Opinião

Limites constitucionais à aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica

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4 de maio de 2025, 17h25

Felipe Lampe/Cesa

Nesses longos anos em minha clínica comercialista [1] aprendi que a dinâmica da realidade não só apresenta desafios surpreendentes ao jurista, mas mostra também como “boas intenções do legislador ou da jurisprudência” podem tornar-se pesadelos sem solução. Seguem histórias reais.

a) Primeira história

No início deste século, veio em meu escritório um cliente com o caso seguinte. Contou que no final de década de 1980 formara-se em Engenharia, com brilho. Um  professor convidou-o a integrar o escritório de engenharia dele; orgulhoso, aceitou. Alguns anos após, pelo seu bom desempenho, recebeu como prêmio participação societária de 1% do capital da sociedade do professor; tornou-se sócio minoritário. Entretanto, anos depois, desencantado com mais um dos sucessivos planos econômicos da época,  criados, sem sucesso, para combater a inflação (v.g. Cruzado, Plano Verão, Bresser etc.), resolveu abandonar a Engenharia. Mudou-se para os Estados Unidos, encantou-se com Artes, cursou essa faculdade, nela tornou-se professor da matéria.

Ocorre que em meados da década de 2010, ele recebeu um imóvel de herança, ao tentar vendê-lo, descobriu ser executado na Justiça Federal. O crédito executado era de auto de infração por tributos federais lavrado contra a antiga  sociedade tida com seu professor: a dívida, alta, era impagável. Nunca soubera de nada,  origem ou razão da dívida. Estava nos Estados Unidos quando o auto fora lavrado. Para piorar, o velho professor morrera e a sociedade fora desativada, embora o professor tivesse feito defesa administrativa inicial, com a morte o assunto fora abandonado. Após longos anos, o cliente fora incluído no polo passivo em pedido de desconsideração da pessoa jurídica.

Ele era agora codevedor da dívida total, mesmo tendo apenas 1% do capital social e saído há décadas do escritório, sua saída não fora formalizada no contrato social; desconhecia herdeiros ou qualquer informação de bens do professor. A venda do imóvel recebido de herança, obviamente, não se efetuou. Só 15 anos após essa consulta, em grau recursal, conseguimos retirá-lo do caso. Mas foram anos, com um bem bloqueado e dívida fiscal milionária contra si.

b) Segunda história

Pai e mãe, com anuência dos demais filhos, venderam para a filha, por preço quase simbólico, um apartamento numa cidade de praia. A moça tinha na época 20 anos. Naturalmente, após a venda, a família continuou a frequentar o local, mas, já crescidos os filhos, raro irem juntos. Pais eram quem mais usava o imóvel, por diversas vezes, o pai, como antes, ia nas reuniões de condomínio, falava com administradores, vizinhos etc. Seis anos após a venda, a empresa do pai (sociedade limitada) enfrentou um  dos infortúnios muito frequentes na atividade empresarial, em crise, passou a dever tributos.  Os débitos fiscais foram inscritos na dívida ativa e ajuizadas execuções. Diante da situação difícil da empresa, não se encontraram bens suficientes para o solver o débito milionário. Anos após a primeira execução fiscal ajuizada, a credora interpôs um incidente de desconsideração de pessoa jurídica, com pedido de liminar de bloqueio de bens, não só  contra o pai e sócio, mas também contra a filha, que nunca fez parte da empresa. A credora argumentou que a venda do imóvel fora fraudulenta e na verdade o bem era do pai, por causa disso colocou a filha no polo passivo de uma execução multimilionária. O juiz concedeu a liminar, mantida pelo tribunal.

c) Terceira história

A terceira história foi uma consulta sobre um caso sob cuidados de um colega. Devidamente autorizado, recebi em meu escritório dois empresários que disseram ser titulares  de sociedade de fabricação de produtos químicos com um terceiro sócio, cada um tinha um terço do capital social. Com certa sobra de lucros distribuídos,  aqueles dois consulentes resolveram investir em uma construtora de um amigo;  o terceiro sócio não participou desse investimento.  Ambos adquiriram, cada um, fração minoritária do capital social da construtora, que era uma sociedade limitada, mas não participaram da administração. O negócio não se revelou frutífero como desejavam, um ano depois, retiraram-se da construtora. Passados alguns anos, tiveram contra eles a responsabilização por dívidas da construtora em pedido de desconsideração de personalidade jurídica. Ocorre que o pedido implicava não só eles, mas também a sociedade química de que participavam, sob alegação de construtora e química formavam “grupo empresarial”. Ou seja, o negócio que ambos fizeram afetou não só eles, mas prejudicou a química e o terceiro sócio, com bloqueio de bens. Analisei o caso, defesa bem feita, desejei-lhes sorte.

Spacca

A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica: artigo  50 do Código Civil

As histórias acima são uma minúscula  amostra da frequência espantosa de aplicação dilargada da Teoria da Desconsideração da Pessoa Jurídica (DPJ).

Essa teoria foi criada como uma medida de justiça ou “equidade” (“equitable nature”) no sistema da “Common Law”, lá teve grande desenvolvimento, depois foi trazida para países do chamado Direito Continental (ao qual o Brasil filia-se). Teve crescimento explosivo e polêmico.

O professor norte-americano Gervtuyz alerta (tradução do articulista): “Ela é provavelmente também a área do Direito Societário com que o advogado, que procura evitar a prática societária, mais teme enfrentar. Por conseguinte, é especialmente lamentável que, apesar de centenas de oportunidades para acertar, as decisões judiciais, nesta área, tenham-se  tornado uma das mais confusas”.

Não é à toa que há no Direito norte-americano estudo pregando abolição  por completo da DPJ (Stephen Bainbridge), ou pretendendo colocar ordem no que chama de “atoleiro” (Jonathan Macey e Joshua Mitts), afinal, escreveu outro tratadista norte-americano, “os juízes não são anjos também” (Jonathan A. Mercantel).

Num  paradoxo, tratadistas e decisões judiciais  afirmam ser a DPJ  “remédio excepcional”, de “emprego limitado”, não raro dizem-no relembrando a advertência do pioneiro jurista Rubens Requião que, preocupado com o eventual emprego excessivo, no seu artigo seminal “Abuso de Direito e a Fraude Através da Personalidade Jurídica (‘Disregard Doctrine’)” [2], finalizou-o com um tópico  intitulado “Aplicação Moderada da Doutrina”, ressaltando que a aplicação deveria ser com “extremos cuidados, e apenas em casos excepcionais”. Mesma preocupação teve o jurista alemão Rolf Serick, ao procurar sistematizar princípios para aplicação da DPJ, advertiu (t.m.): “Mas esses princípios devem também, sobretudo, servir para combater o perigo ameaçador de uma dissolução e desintegração da instituição da pessoa jurídica”.

A frequente ressalva da “excepcionalidade”, contrasta com a sua aplicação amiúde; essa situação contraditória faz lembrar as vetustas e indignadas notas (em obra do século 19 [3]) de António L. de S. H. Secco sobre os julgamentos da Inquisição, ao explicar que o condenado nesses julgamentos era excomungado, e, na sequência, enviado para aplicação da pena à justiça secular, à qual os inquisidores rogavam “com muita insistência e eficaccia, se aja com elle benigna e piedosamente, e não proceda a pena de morte nem  effusão de sangue”,  sabendo que outro destino não restaria ao condenado.

No Brasil, o legislador tentou intervir, primeiramente instaurando o “incidente de desconsideração da pessoa jurídica” (IDPJ) no Código de Processo Civil. Entretanto, o efeito parece ter sido contrário, tornou-se um multiplicador de demandas: sinalizado o caminho, abriu uma  impressionante “autoestrada”, passível de ser “percorrida” a qualquer tempo (afinal a Jurisprudência não lhe reconhece prazo extintivo). O IDPJ  tornou-se incidente de fácil uso para o seu requerente, mas cujos efeitos para os requeridos podem ser devastadores.

Ainda na busca de equilíbrio, houve mudanças no Código Civil procurando disciplinar melhor as hipóteses de DPJ com mais precisão às aplicações. Contudo, o efeito parece ter sido contrário, pois, como exemplo, houve caso de tribunais aplicarem-na a fundos de investimentos, que não têm personalidade jurídica – ora, diríamos: se não se pode expandir a “DPJ” para quem não tem “PJ”, que tal expandir ao menos a “responsabilidade”?

As hipóteses ampliaram, além da desconsideração “clássica” atingindo sócios, há a “inversa”, que é destes para aquela; a “indireta”, a outras sociedades de um grupo empresarial; a, já mencionada acima, “atributiva” (ou “regulatória”, ou “teoria menor” – a disputa terminológica é intensa, fique à vontade o leitor para escolher a de sua preferência). Existe ainda a modalidade “expansiva”, para alcançar eventuais “sócios ocultos”. A “expansiva” serve ainda para “as esferas patrimoniais não titularizadas por sócios”, como “administradores e sociedade controladas”. Essa lista não esgota as modalidades, pois elas multiplicam-se com velocidade leporídea. Aliás, alguns eminentes tratadistas defendem ser possível aplicar-se o IDPJ a “outros casos de  responsabilização” que não de DPJ; ora nesse caos apontado acima, isso não seria “irresponsabilidade teórica”?

O problema é grave para os agentes econômicos (inclusive fornecedores), afinal de que vale constituir uma pessoa jurídica se a prometida autonomia patrimonial pode se tornar írrita a qualquer momento, com graves consequências ao seu capital de giro, bens produtivos, estoque, crédito, ou, ainda, implicar em risco à própria continuidade da empresa. E para os que nela investiram recursos, como empréstimo ou integralização de capital, e de repente veem agravado o risco de retorno do valor investido? Não só isso, a integralização de capital passa a significar perigo maior do que a perda do montante investido, pode significar a assunção de um passivo que desafie parte expressiva do patrimônio pessoal do investidor, ou de todo ele. Tudo isso, na atual interpretação majoritária, pode ocorrer por ato e fato alheios e desconhecidos e os agentes podem não ter praticado qualquer abuso ou fraude mas sofrerem o IDPJ.

Como se vê, os esforços legislativos ordinários parecem ter sido insuficientes para sair do “atoleiro”.  O procedimento do IDPJ permite aos requeridos eventual prova da não incidência das hipóteses legais da aplicação da DPJ, mas discute-se se é possível impugnar o direito de fundo. As hipóteses de desconsideração do artigo 50 do Código Civil apoiam-se em conceitos imprecisos como “confusão patrimonial”, “desvio de finalidade”, ou “outros atos de descumprimento de autonomia patrimonial”. No tocante aos sócios, a locução do seu “caput”  aprofunda o problema: “sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”.

Essa imprecisão acarreta grande margem de discricionariedade. A jurisprudência tem sua parte na confusão, entende ela que a DPJ pode atingir todos os sócios independentemente da quantidade de  participação societária: maior, menor, ou até minúscula, eles responderão pela integralidade do débito. Não só isso, como visto,  a comunidade de sócios em uma empresa pode ser afetada por dívida de outra empresa do grupo mesmo que o quadro societário não seja o mesmo.

Tal situação aponta inconstitucionalidades

A primeira é no entendimento de inexistir extinção por decurso de tempo do direito à aplicação da DPJ. Jurisprudência e a doutrina majoritárias entendem ser direito potestativo do credor interpor a qualquer tempo o IDPJ, pois a lei não lhe assinalaria prazo específico. Essa posição conduz a absurdos temporais como os das primeiras histórias contadas acima. De repente, a pessoa vê-se constrangida a responder por um passivo, dez anos ou até  décadas após os fatos que deram origem ao problema. Ora, além dessa linha teórica não distinguir entre o direito subjacente e o exercício do IDPJ, ela torna-se inconstitucional pelo longo decurso do tempo, afrontando o princípio da razoável duração do processo, inscrito no inciso LXXVIII do artigo 5º da nossa Constituição. Esse princípio é norteador da aplicação das demais leis, e é assegurado a todos de maneira ampla como direito fundamental, não se restringindo apenas a litigantes em dado processo.

Outra inconstitucionalidade há, amiúde, no  prejuízo ao amplo direito de defesa.  Em muitos casos, a  parte passiva  que tem contra si o IDPJ (podemos o chamar de “desconsiderada”?), desconhecia absolutamente o assunto e portanto terá imensas, ou até intransponíveis, dificuldades para construir sua defesa. O tempo decorrido é obstáculo, pois, talvez, se o “desconsiderada” fosse participante no início do processo original poderia ter seguido linha diferente da existente nos autos, poderia ter pedido provas diversas, se então disponíveis etc. Ora, a possibilidade de defesa pode ficar absolutamente dificultada.  Nesse caso, há inconstitucionalidade por afronta ao direito de ampla defesa  previsto no inciso LV do artigo 5º da Constituição da República?

Sem pretensão de esgotar eventuais inconstitucionalidades, como última questão constitucional, apresenta-se a afronta ao inciso XIX do artigo 5º da nossa Carta Magna. Esse inciso garante que as associações somente sejam dissolvidas após trânsito em julgado de sentença judicial. Para tratadista eminente, essa é garantia  que se estende a todas modalidades  associativas, inclusive as lucrativas [4]. Ora, de outro lado, se ainda é prestigiada a doutrina de Aubry e Rau [5] de que o patrimônio é extensão da personalidade, ao desconsiderar a personalidade jurídica para atingir todos os sócios indistintamente, tenham eles participado ou não do “abuso” e seja qual for a sua quota no capital social, isso equivaleria à extinção da pessoa jurídica, pois, como na regular extinção, seus membros ficam totalmente expostos como se pessoa jurídica e patrimônio respectivo inexistisse. A decisão na DPJ que atinge todos sócios indistintamente equivale à dissolução da sociedade nesse ponto, feita sem observar o trânsito em julgado, requisito constitucional de garantia individual.

 


[1] Aqui fica a homenagem a Aliomar Baleiro e seu livro “Clínica Fiscal”

[2] “Aspectos Modernos do Direito Comercial”, São Paulo, Ed. Saraiva, 1977, pg. 67

[3] “Memorias do Tempo Passado e Presente para Lição dos Vindouros”,  Coimbra, Imprensa da Universidade, 1880,  pg. 130.

[4] Paulo Gustavo Gonet Branco, “ Comentários ao Art. 5.º  , XVI a XXI”, “in” “Comentários à Constituição do Brasil”,  org.  J. J. Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, Ingo Wolfgang Sarlet e Lenio Luiz Streck.  São Paulo, Ed. de SaraivaJur e outras, pg.  282, 3.º edição, 2023.

[5] “Cours de Droit Civil Français”,  Paris, Marchal et Billard, vol. IX, pg. 333. Interessantemente, na obra,  a teoria do patrimônio está desenvolvida entre os capítulos de direito de família e de sucessões exatamente como atributo da personalidade, e não na parte de direito reais.

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