Opinião

Universalização dos serviços de saneamento nos Jardins e em Ipanema

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25 de janeiro de 2025, 17h17

O novo Marco Legal do Saneamento Básico, introduzido pela Lei nº 14.026/2020, possui alguns corriqueiros equívocos, e consistentes, sobretudo, em uma associação acrítica entre a concessão privada dos serviços e o atendimento de metas de universalização, com muitas vezes os editais de licitação relegando justamente as áreas irregulares para segundo plano.

Sendo o atendimento das metas o eixo central teleológico do novo marco regulatório, a exclusão das áreas irregulares do objeto dos contratos de concessão pode, no limite, comprometer inclusive a sua legalidade.

A Lei nº 14.026/2020 traz algumas relevantes inovações: cria a obrigatoriedade de os contratos preverem metas de universalização dos serviços; adota como princípio a regionalização dos serviços de saneamento; promove mudanças substanciais na sua regulação, entre outras.

Um sério problema hermenêutico, e esse é inclusive o tema que foi tratado pelo Supremo Tribunal Federal, a nosso ver, equivocadamente, é pressupor que o cumprimento da meta de universalização necessariamente corresponde à prestação privada dos serviços de saneamento.

Universalização na década de 1970

Na década de 1970, diante da urbanização no Brasil, houve uma grande universalização, pelo menos da água, promovida, sobretudo, por empresas estatais, enquanto, por outro lado, nós temos exemplos de prestação privada de serviço desde a década de 1990, que ainda se encontram muito longe de universalização.

Sem buscar responsabilizar necessariamente esta ou aquela concessionária (o problema pode advir de uma série de fatores, a elas relacionados ou não), o fato é que, por exemplo, em uma série de municípios fluminenses, apesar de a gestão privada já se dar há décadas, a universalização do esgotamento sanitário nada mais é que uma quimera. Muitas vezes se anuncia o cumprimento de metas de universalização, mas estas são artificiais, já que não incluem entre as obrigações das concessionárias justamente as áreas irregulares, favelas… [1](!)

Spacca

Não se está a dizer que a prestação privada é incapaz de garantir a universalização do serviço de saneamento básico. O que se busca afirmar é que ela não é uma panaceia, de que ela por si própria vai efetivamente cumprir, materializar aquelas metas abstratas prescritas na lei. Assim como a prestação por uma empresa estatal não vai necessariamente comprometer a universalização do serviço, até porque, pela experiência recente, há um grande pessimismo de nossa parte em relação ao cumprimento dessas metas, diante dos editais de licitação que tem ocorrido, que retiram ou mitigam as obrigações firmes das concessionárias quando diante de áreas irregulares.

Não há, por exemplo, um tratamento específico para eventuais termos aditivos que prorroguem as metas de universalização, e sobretudo o tratamento das chamadas áreas irregulares. Todos esses delicados assuntos estão sendo tratados de maneira muito programático-abstrata, jogando para um futuro incerto — em grande parte fora da responsabilidade da concessionária. Já aí é possível verificar uma contradição inclusive das afirmações que constaram na recente decisão do STF sobre a constitucionalidade de aspectos no novo marco do saneamento (ADIs 6.492, 6.356, 6.583 e 6.882), no sentido de que de que a prestação privada seria o instrumento necessário e suficiente tout court (mais do que necessário, suficiente para a universalização) [2], se esquecendo, por exemplo, de que, na maioria os editais de licitação, as áreas irregulares (justamente as que mais devem ser universalizadas) [3] foram excluídas do regime geral de universalização do contrato [4].

Áreas irregulares: as que mais precisam de universalização

Pressupostos hermenêuticos como esse parecem não ter uma fronteira nítida com os pressupostos ideológicos pessoais do intérprete. O intérprete da ordem econômica constitucional deve, mais que qualquer outro, ter como foco o caráter aberto dos respectivos dispositivos. Com efeito, estes, observados determinados limites, não adotam uma posição absolutizadora nem em prol da intervenção estatal na economia, nem em prol de uma visão liberal dogmática de que a atividade privada será sempre boa para a sociedade [5][6].

Se as áreas irregulares, as áreas de favela, periferia, de cortiços, estão excluídas da universalização, então quase certamente não vai haver universalização, porque essas são as áreas que mais precisam ser universalizadas.

Em qualquer interpretação de um sistema legislativo é preciso haver um vetor hermenêutico. Buscamos no presente trabalho, de certa maneira, desmistificar dois importantes vetores hermenêuticos, buscando afirmar a ideia de que não é o modelo estatal ou privado de prestação que, per se, vai levar à universalização do saneamento.

O que efetivamente levará o setor de saneamento básico à universalização será uma boa regulação, bons contratos, seja de programa sejam de concessão. Contratos que prevejam, por exemplo, a inclusão das áreas irregulares dentro das obrigações do contratado, seja ele empresa estatal ou empresa privada.

Mister se faz que os editais de licitação e seus contratos anexos sejam minutados mais com o intuito de universalização e qualidade do serviço, do que de arrecadar outorgas as maiores possíveis para o Estado, mediante contratos possivelmente excessivamente amigáveis para a iniciativa privada, quando, por exemplo, não se lhes impõe a obrigação de prestar os serviços justamente nas áreas irregulares.

 


[1] https://oglobo.globo.com/rio/bairros/comissao-da-alerj-contesta-dados-sobre-saneamento-em-niteroi-23761002

[2] Note-se que a mesma toada foi incessantemente repetida, sem maiores dialéticas, pelos principais meios de comunicação do nosso País (ex.: https://oglobo.globo.com/rio/concessao-da-cedae-preve-investimentos-bilionarios-em-ecossistemas-esquecidos-ha-decadas-no-rio-entenda-1-24998708), sem, até onde nossa pesquisa alcançou, em nenhum momento ter feito uma análise estatística profunda sobre as concessões privadas de saneamento que já há entre nós desde a década de 90. Deveria ter sido feita a seguinte pergunta: Se as falhas na universalização decorrem da falta de investimentos, e se somente a iniciativa privada é capaz provê-los, as concessões da década de 90, resolveram o problema?

[3] Verbi gratia: “Diagnóstico que vem sendo considerado pela administração municipal — de que a cidade está próxima de chegar 100% de coleta e tratamento de esgoto, com a construção da Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) do Badu, cujas obras começam no segundo semestre — , vem sendo contestado pela Comissão de Saneamento Ambiental (Cosan) da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), que formou um grupo para acompanhar o desenvolvimento do PSA. Daniel Marques, coordenador da comissão e ex-secretário municipal de Meio Ambiente , diz que a estimativa usada pela prefeitura não considera parte de Maria Paula, Rio do Ouro e Várzea das Moças e as favelas de Niterói” (https://oglobo.globo.com/rio/bairros/comissao-da-alerj-contesta-dados-sobre-saneamento-em-niteroi-23761002).

[4] Vê-se, nesse sentido, as ressalvas que foram feitas no âmbito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro – PGE/RJ a editais de licitação de concessões de serviços de saneamento. Cite-se, por todos, o Parecer Conjunto nº 01/2020 – ASA/ARCY/FAG/GUB, de lavra dos. Procuradores do Estado Alexandre Santos de Aragão, André Rodrigues Cyrino, Flávio Amaral Garcia e Gustavo Binenbojm, visado pelos membros da Comissão especial de supervisão de tal desestatização, os também Procuradores do Estado Rafael Rolim de Minto, Augusto Henrique Pereira de Souza Werneck, Thiago Cardoso Araújo, Nathalie Carvalho Giordano Macedo e pelo Procurador-Geral Bruno Dubeaux. Este e outros documentos no mesmo sentido podem ser acessados livremente no Volume Especial da Revista de Direito da PGE/RJ sobre a desestatização dos serviços de saneamento: https://pge.rj.gov.br/sites/default/files/publicacao-2024-11/edicao-completa-red2compressed.pdf

[5] Sobre os problemas que a contaminação de uma visão liberal extremada pode trazer para a interpretação da ordem econômica, ver por todos MENDONÇA, José Vicente. Direito constitucional econômico: a intervenção do estado na economia à luz da razão pública e do pragmatismo. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2018.

[6] Sobre o equívoco em se pressupor necessariamente a iniciativa privada como eficiente e a atividade empresarial pública como ineficiente, fazemos referência ao livro do vencedor do Nobel de Economia:  STIGLITZ, Joseph E. The Economic Role Of The State. Blackwell, 1989. A obra contém inclusive estudos microeconômicos de exemplos concretos das diversas situações que podem se apresentar.

Autores

  • é procurador do Estado do Rio de Janeiro, árbitro, advogado, professor titular de Direito Administrativo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), professor do Mestrado em Regulação e Concorrência da Universidade Candido Mendes, doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Público pela Uerj.

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