Por que advogado público precisa de inscrição na OAB
15 de maio de 2025, 8h00
Está em julgamento no STF (Recurso Extraordinário 609.517) a obrigatoriedade de os advogados públicos serem inscritos na OAB. Pareceria um caso fácil (easy case), tornou-se um caso difícil (hard case) e corre o risco de se tornar um tragic case (caso trágico).
Aparentemente não haveria problemas em um advogado público não ter a inscrição. Afinal, ele é empregado público. Porém, há vários elementos perturbadores nessa equação.
Primeiro, a Ordem dos Advogados do Brasil é a “agência” que regula a profissão — de forma autônoma. Como ocorre em outras profissões. A OAB é mais poderosa do que as demais, essa é a diferença.
De pronto, singelamente, imaginem um médico sem CRM, um engenheiro sem o Crea. Parece não ter sentido para um observador.
Dirão os defensores da dispensa da OAB que, por ser advogado público, quem regula a profissão (ou a função, nesse caso?) é o órgão público. Há leis próprias. Porém, continua sendo advogado. Causídico. Na maioria dos casos, ganha honorários. Pode alguém sem inscrição na Ordem dos Advogados receber honorários? E, se for preso, receber proteção da OAB? E invocar as prerrogativas de advogado?

Outro ponto bem levantando pelo ministro Nunes Marques: o problema do quinto constitucional. É destinado a advocacia. Advogado pressupõe estar ligado à OAB. Penso que não há como um advogado sem inscrição na OAB concorrer ao quinto da classe advocatícia. Um problema: se é a OAB que faz a lista sêxtupla, como ela fará a escolha de alguém que não é de seus quadros? É aqui que reside a inconstitucionalidade da dispensa.
Explico: as palavras da lei têm sentido próprio. Não se pode, convencionalisticamente ou de forma criterial, criar um conceito artificial de advogado que vá em sentido contrário ao que se maneja na tradição. O sentido de “advogado” está posto na Constituição no momento em que fala todo o tempo em advogado e advocacia. E advogado só existe plenamente (caso contrário, é bacharel em direito) se estiver com sua OAB em dia, por assim dizer.
O quinto constitucional é o elo de ligação da advocacia com o Estado definido em termos de três poderes. Uma parte ingressa sem concurso. Quem? Aqueles que tem prática advocacia. E quem faz a lista? O órgão de classe. Pode alguém, então, concorrer ao quinto sem ser do órgão de classe? Não.
Nesse contexto, vale destacar o entendimento que está sendo construído pelo Plenário da Suprema Corte, no julgamento (ainda em curso) da ADI 6.810. Trata-se da (in)constitucionalidade de expressão contida em dispositivo normativo editado pelo Conselho Federal da OAB que restringe a possibilidade de participação nas listas sêxtuplas aos advogados inscritos no conselho seccional abrangido pela competência do Tribunal Judiciário onde se der a vaga a ser preenchida pelo quinto constitucional há pelo menos cinco anos (artigo 5º, caput, parte final, do Provimento nº 102/2004).
Ou seja, o dispositivo prevê que, além de mais de dez anos de efetivo exercício da advocacia, critério estabelecido expressamente pelo próprio texto constitucional (CF, artigo 94), que metade desse tempo de exercício profissional se dê em localidade abrangida pela competência territorial do tribunal a cuja vaga se concorre pelo quinto constitucional
O ministro relator, Dias Toffoli, registrou em seu voto que os requisitos subjetivos (notório saber jurídico e reputação ilibada) e objetivo (mais de dez anos de efetiva atividade profissional) previstos no artigo 94 do texto constitucional, seriam exaustivos. Considerou, portanto, que o órgão de representação não poderia ampliar as exigências estabelecidas na Constituição, pois isso representaria uma restrição de direitos dos advogados e violação ao princípio da isonomia.
Divergência
Por outro lado, inaugurando a divergência, o ministro Flávio Dino destacou que se impõe ao Conselho Federal (ou ao Conselho Seccional, artigo 58, XIV, do EOAB) a definição dos nomes que formarão a lista. E, ainda, que o procedimento de formação da lista se alinha melhor aos princípios constitucionais da transparência, da impessoalidade e da moralidade quando são adotados critérios objetivos e previamente conhecidos de todos os possíveis interessados, exatamente o que se verifica em relação ao período mínimo de atuação. Por isso, tendo em vista que o critério da aderência ao Estado ou região se volta indistintamente ao conjunto de advogados brasileiros interessados em ingressar aos quadros da magistratura pela via do quinto constitucional, não haveria afronta ao princípio da isonomia.
Além disso, observou que tal critério (existente há muito tempo) não cria qualquer obstáculo à concretização ao instituto do quinto constitucional, conforme estabelecido no artigo 94 da Constituição. E, ainda, que a própria Constituição, em seus artigos 107 e 115, prevê que os Tribunais Regionais Federais e Tribunais Regionais do Trabalho devem ser compostos de juízes “recrutados, quando possível, na respectiva região”.
Até o momento, acompanharam o voto divergente, outros seis Ministros, formando maioria quanto à constitucionalidade da exigência, portanto.
Ora, se o Supremo Tribunal Federal, ao que tudo indica, vai julgar improcedente o pedido de declaração de inconstitucionalidade supracitado (ADI 6.810), precisamente por entender que (i) quem define a lista sêxtupla é a OAB e que (ii) o estabelecimento de critérios de aderência ao Estado ou região se impõe indistintamente ao conjunto de advogados brasileiros interessados em ingressar aos quadros da magistratura pela via do quinto constitucional, não havendo afronta ao princípio da isonomia, então não feriria o princípio da isonomia se advogados públicos pudessem fazer parte da lista sem serem inscritos na OAB?
A ratio por trás do entendimento não é de que a existência de critérios objetivos e previamente conhecidos de todos os possíveis interessados se alinha melhor à comum-unidade dos princípios constitucionais? Então não é contraditório que se admita a aplicação de critérios distintos aos advogados a depender da esfera de atuação (pública ou privada)? Aqui deveria ser observada a coerência e a integridade do direito (artigo 926 CPC).
Um adendo: a prova da OAB é o filtro de ingressa na profissão de advogado. Por qual razão um concurso público pode substituir as especificidades do exame de Ordem? Pensemos em pequenos municípios cujo concurso para advogado público é menos rigoroso que o exame de Ordem. E assim por diante. Uma coisa é o filtro profissional. Outra é o filtro que o Estado possui. Mas o segundo não substitui o primeiro.
Disse bem Beto Simoneti, presidente da OAB Nacional:
“É ela [a inscrição] que viabiliza a atuação da entidade na proteção das prerrogativas desses profissionais — inclusive a não responsabilização por pareceres —, na defesa da percepção de honorários advocatícios e na inclusão da advocacia pública nas listas para o quinto constitucional. Sem esse vínculo, perde-se a possibilidade de representar adequadamente os interesses de milhares de colegas que atuam nos três níveis da Administração Pública.”
De modo semelhante, os que votaram a favor da obrigatoriedade destacaram que a ausência de vínculo com a OAB poderá enfraquecer a representação institucional dos advogados públicos, já que quem faz a lista continua sendo a Ordem dos Advogados do Brasil.
Entre eles, o ministro Nunes Marques bem afirmou que inexiste regulamentação específica que substitua o Estatuto da Advocacia para as carreiras públicas. Já o ministro Edson Fachin reiterou a necessidade de tratamento isonômico para advogados públicos e privados.
Estão corretos. E, ainda, insisto: não há que se observar a consistência lógica que o julgamento de casos semelhantes deve guardar entre si? E o ajuste com os elementos normativos do direito em uma perspectiva de substância, de princípio? Há que se anotar a contradição com os argumentos mobilizados na ADI 6.810.
Votando contra a obrigatoriedade, o ministro Cristiano Zanin considerou que no caso de advogados e defensores públicos, não é obrigatória a inscrição na OAB, já que a autorização para atuar vem do ingresso por concurso público. O entendimento foi seguido pelos ministros Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e Flávio Dino, para quem a OAB tem caráter privado.
A pergunta que fica é: apenas porque a OAB tem caráter privado, os advogados públicos que tenham interesse em ingressar aos quadros da magistratura pela via do quinto constitucional ficam dispensados, anti-isonomicamente, da inscrição junto ao órgão de representação? Ao dizer — a Constituição, em seu artigo 94 — que a indicação deve ser feita em lista sêxtupla pelos órgãos de representação, o “não dito” [1] não é que a inscrição é um pressuposto?
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[1] Sobre o “não dito”, explica Gadamer: “Cada palavra faz ressoar o conjunto da língua a que pertence, e deixa aparecer o conjunto da acepção do mundo que lhe subjaz. Por isso, cada palavra, como acontecer de seu momento, faz que aí esteja também o não dito, ao qual se refere, respondendo e indicando. A ocasionalidade do falar humano não é uma imperfeição eventual de sua capacidade expressiva, mas, antes, expressão lógica da virtualidade viva do falar que, sem poder dizê-lo inteiramente, põe em jogo todo um conjunto de sentido” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método; tradução de Flávio Paulo Meurer. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p. 664)
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