Arbitragem, regulação e saneamento básico: o caso do Rio de Janeiro
25 de fevereiro de 2025, 12h16
Em desfavor do Estado do Rio de Janeiro e da Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (Agenersa), foi concedida em 6 de fevereiro de 2025 uma liminar de tutela de urgência provisória e precária à concessionária de água e esgotamento sanitário Iguá, em âmbito de arbitragem de emergência, em trâmite na Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial (Camarb). [1]

Esta liminar autoriza o imediato depósito em garantia do valor de R$ 828,4 milhões, correspondente ao pagamento da última parcela de outorga fixa devida pela concessionária ao Estado do Rio de Janeiro, prevista em contrato de concessão firmado em 2021, [2] diante de um conflito relativo a pleitos de reequilíbrio econômico-financeiros que não teriam sido deferidos administrativamente pela Agenersa. Como o contrato de concessão prevê cláusula arbitral, Iguá recorreu ao árbitro de emergência para endereçar suas pretensões.
Discordando do deferimento da liminar, Estado do Rio e Agenersa ingressaram no TJ-RJ com suspensão de liminar, com base na Lei Federal nº 8.437/92, pleito que ainda aguarda análise e decisão por parte da Presidência do tribunal fluminense.
O Caso Iguá pode ser enfrentado sob diversos enfoques, porém entendo ser pertinente nesta oportunidade colocar em relevo a imbricada e complexa inter-relação entre arbitragem, regulação e infraestruturas públicas, in casu, infraestrutura sanitária. O tema é sensível, e até este caso não parecia estar no radar da doutrina especializada, embora já tenhamos publicado artigo específico sobre o tema. [3]
Novo Marco do Saneamento Básico
Com o advento do novo marco regulatório do saneamento básico — Lei federal 14.026/20 — ocorreu aumento significativo de novas concessões e PPPs nessa área de infraestrutura, acompanhado de crescimento do uso da arbitragem envolvendo muitos desses contratos públicos de saneamento básico, os quais por sua vez são fortemente regulados por agências reguladoras infranacionais, com a peculiaridade delas não serem partes dos contratos em si, sendo consideradas meramente signatárias/intervenientes contratuais, e por extensão, acabarem nem mesmo integrando o processo arbitral na sua origem.
E aqui reside uma problemática delicada: quando as arbitragens são iniciadas, o processo arbitral em regra não transcorre com a participação das agências infranacionais como parte, podendo acarretar uma série de prejuízos à atuação das agências em si e à regulação setorial como um todo, comprometendo demasiadamente o que denominamos, em artigo científico recente, “estabilidade das decisões regulatórias”. [4]

No que tange aos contratos de concessão — seja plena, seja administrativa (PPPs) — que possuam cláusulas com previsão de soluções de controvérsias por meio de arbitragem, parece razoável questionar-se, sim, acerca dos limites de atuação dos tribunais arbitrais no julgamento dos conflitos decorrentes desses contratos de saneamento básico, que a princípio não poderiam adentrar no “espaço das decisões eminentemente regulatórias”, por se tratar em tese de direito indisponível vedado pela Lei Brasileira de Arbitragem, e que portanto não poderá ser objeto de litígio a ser levado à arbitragem (Lei federal nº 9.307/96). [5]
Características para solucionar litígios
Assim, para que a arbitragem possa legitimamente solucionar litígios nessa seara, importa ter no radar ao menos dois aspectos fundamentais: arbitrabilidade objetiva e a deferência às prerrogativas regulatórias das agências reguladoras infranacionais.
No caso da disputa arbitral envolvendo Estado do Rio de Janeiro/Agenersa e a Iguá, é fundamental analisar se a liminar arbitral concedida efetivamente atendeu, ou não, a estes dois requisitos. A rigor, parece-me que é isto que necessariamente deverá balizar a decisão do TJ-RJ, no processo de suspensão da liminar arbitral ora em trâmite, o qual me parece, sim, ser em tese legítimo de ser manejado pelos entes públicos, até como um mecanismo antiarbitragem de caráter especial e excepcionalíssimo, previsto no ordenamento unicamente para os entes públicos. [6]
No que diz respeito à arbitrabilidade objetiva, é fundamental observar que apenas disputas relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis podem ser resolvidas por meio de arbitragem. Contudo, nos setores das infraestruturas públicas, incluindo saneamento básico, esse tema é alvo de debates, dada a incerteza sobre quais assuntos podem com efeito ser tratados em instâncias arbitrais, especialmente diante do contexto regulatório complexo que caracteriza este setor, com fortíssima atuação de agências reguladoras infranacionais.
Competência no litígio
Embora não haja uma relação exaustiva de questões passíveis de arbitragem no âmbito do saneamento básico, entende-se que apenas controvérsias que não interfiram diretamente nas competências exclusivas das agências reguladoras podem ser submetidas a esse mecanismo.
Litígios envolvendo a fiscalização de normas técnicas, a adequação dos serviços às regulamentações ou o exercício do poder normativo das agências — como a emissão de resoluções — não podem, a princípio, ser levados à arbitragem. Da mesma forma, a definição de aspectos essenciais, como a delimitação de áreas de atuação, metas de cobertura, exercício de poder de polícia e questões tributárias, é competência exclusiva das agências.
Por outro lado, eventuais impactos econômico-financeiros decorrentes de decisões regulatórias poderiam, sim, de maneira geral, ser objeto de arbitragem. Isso significa que, embora o conteúdo das decisões regulatórias esteja fora do alcance das instâncias arbitrais, eventuais desequilíbrios financeiros causados por essas decisões nos contratos de concessão poderiam ser discutidos nesse âmbito.
Já no que se refere à deferência às decisões de competência exclusiva das agências reguladoras, é essencial reconhecer que elas são instituições técnicas e suas decisões são baseadas em análises detalhadas e especializadas. A revisão dessas decisões deve ocorrer apenas em situações excepcionalíssimas, para preservar a lógica do sistema regulatório e garantir o papel estratégico das agências (reserva de administração).
Segurança jurídica
A possibilidade de alterações frequentes ou o desrespeito às normas e atos regulatórios comprometeriam a segurança jurídica, gerando instabilidade ao permitir mudanças constantes nas decisões que regem os setores regulados, e se tomadas no campo da arbitragem, podem consistir em indevido “ativismo arbitral”. [7]
Por isso, mesmo nos casos em que em tese a arbitragem é uma possibilidade, é crucial que as decisões arbitrais respeitem as competências e prerrogativas das agências reguladoras. Ignorar essa deferência regulatória significa colocar em risco a função essencial dessas instituições, dificultar o enforcement da regulação setorial e agravar sobremaneira a própria insegurança do setor de infraestrutura sanitária. O equilíbrio de interesses e forças aqui não parece fácil, mas precisa ser uma meta de todos os atores públicos e privados, Judiciário e árbitros, atuantes neste setor infraestrutural tão sensível e essencial.
Nessa linha, a lógica referente à possibilidade de reversão de temas já decididos pelas agências infranacionais, incluindo as revisões ordinárias e extraordinárias, tenderia a seguir os mesmos aspectos de (in)disponibilidade e (in)arbitrabilidade destacados anteriormente, assim como as considerações relativas à deferência à atividade regulatória.
Por todo o exposto, há uma grande expectativa das agências reguladoras infranacionais, do setor privado de saneamento básico e da comunidade arbitral como um todo, acerca da decisão a ser tomada pela Presidência do TJ-RJ no âmbito da suspensão de liminar proposta pelo Estado do Rio de Janeiro/Agenersa frente à concessionária Iguá.
[1] https://camarb.com.br/arbitragem/arbitragens-com-a-administracao-publica/
[2] http://www.rj.gov.br/agenersa/contratos-e-anexos
[3] Oliveira, G. J. de ., Oliveira, C. R. de, & Hage, T. (2025). Arbitragem, saneamento básico e defesa da regulação: uma análise do caso das agências infranacionais. Revista Digital De Direito Administrativo, 12(1), 01-23. https://doi.org/10.11606/issn.2319-0558.v12i1p01-23
[4] Oliveira, G. J. de ., Oliveira, C. R. de, & Hage, T. (2025). Arbitragem, saneamento básico e defesa da regulação: uma análise do caso das agências infranacionais. Revista Digital De Direito Administrativo, 12(1), 01-23. https://doi.org/10.11606/issn.2319-0558.v12i1p01-23. p. 6 e ss.
[5] Este debate é crítico e dinâmico, e que já vem sendo feito pelo autor ao menos desde OLIVEIRA, Gustavo Justino de; ESTEFAM, Felipe. Curso didático de arbitragem e Administração Pública. São Paulo: RT, 2019.
[6] Para mim, não procedem as críticas de que somente decisões judiciais é que poderiam ser objeto de pedidos de Suspensão de Execução de Liminar com base na Lei federal n. 8.437/92. Esta é uma ferramenta processual excepcionalíssima, concedida intrassistema judicial pelo ordenamento jurídico exclusivamente aos entes públicos estatais. Ainda que com muita parcimônia, em tese podem sim ser manejáveis no campo da arbitragem, sendo até equiparáveis a medidas antiarbitragem, em contextos de abusivos de uso do instituto. São especificidades do regime da Administração Pública, nesse caso de ordem processual, que abrangem sim a arbitragem, ainda que de modo excpecionalíssimo.
[7] A expressão é empregada por Marcus Vinícius Barbosa, https://oglobo.globo.com/blogs/fumus-boni-iuris/post/2025/02/artigo-ativismo-arbitral-concessao-de-servicos-publicos-e-regulacao-o-ovo-da-serpente.ghtml?utm_source=aplicativoOGlobo&utm_medium=aplicativo&utm_campaign=compartilhar
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