no Código Civil. Exemplos disso incluem os casos como a distribuição desproporcional de lucros (artigo 1.007 do Código Civil) e o direito de retirada imotivada (artigo 1.029 do Código Civil).

Portanto, é importante entender a aplicabilidade de cada norma de acordo com a natureza de cada tipo societário, para evitar a criação de uma “sociedade frankenstein”, que adota as regras dos diferentes tipos societários conforme conveniência das situações práticas.

Distribuição desproporcional de lucros com regência supletiva da Lei das S/A

Ao analisar a possibilidade de distribuição desproporcional de lucros — matéria não disciplinada no capítulo das sociedades limitadas e expressamente proibida pela Lei das S/A, cujo artigo 109, parágrafo 1º, assegura igualdade entre acionistas da mesma classe — é fundamental compreender o conceito de supletividade.

A referida compreensão deve iniciar-se pela análise do entendimento jurisprudencial. Embora não haja um caso específico tratando diretamente da distribuição desproporcional de lucros em sociedades limitadas sob a aplicação supletiva da Lei das S/A, existe precedente envolvendo o exercício do direito de retirada imotivada. Neste caso, o Superior Tribunal de Justiça determinou que, na ausência de disposições específicas na Lei das S/A aplicam-se as normas do Código Civil:

“(…) A ausência de previsão na Lei n. 6.404/76 acerca da retirada imotivada não implica sua proibição nas sociedades limitadas regidas supletivamente pelas normas relativas às sociedades anônimas, especialmente quando o art. 1.089 do CC determina a aplicação supletiva do próprio Código Civil nas hipóteses de omissão daquele diploma. (…) (REsp 1.839.078/SP, Relator Ministro Paulo De Tarso Sanseverin, Terceira Turma, Data do julgamento 09/03/2021, Data da Publicação 26/03/2021).”

Apesar de não ser o caso de omissão da Lei das S/A, a qual dispõe que as ações de uma mesma classe conferirão direitos iguais aos seus titulares, essa limitação não pode substituir ou contrariar regra do regime jurídico específico da sociedade limitada, o qual é composto pelo capítulo específico do Código Civil, por seu contrato social e pelas regras gerais das sociedades simples, conforme explica Paula Andrea Forgioni [1]:

“(…) a disciplina das limitadas é composta dos dispositivos específicos, que se complementam pelas regras gerais das sociedades simples que com eles forem harmonizáveis ou compatíveis, e (ii) caso seja a vontade das partes, expressa no contrato social, a sociedade limitada (ou seja, o regramento da sociedade limitada, composto pelas regras específicas, por seu contrato social e pelas regras ‘gerais’ das sociedades simples”) clama pela disciplina supletiva (complementar) das sociedades anônimas.”

A sociedade limitada é, portanto, regida por um escalonamento de regras, que deverão ser rigorosamente observadas, conforme esclarecido por Gustavo Saad Diniz[2]:

“(…) Dessa maneira, observa-se o seguinte escalonamento para o conjunto de regras desse tipo societário: (a) regras especiais do modelo, previstas nos arts. 1.052 a 1.087 do CC; (b) regras do contrato social; (c) regras de ordem pública e de direitos indisponíveis; (d) regras gerais de sociedades simples, aplicáveis como provedoras do sistema; (e) regras supletivas da LSA, de acordo com a compatibilidade, se esse for o modelo adotado pelo contrato.”

Dessa forma, se o Código Civil, especificamente o artigo 1.007, permite os sócios estipularem a distribuição desproporcional de lucros, a Lei das S/A, quando escolhida como norma de regência supletiva, não poderá contrariar regra daquele ordenamento jurídico, seja por omissão ou por tratar o assunto de forma diferenciada em seus dispositivos.

Em consonância as regras de escalonamento de normas, a Lei das S/A, por lógica, não poderia ser aplicada de forma alternativa ou substitutiva, conforme demonstrado por Alfredo de Assis Gonçalves Neto [3]:

“Não é possível que uma regra da Lei do Anonimato venha a ser aplicada quando há tratamento específico da matéria nesses dispositivos legais. Ou seja, não pode a sociedade limitada, por exemplo, promover a convocação de assembleia geral, ou regular o conselho fiscal, nos moldes previstos na Lei 6.040/1976, quando diverso daqueles que estão previstos nos dispositivos do Código Civil. O caráter supletivo das normas da antes referida lei não é alternativo nem substitutivo do regime próprio a que está sujeita a sociedade limitada.”

Portanto, pode-se concluir que as sociedades limitadas são regidas por um conjunto de normas específicas, não sendo admitido a aplicação de outras normas de forma alternativa ou substitutiva, possibilitando a distribuição desproporcional de lucros, mesmo com a aplicação supletiva da Lei das S/A prevista no contrato social.

Spacca

Premissas para a distribuição desproporcional de lucros

Reconhecendo a possibilidade da distribuição desproporcional de lucros em sociedades limitadas regidas supletivamente pela Lei S/A, é fundamental observar certas “premissas” para evitar futuros questionamentos ou prejuízos aos direitos essenciais dos sócios, como a participação dos lucros e perdas (artigo 1.008, Código Civil), norma de ordem pública que não pode ser afastada pela autonomia privada.

A definição da distribuição desproporcional no contrato social é a premissa essencial para possibilitar essa prática. Isso se deve ao fato de, além de ser um requisito legal (artigo 1.007 do Código Civil), os sócios desfrutam de autonomia privada para prever o referido tipo de regramento, um dos princípios mais importantes e uma das principais razões pelas quais a sociedade limitada se destaca como o tipo societário mais escolhido no Brasil.

A segunda premissa é estabelecer critérios objetivos para a distribuição desproporcional. Isso ajuda a evitar questionamentos futuros sobre possíveis infrações as normas de ordem pública, como a mencionada no parágrafo anterior, ou até mesmo a suspeita de uma doação disfarçada de dividendos, conforme decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“DECISÃO: (…) Não há critério definido, objetivo, para a hipótese de distribuição desproporcional dos lucros, deixando ao arbítrio dos sócios que representam mais da metade do capital social (…) a escolha pela distribuição desproporcional, sem qualquer justificativa. Dada a alta litigiosidade entre os litigantes, sem que haja sequer valor ou percentual mínimo de distribuição de lucros, a atual redação da Cláusula Sétima “possibilita” aos réus que não distribuam lucros à autora. As aspas acima se explicam: a redação dá ensejo a essa intenção, mas a lei não permite. (…) (TJSP. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Apelação Cível 1013364-28.2014.8.26.0100. Relator: Ricardo Negrão. Data do Julgamento: 26/06/2020. Data de Registro: 26/06/2020)”

“EMENTA: (…) – ITCMD DOAÇÃO TRAVESTIDA DE DISTRIBUIÇÃO DESPROPORCIONAL DE DIVIDENDOS IMPOSSIBILIDADE DE AFASTAMENTO DA TRIBUTAÇÃO REFERENTE À DOAÇÃO Pretensão mandamental voltada a reconhecer o direito líquido e certo do impetrante de não ser compelido ao pagamento do ITCMD incidente sobre a distribuição desproporcional de lucros realizada pela sociedade (…), ou, alternativamente, a redução da multa de 100% do valor do tributo inadmissibilidade – a doação difere da distribuição desproporcional de lucros lícita em razão da liberalidade espontânea estar presente na primeira situação e o propósito negocial na segunda ausente, no caso, a razão negocial, e presente a liberalidade espontânea, assim considerado o animus donandi, de modo que a transferência do patrimônio da sociedade para os sócios (não administradores à época), ainda que com aparência de distribuição desproporcional de lucros, caracteriza-se como doação (…) (TJSP. 4ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n° 1089011-58.2023.8.26.0053. Relator Paulo Barcellos Gatti. Data do Julgamento: 16/12/2024, Data da Publicação: 28/01/2025).”

A terceira e última premissa seria a formalização da distribuição desproporcional de lucros. Isso deve ocorrer através de deliberação e aprovação em uma reunião de sócios, seguida pela assinatura e registro da respectiva ata. Todo o processo deve atender aos trâmites e requisitos legais e contratuais, garantindo assim, a conformidade e a validade das decisões tomadas.

Conclusão

Em resumo, a aplicação supletiva da Lei das S/A às sociedades limitadas não visa restringir as regras do capítulo das sociedades limitadas ou das sociedades simples, mas sim buscar compatibilidade e seguir uma ordem escalonada na aplicação das normas.

Em outras palavras, quando o capítulo das sociedades limitadas for omisso em relação a determinado instituto, será aplicada, na medida da compatibilidade, a previsão do capítulo das sociedades simples. A Lei das S/A será aplicada supletivamente apenas se escolhida pelo empresário e desde que o instituto em questão seja compatível com a estrutura e as normas das sociedades limitadas, sem contrariar ou substituir o que está estipulado no Código Civil, tanto no capítulo das sociedades limitadas quanto no das sociedades simples.

Esse é o caso da distribuição desproporcional de lucros. Embora a Lei das S/A preveja tratamento igualitário entre acionistas da mesma classe, essa vedação não se harmoniza às características das sociedades limitadas, nem à lógica da regra de supletividade das normas.

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