Judicialização da saúde e formação jurídica: a ausência que o Fonajus ainda precisa enfrentar
5 de maio de 2025, 14h26
O Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde, iniciativa histórica do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), completou 15 anos de existência [1]. Criado pela Resolução nº 107/2010, o Fonajus consolidou um espaço de articulação e racionalização da resposta judicial às demandas de saúde, num contexto de crescente judicialização em todo o país.
Os avanços são inegáveis. A criação dos Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus) [2], o banco nacional de pareceres técnicos (e-NATJus) e, mais recentemente, a instituição da Política Judiciária Nacional de Saúde [3] são conquistas que merecem ser celebradas. Estes instrumentos trouxeram mais técnica e previsibilidade às decisões judiciais, beneficiando tanto a efetividade dos direitos quanto a gestão das políticas públicas sanitárias.
Contudo, ao celebrar essa trajetória, é necessário reconhecer que ainda há um desafio fundamental a ser enfrentado: a ausência do direito sanitário na formação jurídica brasileira.
O direito sanitário, enquanto campo jurídico específico, constitui um instrumento essencial para a concretização do direito à saúde e a organização das políticas públicas sanitárias. Como já alertava Sueli Dallari em 1988 [4], a efetividade do direito à saúde exige não apenas a criação de serviços, mas a construção de uma arquitetura jurídica que ampare, proteja e promova a saúde coletiva. Essa construção permanece incompleta.
Saúde como direito fundamental
A Constituição de 1988 elevou a saúde à condição de direito fundamental [5], impondo ao Estado o dever de formular e implementar políticas públicas que reduzam os riscos de adoecimento e promovam condições dignas de vida. O Sistema Único de Saúde (SUS) nasceu dessa concepção, estruturado sob os princípios da universalidade, integralidade e equidade.
O SUS, entretanto, não é apenas uma estrutura administrativa ou assistencial: é um objeto jurídico complexo, que articula normas constitucionais, leis infraconstitucionais, atos normativos infralegais e pactuações interfederativas. Essa complexidade exige um corpo jurídico próprio, que compreenda a saúde em sua dimensão coletiva, regulatória e distributiva.

O direito sanitário, por sua natureza, é um campo interdisciplinar, que exige diálogo com as ciências da saúde, a epidemiologia, a bioética, a gestão pública e a economia da saúde. O jurista que atua nesse campo deve ser capaz de interpretar normas jurídicas à luz de evidências científicas e das realidades sociais, estruturando decisões que respeitem tanto os marcos legais quanto os parâmetros técnicos sanitários.
As Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Direito (Resolução CNE/CES nº 5/2018) [6], contudo, não mencionam o direito sanitário como conteúdo obrigatório, nem reconhecem a saúde como eixo estruturante da formação humanística dos juristas. Essa omissão compromete a formação dos bacharéis em direito e impede que o sistema de justiça esteja plenamente preparado para lidar com a complexidade das políticas públicas de saúde.
Judicialização da saúde
O fenômeno da judicialização da saúde, com mais de 870 mil processos em tramitação até fevereiro de 2025 [7], revela esse descompasso. Como aponta Leonel Pires Ohlweiler, a falta de uma formação crítica e integrada leva a uma juridicidade fragmentada, marcada por decisões pulverizadas, desarticuladas da lógica das políticas públicas e, muitas vezes, socialmente injustas [8].
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) já avançou nesse debate. Em 2017, publicou a cartilha “Atenção Básica à Saúde no Brasil”: O Ministério Público e a sua atuação, recomendando a inclusão do direito sanitário nos cursos de formação, ingresso e vitaliciamento de membros do Ministério Público [9]. Reconheceu-se, assim, que a atuação institucional em saúde exige preparo técnico-jurídico especializado.
A consolidação do direito sanitário como campo jurídico próprio no Brasil muito se deve ao trabalho pioneiro de juristas como Lenir Santos [10] e Fernando Aith [11], que há décadas defendem a necessidade de uma doutrina jurídica específica para a saúde coletiva. Seus esforços teóricos e institucionais demonstram que a efetividade do direito à saúde depende da existência de normas claras, de estruturas públicas sólidas e da compreensão da saúde como direito social fundamental.
Sem a construção de uma teoria jurídica própria e de formação específica, a judicialização continuará a crescer como resposta individualizada à ausência de respostas estruturadas.
Políticas judiciárias
É tempo de o Poder Judiciário trilhar o mesmo caminho que outros órgãos constitucionais já iniciaram. A consolidação de políticas judiciárias é necessária, mas insuficiente sem a formação crítica e especializada de magistrados e servidores. Formar operadores jurídicos capazes de compreender o SUS, os princípios constitucionais da saúde, os determinantes sociais e as pactuações federativas é passo essencial para construir soluções estruturantes.
A transformação necessária não se esgota na produção de pareceres técnicos. Exige a formação de juristas comprometidos com a saúde como direito fundamental, com a política pública como instrumento de justiça social e com o SUS como projeto civilizatório de proteção da vida e da dignidade humana.
Incluir o direito sanitário na formação jurídica não é apenas uma inovação pedagógica. É um imperativo constitucional e democrático, sem o qual o sistema de justiça continuará a reproduzir desigualdades e a comprometer a efetividade do direito à saúde.
[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.
[2] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 107, de 6 de abril de 2010. Cria o Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (FONAJUS).
[3] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 238, de 6 de setembro de 2016. Institui os Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus).
[4] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 530, de 28 de novembro de 2023. Institui a Política Judiciária Nacional de Saúde.
[5] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Relatório “Judicialização e Sociedade”. Brasília: CNJ, 2021.
[6] CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Resolução CNE/CES nº 5, de 17 de dezembro de 2018. Estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito.
[7] DALLARI, Sueli G. Uma nova disciplina: o direito sanitário. Revista de Saúde Pública, v. 22, n. 4, p. 327–334, 1988. DOI: 10.1590/S0034-89101988000400010.
[8] OHLWEILER, Leonel Pires. Perspectivas sociojurídicas do poder de polícia sanitário e emergência de saúde pública: vulnerabilidades e o enfoque dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa, v. 58, n. 230, p. 195–218, abr./jun. 2021.
[9] CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Atenção Básica à Saúde no Brasil: O Ministério Público e a sua Atuação. Brasília: CNMP, 2017. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/acao_nacional/ANF/20170629_ANF_CDDF-Atencao_Basica_Saude.pdf. Acesso em: 15 abr. 2025.
[10] SANTOS, Lenir. Sistema Único de Saúde: os desafios da gestão interfederativa. São Paulo: Hucitec, 2013.
[11] AITH, Fernando Mussa Abujamra. Teoria geral do direito sanitário brasileiro. 2006. Tese (Doutorado) — Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo.
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