Opinião

IDPJ em ação de reparação de dano concorrencial

Autor

  • Flávia Pereira Hill

    é professora associada de Direito Processual Civil da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e da Universidade Estácio de Sá. Vice-secretária geral do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual) diretora da Abep (Associação Brasileira Elas no Processo) membro da IAPL (International Association of Procedural Law) da AIDC (Associazione Italiana di Diritto Comparato) do IIDP (Instituto Iberoamericano de Direito Processual) do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros) e da Abec (Associação Brasileira de Editores Científicos). Membro do Agente Regulador do ONR do CNJ e da Comissão de Proteção de Dados Pessoais do Conselho Nacional de Justiça. Oficial registradora no estado do Rio de Janeiro.

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17 de setembro de 2024, 6h08

A Lei Federal nº 12.529/2011 estrutura o sistema brasileiro de defesa da concorrência e dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica.

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Compete ao Tribunal Administrativo do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) — autarquia federal vinculada ao Ministério da Justiça —, dentre outras atribuições, decidir sobre a existência de infração à ordem econômica e aplicar as penalidades previstas em lei, decidir os processos administrativos para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica e ordenar providências que conduzam à cessação de infração à ordem econômica, conforme artigo 9º da referida lei.

A apuração administrativa de condutas anticoncorrenciais pode se dar paralela e independentemente do ajuizamento de ações de reparação de danos concorrenciais (artigo 47, in fine, Lei 12.529/2011), ou seja, das ações judiciais deflagradas individualmente por pessoas naturais ou jurídicas que demonstrem ter sofrido prejuízos em razão de prática anticoncorrencial ou coletivamente por ente legitimado na forma do artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor.

No entanto, este trabalho lida especificamente com a hipótese em que o ajuizamento de ação de reparação de danos concorrenciais se deu posteriormente ao proferimento de decisão pelo Plenário do Tribunal do Cade que reconhece a ocorrência infração à ordem econômica, prevista no artigo 93 da lei federal.

Nesse caso, o artigo 47-A da lei especial dispõe que a referida decisão do Cade é apta a fundamentar a concessão de tutela da evidência, ou seja, modalidade de tutela provisória prevista no artigo 311 do CPC/2015 que admite a antecipação dos efeitos da tutela independentemente da demonstração de periculum in mora. Isso significa dizer que a decisão proferida pelo Cade é considerada prova documental suficiente a demonstrar a probabilidade do direito do autor da ação de reparação de dano concorrencial e autorizar a antecipação dos efeitos da tutela final.

Forte nessa premissa, agrega-se mais um elemento, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ). Trata-se de modalidade de intervenção de terceiro consubstanciada em ação incidental proposta por qualquer das partes originárias ou pelo Ministério Público com fiscal da ordem jurídica, no bojo de um processo em curso, voltada a apurar, mediante prévio contraditório, o abuso da personalidade jurídica supostamente cometido por sócio da pessoa jurídica-ré, a fim de, afastando a personalidade jurídica da ré, incluir o sócio no polo passivo da ação — ou, no caso de desconsideração inversa, incluir no polo passivo pessoa jurídica da qual o réu é sócio

A marca distintiva do IDPJ, que ensejou a sua previsão no artigo 135 do CPC/2015, é definir os contornos do devido processo legal para que se possa desconsiderar a personalidade jurídica, [1] tendo em seu âmago e razão de ser prestigiar o contraditório prévio e a ampla defesa, [2] a fim de prever expressamente que o sócio, que até então não integrava o processo, possa influir eficazmente na formação do convencimento do magistrado a esse respeito.

Isso porque, não raro, até a edição do CPC/2015, verificava-se a decretação da desconsideração sem a prévia oitiva da pessoa, natural ou jurídica, que viria a ser incluída no polo passivo. O próprio Superior Tribunal de Justiça adotava esse entendimento até às vésperas da edição do diploma processual de 2015:

Esta Corte firmou entendimento de que é prescindível a citação prévia dos sócios para a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária, sendo forçosa a demonstração do efetivo prejuízo advindo do contraditório diferido (AgRg no Resp 1459831/MS, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, julgado em 21/10/2014, DJe 28/10/2014).

Tecidas tais considerações, é de todo admissível que, em ação de reparação de dano concorrencial, seja suscitado incidente de desconsideração da personalidade jurídica com vistas a alcançar o patrimônio do sócio da empresa-ré, sob a argumentação de que ele teria cometido abuso da personalidade jurídica.

Incidente cognitivo

Pois bem. Por se tratar de um incidente cognitivo — rectius, ação incidental —, voltado a formar o convencimento do magistrado acerca do cometimento de abuso da personalidade jurídica da empresa pelo sócio, o foco deste ensaio consiste em refletir sobre a força probante da decisão do Cade, e dos documentos que instruíram o processo administrativo, no incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Isso porque, não raro, verificar-se-á que, em sua motivação, a decisão do Cade reconhece que a prática de conduta anticoncorrencial se deveu especificamente à conduta abusiva de um sócio da empresa.

A mens legis da Lei Federal nº 12.529/2011 consiste em conferir respeitabilidade à decisão administrativa proferida pelo Cade, tanto assim que a alça a título executivo extrajudicial para a execução de multa ou obrigação de fazer ou não fazer (artigo 93) e igualmente como documento hábil a admitir a concessão de tutela da evidência na ARDC (artigo 47-A). [3]

Por conseguinte, entendo que a decisão do Cade que porventura reconheça a prática, por sócio, de atos abusivos pode ser levada aos autos do incidente de desconsideração da personalidade jurídica como prova documental, a ser sopesada ao lado das demais provas produzidas pelas partes.

De igual modo, os documentos que instruíram o processo administrativo, em regra, poderão ser solicitados ao Cade, por serem documentos públicos, salvo as exceções previstas no artigo 2º da Resolução 21/2018 do Cade, como os documentos que constituam segredo industrial, por exemplo.

Carrear a decisão do Cade e os documentos que instruíram o processo administrativo aos autos do IDPJ, além de representar economia processual e ser consentânea com a premissa da atipicidade dos meios de prova (artigo 369, CPC/2015) e com a busca da verdade, não viola o contraditório, visto que, embora o sócio não tenha sido parte do processo administrativo, o será do IDPJ, tendo a oportunidade de refutá-las e apresentar contraprovas.

O magistrado lhes atribuirá o peso que entender devido à luz dos argumentos aduzidos pelas partes, inclusive pelo sócio, e do conjunto probatório produzido no IDPJ.

De se consignar que a Resolução nº 350/2020 do CNJ, em boa hora, preconizou que a cooperação judiciária nacional abarca não apenas a cooperação entre órgãos do Poder Judiciário, mas também a cooperação interinstitucional, ou seja, entre o Poder Judiciário e outras instituições e entidades que possam contribuir para a administração da justiça (artigo 1º).

No artigo 6º da Resolução, são elencados, exemplificativamente, entre os atos passíveis de cooperação, a obtenção e apresentação de provas ou a produção de prova única relativa a fato comum (incisos VI e VII).

Meio de prova

Aplicando esse arcabouço normativo à hipótese em análise, constata-se que os documentos que instruíram o processo administrativo do Cade e a própria decisão por ele proferida (artigo 93 da lei especial) podem servir como meio de prova em sede de IDPJ, a fim de tanto ajudar a comprovar o cometimento de conduta abusiva pelo sócio quanto, sendo o caso, em sua defesa, para demonstrar que não foi apurado, no processo administrativo, qualquer abuso da personalidade jurídica de sua parte.

Mostra-se admissível, inclusive, a intimação do Cade para se manifestar nos autos do processo judicial, se necessário, conforme decidido pela ministra Maria Isabel Gallotti nos autos do Agravo em Recurso Especial nº 1.211.001-DF, publicado em 28/05/2018. Isso porque o Cade, na hipótese em comento, se credencia como entidade apta a contribuir para a adequada solução do IDPJ.

Indo além, André Pagani de Souza [4] entende, com razão, que, por se tratar de incidente cognitivo (ação incidental), é admissível a concessão de tutela provisória em sede de IDPJ. Tratando-se de pedido de concessão de tutela provisória de urgência (artigo 300, CPC/2015), ao lado do periculum in mora, que se consubstanciará na demonstração do risco atual e iminente de que o sócio dilapide o seu patrimônio, poderá o autor, a fim de demonstrar fumus boni iuris, carrear aos autos do IDPJ a decisão proferida pelo Cade e os documentos que tenha instruído o processo administrativo.

Indo além, a interpretação sistemática da Lei 12.529/2011, especialmente em vista do disposto em seu artigo 47-A, conjuntamente com o artigo 311, inciso IV, do CPC/2015, admite a concessão de tutela provisória da evidência em IDPJ com fulcro em decisão proferida pelo Cade que tenha reconhecido expressamente o cometimento de conduta abusiva pelo sócio.

Ressalva-se, apenas, que a concessão da tutela da evidência, nesse caso, não poderá ocorrer inaudita altera parte, por ausência de previsão legal, o que ganha contornos superlativos se o sócio não tiver participado do processo administrativo.

Por fim, o mesmo raciocínio se aplica quando o autor pretende a desconsideração da personalidade jurídica com vistas a responsabilizar empresas do mesmo grupo econômico. O STJ entende pela “possibilidade de constrição patrimonial de empresa pertencente a um mesmo grupo econômico da executada, quando verificada confusão patrimonial ou desvio de finalidade empresarial, com a desconsideração de sua personalidade jurídica”. [5]

Conclui-se, assim, que o aproveitamento das provas produzidas em processo administrativo conduzido pelo Cade, bem como a própria colaboração desse órgão em sede de IDPJ suscitado nos autos de ação de reparação de danos concorrenciais poderá contribuir para que o incidente seja, ao mesmo tempo, célere e efetivo. Com isso, coordenam-se as esferas judicial e extrajudicial em torno da consecução de uma solução justa e efetiva para o IDPJ, sem abrir mão do prévio contraditório.

____________________________

[1] HILL, Flávia Pereira. BORGES, Fernanda Gomes e Souza. HILDEBRAND, Cecília Rodrigues Frutuoso. “Interesse recursal do sócio no incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica: a análise do julgamento do Resp 1.980.607/DF pelo STJ”. Desconsideração da personalidade jurídica. Aspectos materiais e processual. RODRIGUES, Marcelo Abelha. CASTRO, Roberta Dias Tarpinian de. SIQUEIRA, Thiago Ferreira. NAVARRO, Trícia (Coord). Indaiatuba: Foco. 2023. pp. 427-439.

[2] No mesmo sentido, afirmando que “em última análise, a questão sempre se resumiu à devida concretização dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa”. BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. Vol. 1. 14. Ed. São Paulo: Saraiva. 2024. P. 546.

[3] ARAÚJO, Taís Santos de. “Tutela da evidência e tutela processual concorrencial: um estudo sobre o direito evidente nas ações de reparação de dano concorrencial (ADRCs)”. Revista de Processo. Vol. 351.pp. 149-175. Maio 2024.

[4] SOUZA, André Pagani de. “Tutela de urgência e desconsideração da personalidade jurídica”. Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/cpc-na-pratica/384690/tutela-de-urgencia-e-desconsideracao-da-personalidade-juridica Consulta realizada em 08/09/2024.

[5] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgInt no AREsp n. 2.539.882/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe de 22/8/2024.

Autores

  • é professora associada de Direito Processual Civil da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e da Universidade Estácio de Sá. Vice-secretária geral do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual), diretora da Abep (Associação Brasileira Elas no Processo), membro da IAPL (International Association of Procedural Law), da AIDC (Associazione Italiana di Diritto Comparato), do IIDP (Instituto Iberoamericano de Direito Processual), do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros) e da Abec (Associação Brasileira de Editores Científicos). Membro do Agente Regulador do ONR do CNJ e da Comissão de Proteção de Dados Pessoais do Conselho Nacional de Justiça. Oficial registradora no estado do Rio de Janeiro.

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