Justiça Tributária

O Imposto Seletivo e o equivocado veto à não incidência sobre exportações

Autor

  • é professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj livre-docente em Direito Tributário pela USP diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro) advogado e parecerista.

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5 de maio de 2025, 9h18

Um tema que provavelmente gerará controvérsias e contencioso em decorrência da reforma tributária é a incidência do Imposto Seletivo (IS), sobre o qual já escrevemos diversas contribuições nesta coluna. Neste texto trataremos de uma questão bastante específica relacionada a este imposto: a imunidade das operações de exportação e o veto, pelo presidente da República, ao inciso I, do caput, do artigo 413 da Lei Complementar nº 214 (LC 214).

Esta questão passa pelo estudo de dois dispositivos introduzidos na Constituição pela Emenda Constitucional nº 132 (EC 132): os incisos I e VII do § 6º do artigo 153. Vejamos.

Imunidade tributária das operações de exportação

Em relação a todos os tributos que oneram operações de consumo, a Constituição previu a imunidade tributária da exportação. Como observava o professor Ricardo Lobo Torres, da Uerj (Universidade do Estado do Rio), essa imunidade constitui verdadeira proteção de liberdades fundamentais que materializam o princípio do país de destino. [1] Este é um vetor tão antigo do sistema tributário que sobre ele Aliomar Baleeiro, também professor da Uerj, destacava que “antes mesmo da independência, já se ponderava a el-rei o caráter irracional e antieconômico de imposto sobre os produtos coloniais exportados”. [2]

O IS seguiu a orientação geral de que não se exporta custo tributário e previu, no inciso I do § 6º do artigo 153 da CF, que o IS “não incidirá sobre as exportações nem sobre as operações com energia elétrica e com telecomunicações”. (destaque nosso)

Conforme já sustentamos em estudo acadêmico, “o texto é o ponto de partida de qualquer esforço hermenêutico, servindo, ainda, de limite ao labor interpretativo. Como destaca Karl Larenz, ‘toda a interpretação de um texto há de iniciar-se com o sentido literal. Por tal entendemos o significado de um termo ou de uma cadeia de palavras no uso linguístico geral ou, no caso de que seja possível constatar um tal uso, no uso linguístico especial do falante concreto, aqui no da lei respectiva’.” [3]

É verdade que, como defendemos no mesmo trabalho, a interpretação se dá nos marcos do chamado pluralismo metodológico. [4] Contudo, o fato de se atribuir relevância a diversos elementos de interpretação não faz com que o texto perca sua relevância ou deixe de ser a base para a atividade hermenêutica, afinal, “a atividade do intérprete está pautada pelos limites do próprio texto a ser interpretado”. [5]

Ainda assim, mesmo diante do pluralismo metodológico, o texto normativo apresenta um limite à atividade interpretativa, que não pode ser exercida de forma a inovar o direito para além dos sentidos possíveis de se construir a partir dos elementos textuais.

Voltando nossa atenção para o inciso I do § 6º do artigo 153 da CF, os comentários acima indicam que, independentemente dos elementos de interpretação utilizados, temos uma realidade jurídica inquestionável: uma operação de exportação não pode sofrer a incidência do IS.

Incidência do Imposto Seletivo sobre a extração

Uma das novidades trazidas durante a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional nº 45 (PEC 45) foi a incidência do IS sobre a extração de bens prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Segundo temos apontado, esta incidência escancarou a finalidade arrecadatória do novo imposto, tendo surgido para compensar os muitos regimes diferenciados que proliferaram no âmbito do IBS e da CBS.

A materialidade constitucional desta incidência nos parece bem clara. A atividade econômica que deve ser tributada é a extração de bens, conforme previsto no inciso VIII do artigo 153 da CF. Fatos econômicos subsequentes à extração não podem ser tributados com base na competência prevista neste inciso.

Inciso VII do § 6º do artigo 153 da CF

Um dispositivo que tem gerado alguma controvérsia interpretativa é o inciso VII do § 6º do artigo 153 da CF, cuja redação é a seguinte:

“VII – na extração, o imposto será cobrado independentemente da destinação, caso em que a alíquota máxima corresponderá a 1% (um por cento) do valor de mercado do produto.”

Note-se que este dispositivo estabelece duas regras distintas aplicáveis à incidência do IS sobre a extração. A primeira, prevê que o IS será cobrado independentemente da destinação do bem extraído. Por outro lado, a segunda determina que a alíquota máxima do IS incidente sobre tais operações será de 1%.

Nosso foco neste artigo está na primeira regra, a previsão de que na extração o IS incidirá independentemente da destinação do bem.

Spacca

Parece-nos que este dispositivo tem uma interpretação bastante simples. Ele estabelece que nas situações em que o IS incide sobre a extração, haverá incidência independentemente do tipo de operação subsequente. Em outras palavras, a incidência poderá ocorrer na extração independentemente de se o bem será posteriormente vendido no mercado interno, exportado, consumido, etc. Contudo, em todos os casos a incidência somente poderá ocorrer na extração.

Dessa forma, o inciso VII do § 6º do artigo 153 da CF não estabeleceria a possibilidade de incidência do IS sobre a operação de exportação — da mesma maneira que não autorizaria a cobrança sobre o consumo do bem extraído. Em verdade, a finalidade deste inciso, segundo vemos, é apenas e tão somente impedir que uma empresa alegue que a sua atividade de extração não estaria sujeita ao IS pelo fato de suas operações subsequentes serem de exportação. (Em sentido contrário, ver o artigo de Breno Vasconcelos e Thais Veiga Shingai, aqui).

Imunidade das exportações e cláusula pétrea

Como já mencionamos, o professor Ricardo Lobo Torres sustentava que a imunidade das exportações, expressão concreta do princípio do país do destino, representa verdadeira intributabilidade das exportações vinculada a liberdades fundamentais, sendo, portanto, cláusula pétrea.

Uma abordagem nesse sentido joga outra luz sobre o inciso VII do § 6º do artigo 153 da CF, no que tange às situações em que os bens extraídos destinam-se exclusivamente para a exportação, uma vez que a incidência do IS sobre extrações destinadas à exportação pode ser considerada inconstitucional.

Este tema não é o foco deste estudo, de modo que deixaremos para desenvolvê-lo em outra oportunidade.

Equivocado veto ao Inciso I do caput do artigo 413 do PLC 68/24

É com os comentários acima em mente que devemos analisar o veto do presidente da República ao inciso I do caput do artigo 413 do Projeto de Lei Complementar nº 68/2024, que foi justificado nos seguintes termos:

Inciso I do caput do art. 413 do Projeto de Lei Complementar
‘I – as exportações para o exterior de bens e serviços de que trata o art. 409 desta Lei Complementar;’

Razões do veto
‘Em que pese a boa intenção do legislador, ao instituir cláusula geral de não incidência do imposto seletivo na exportação, o dispositivo viola o inciso VII do § 6º do artigo 153 da Constituição, que determina a incidência tributária sobre bens minerais na extração, independentemente de sua destinação.

Registre-se, por oportuno, que a imunidade para exportações para as outras hipóteses do imposto seletivo está garantida pela aplicação direta do regramento constitucional.’”

Ao considerarmos os comentários anteriores, somos forçados a concluir que este veto está baseado em uma interpretação equivocada dos novos dispositivos da Constituição, devendo ser rejeitado pelo Congresso.

Este artigo 413 da LC 214 trata da “não incidência” do IS. Embora sejam razoavelmente comuns em textos tributários, regras sobre “não incidência”, como regra, têm fins meramente didáticos. Normalmente elas repetem regras de imunidade que não precisam estar previstas na legislação infraconstitucional, ou declaram como não tributáveis fatos econômicos que simplesmente não se enquadram na regra de incidência de certo tributo.

Como exemplo, o dispositivo encontrado em algumas leis de ICMS que estabelecem que o imposto estadual não incide sobre a locação de bens (ver, por exemplo, o artigo 40, inciso XVII da Lei nº 2.657/1996 do Estado do Rio de Janeiro).

Essa era a natureza do inciso I do caput do artigo 413 do Projeto de Lei Complementar nº 68/2024. Tratava-se de uma regra de não incidência didática que simplesmente repetia a imunidade prevista no inciso I do § 6º do artigo 153 da CF.

A primeira conclusão a que chegamos, portanto, é que estamos diante de um veto equivocado, porém inútil. Sendo a imunidade do IS em relação a operações de exportação de eficácia imediata e incondicionada, ela será aplicável exista ou não o inciso I do caput do artigo 413 ora em comento. O próprio parágrafo das razões do veto parece reconhecer o óbvio: a imunidade tributária do IS sobre exportações não requer a mediação de lei infraconstitucional.

Entretanto, se ultrapassarmos a irrelevância do veto e analisarmos a sua justificativa, comprovaremos que ele está baseado em uma interpretação equivocada do texto constitucional.

O argumento utilizado pelo presidente da República para justificar o veto foi o de que o inciso I do caput do artigo 413 do Projeto de Lei Complementar nº 68/2024 estaria em contradição com o inciso VII do § 6º do artigo 153 da CF. Nada obstante, como vimos, este dispositivo constitucional em nenhum momento autorizou a incidência do IS sobre operações de exportação. O que ele fez foi determinar que eventos futuros, como a exportação do bem, não impediriam a incidência sobre a extração.

Nessa linha de ideias, o veto que estamos analisando nos parece irremediavelmente inconstitucional. Ele parte de uma interpretação equivocada da CF e, como tal, deve ser rejeitado pelo Congresso.

Além de equivocado, um tanto desnecessário

O veto presidencial que estamos comentando gerou grande desconforto no setor extrativo, que vê a ausência do inciso I do caput do artigo 413 na LC 214 um risco de potencial tributação de operações imunes.

Contudo, os efeitos desse veto são praticamente inexistentes, tendo em vista a eliminação, durante a tramitação do PLP 68, de um dispositivo sobre o momento da ocorrência do fato gerador do IS, o qual previa que este se consumaria “no momento da exportação de bem mineral”.

Em linha com o que vimos defendendo, este dispositivo seria inconstitucional, o que talvez seja a razão que tenha levado à sua exclusão do texto final da LC 214. Este não tem a exportação entre as situações tributáveis em seu artigo 412 e prevê, de forma alinhada com o texto constitucional, que a incidência do IS se daria apenas na extração de bem mineral.

Percebemos, portanto, que, embora o veto presidencial que estamos comentando veicule uma interpretação equivocada da Constituição Federal, com a redação atual da LC 214, além de juridicamente errado, ele é igualmente irrelevante, o que seria mais uma razão para que seja derrubado pelo Congresso.

Conclusão

Por todo o exposto, podemos concluir o seguinte:

A imunidade constitucional das operações de exportação em relação ao IS tem eficácia imediata e incondicionada, de modo que não depende de previsão em legislação infraconstitucional.
Por esta perspectiva, o veto presidencial ao inciso I do caput do artigo 413 do Projeto de Lei Complementar nº 68/2024 é irrelevante, uma vez que este dispositivo tem natureza meramente didática, não sendo constitutivo da não incidência do IS sobre exportações.
As razões do veto dadas pelo presidente da República interpretam de forma equivocada a Constituição. O inciso VII do § 6º do artigo 153 da CF não veicula uma exceção à imunidade das exportações previstas no inciso I do mesmo parágrafo. Dessa forma, a Constituição não autoriza a incidência do IS sobre exportações em nenhuma hipótese, nem mesmo quando o bem exportado é extraído.
Assim sendo, o veto presidencial que analisamos neste texto deve ser derrubado pelo Congresso. Mesmo que, como falamos, ele seja inútil, diante da aplicação direta e imediata do inciso I do § 6º do artigo 153 da CF, este veto gera dúvidas e insegurança, sendo de todo aconselhável a sua derrubada.

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[1] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. v. II. p. 343.

[2] BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 779.

[3] ROCHA, Sergio André. Interpretação dos Tratados para Evitar a Bitributação da Renda. 2 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 145-146.

[4] Ver: TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2024. p. 144-156.

[5] ROCHA, Sergio André. Interpretação da legislação tributária e seus limites: o caso da restrição da dedutibilidade de royalties pagos a sócios no exterior. Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT, Belo Horizonte, ano 18, n. 103, p. 49-64, jan./fev. 2020, p. 51.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro e Tributário da Uerj, livre-docente em Direito Tributário pela USP, diretor vice-presidente da ABDF, advogado e parecerista.

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