Opinião

Nulidade boto cor de rosa e o dropsy testimony na cultura processual

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2 de maio de 2025, 11h23

Não há defensor criminal que não lembre diariamente do professor Aury Lopes Jr. e do seu ensinamento: no processo penal, forma é garantia [1].

As garantias, tão cuidadosamente previstas na Constituição, nas leis, nos tratados internacionais, representam a própria existência de um Estado democrático de Direito e os limites normativos (civilizatórios) que existem à persecução penal.

O raciocínio não é complexo. Existem regras do jogo e o jogo só é válido se as regras forem seguidas.

Será?

As decisões dos tribunais superiores, vira e mexe, lembram a todos que ainda há juízes em Brasília. Porém, nas lutas travadas fora da capital federal, nas trincheiras do baixo clero, a efetividade prática das garantias processuais penais parece um folclore, uma caricatura e, às vezes, uma pegadinha.

É difícil ver reconhecida uma nulidade em um processo penal no dia a dia, muito embora, não seja nada difícil ver um processo com nulidades no dia a dia. Essa diferença traz o ar folclórico que motiva esse texto.

De forma cotidiana, lá estão as nulidades de todo tipo de gradação. Há aqui, então, uma discrepância entre a realidade e a aplicação da lei. O reconhecimento da nulidade nunca vem.

Parece uma lenda. É a nulidade boto cor de rosa. Dizem que existe e que é bem impressionante, mas nunca foi vista a olho nu, pelo menos, não nas linhas de frente do processo periférico. Assim, a lenda surge quase como uma utopia.

Ora, então, para ver o boto, basta o acesso aos tribunais superiores. Simples.

Será?

Nada é simples. Para chegar aos tribunais capazes de reconhecer as várias nulidades existentes, é preciso, para todos, a vitória em relação à jurisprudência defensiva. Ainda, para aqueles que trabalham sobrecarregados na defesa dos vulneráveis, é preciso um esforço hercúleo, uma atenção quase artesanal para quem atua no SUS do Direito Criminal.

E mais: se para ver reconhecida uma nulidade é preciso uma ginástica processual de nível olímpico, enquanto que, para que o processo siga sem se atentar a essa mácula, basta a confortável inércia, o próprio procedimento vira um ciclo vicioso de retrabalho para a defesa criminal.

É feito, mas gera demora, gasto desnecessário de recursos públicos e, pior e principalmente, promove de um lado, injustiças, de outro, a perpetuação de um sistema que — acertadamente, para alguns — funciona no erro.

Violação de direitos para o arredondamento de ocorrências

Acertadamente, aliás, para aqueles que seguem com afinco as motivações assumidamente fascistas do Código de Processo Penal brasileiro, original de 1941, e integrante da fanbase [2]do Código idealizado por Alfredo Rocco, jurista de destaque no regime de Mussolini [3].

A falta de efetividade das nulidades no primeiro e no segundo graus de jurisdição reflete bem o ranço inquisitorial que nunca deixou de persistir no sistema processual penal brasileiro. Para ilustrar melhor o lado burlesco do tema, tem-se um tópico que vem ganhando espaço na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a figura do dropsy testimony [4].

O termo tem inspiração no direito norte-americano e foi traduzido como “arredondamento de ocorrência” na prática policial brasileira. Outra expressão bastante didática e usada em conjunto com a dropsy testimony é, de maneira autoexplicativa, a testilying [5], que, em uma tradução livre, é o testemunhar mentindo.

Seria possível citar vários casos estadunidenses famosos ou, ainda, buscar uma definição conceitual para explicar a ideia. Possível, mas desnecessário, porque qualquer um que tenha um tempo mínimo de atuação criminal no baixo clero vai saber exatamente do que se trata. Com narrativas exemplificativas e hipotéticas, porém, baseadas em fatos reais, acredita-se que a contextualização da ideia cumprirá sua finalidade.

Exemplo 1: Um indivíduo está em casa, a rua é escura, os policiais percebem, com uma distância de 30 metros entre a equipe estatal e o indivíduo, que o sujeito jogou algo no chão ao notar a presença da viatura (a alta capacidade de visão noturna dos agentes do Estado deixa qualquer onça pintada com o mau sentimento da inveja). Com base nisso, a guarnição fez a abordagem e achou drogas dentro do imóvel.

Exemplo 2: Um indivíduo estava andando na rua, em um bairro periférico, e mostrou nervosismo ao ver a polícia. A polícia fez uma abordagem no local e não encontrou nada ou encontrou uma quantidade irrisória de entorpecente, mas o indivíduo abordado disse aos policiais que tinha mais droga em casa ou que tinha objetos frutos de receptação na residência e, gentilmente, tal qual Dona Florinda convida o Professor Girafales para tomar um café, o indivíduo abordado indicou onde era a sua casa e convidou os policiais para entrarem. Gentileza gera gentileza.

Exemplo 3: A polícia recebeu denúncias anônimas sobre um determinado endereço, chegando ao local, sem ordem judicial, a própria esposa do acusado, muito hospitaleira, franqueou a entrada aos policiais e mostrou que, dentro do guarda-roupa, atrás dos lençóis, se escondia (insira aqui algo relacionado a um tipo penal). Não a registro escrito ou audiovisual dessa hospitalidade, mas a condenação não é “só” com base nisso, então, não se vislumbrou qualquer prejuízo ao acusado.

Os exemplos tendem ao infinito e são tão caricatos quanto inverossímeis. E se forem reais? E se for uma dessas histórias surpreendentes e improváveis que existem mesmo? Para isso, existem as regras do processo, o cuidado ao investigar, a prova preservada, as autorizações necessárias, as etapas a serem obrigatoriamente cumpridas.

Por conta desse vínculo com um processo autoritário, torna-se preciso dizer todas as obviedades: o ponto aqui discutido é o descumprimento das regras do jogo.

Pois bem, na caracterização da dropsy testimony é o desafio à lógica e o fato de tantos atores do processo parecerem acreditar nessas versões fantásticas que fazem surgir reflexões sobre como as garantias processuais, fora dos casos que conseguem chegar em Brasília, continuam seguindo o raciocínio fascista de pseudodireitos individuais que podem/devem ser sacrificados em nome do bem comum [6].

A nefasta figura da violação de direitos para fins de arredondamento de ocorrências passou a ser tema de julgamentos no STJ, como se nota, a título de exemplificação, no julgamento do Habeas Corpus nº 768.440, com relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz [7].

No julgado em questão, tinha-se uma acusação relacionada a tráfico de drogas, com violação da garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio, dentre outras, e com depoimentos policiais inverossímeis. Não havia registro em vídeo da ação policial.

Vale ainda dizer que, embora o Supremo Tribunal Federal já tenha estabelecido parâmetros específicos e atuais sobre a entrada em domicílio (RE 603.616/RO), embora, antes disso, a Constituição Federal já tenha previsto a inviolabilidade domiciliar (artigo 5º, inciso XI, da CF/88) e o Código de Processo Penal tenha trazido a consequência de uma prova obtida por meio ilícito (artigo 157, do CPP), e, veja só, muito embora, o próprio STJ já tenha entendido que os depoimentos policiais não são, claro, imunes a questionamentos (HC 877.943/MS), ainda sim, foi necessária a atuação de um tribunal superior para dizer que provas ilegais não podem ser usadas.

É preciso, então, dizer mais uma obviedade: o que separa o não reconhecimento da nulidade pelo juiz e pelo Tribunal de Justiça do reconhecimento da nulidade pelo tribunal superior não é o conhecimento das normas e diretrizes apontadas no parágrafo anterior. A lei e a jurisprudência, em tese, todos conhecem muitíssimo bem.

Seria então uma percepção subjetiva do caso concreto?

Esse argumento que apela para um prisma interpretativo diferente poderia gerar mais reflexões em outros casos, no entanto, nos exemplos narrados acima e na vida prática, a contradição, a inverossimilhança, a caricatura fática parecem não abrir espaços para essa dúvida.

As narrativas inquisitórias como as acima narradas são tão avessas à lógica, que a justificativa não pode ser a subjetividade da interpretação, até porque, existem regras do jogo também para isso. Parafraseando Pitty, embora alguns atores processuais façam parecer que a verdade cabe na palma da mão, isso não é uma questão de opinião [8].

E, claro, se houvesse dúvida mesmo, deveria prevalecer o in dubio pro reo. Longe disso, quem atua nos processos periféricos parece preferir acreditar na figura do réu Dona Florinda, que vê a polícia, revela o respectivo endereço espontaneamente, convida a guarnição a entrar e ainda revela onde estão escondidos possíveis ilícitos. Em breve, veremos relatos (se é que já não existem) de que o próprio acusado, já algemado, ainda ofereceu uma xícara de café.

Processo penal da prática

Ora, é o tom jocoso, satírico, que demonstra como é difícil ver reconhecida uma nulidade, ainda que evidente, no caso concreto, ao menos, na base da cadeia alimentar do processo penal. Se não falta conhecimento, se o caso desafia a lógica da pessoa média, o que poderia faltar para o reconhecimento de uma ilegalidade tão escancarada? Qual a resistência que um operador do Direito [9] pode ter em aplicar a lei?

Tentando fazer um exercício de adivinhação, é possível imaginar que uma resposta contrariada aparecesse na direção de que: mas em Brasília é diferente, é tudo muito lindo, na prática, é diferente. Teoria e prática não se separam. Se na prática é diferente, parece crível deduzir que, na prática, outra teoria está sendo usada.

A ideia de que garantias não são limites básicos, mas favores, de que há sentido prático e ontológico em violar direitos de um indivíduo em nome do bem comum, a falta de apreço pela forma e a falta de limites ao poder de punir [10] mostram bem a essência inquisitorial aplicada ao processo penal brasileiro (o processo penal da prática). Essa estrutura peçonhenta denuncia os moldes autoritários da política estatal como um todo, afinal, é o processo penal um parâmetro importante para compreender o funcionamento (o real, o da prática) de um Estado [11].

Assim, a nulidade boto cor de rosa, com esse ar de lenda que habita as trincheiras do processo penal, existe porque a teoria adotada é a mais autoritária possível. Se os limites são ajustados, como o desenvolvimento da audiência de custódia, por exemplo, logo são driblados por práticas que buscam menosprezar direitos (mesmo que o direito em questão seja o de não ser torturado pelo Estado).

Então se faz a audiência de custódia, como trazido no exemplo do parágrafo anterior, para cumprir com um parâmetro civilizatório básico. Existe a lei, mas o laudo de lesão vem sempre preenchido com “não, não, não”, mesmo que na realidade o custodiado esteja machucado. Ora, mas ele caiu na fuga, se machucou sozinho. Laudo complementar não foi conclusivo… mas também, foi feito com que brevidade? Que se traga a violência na instrução então. Não adianta, não houve prejuízo (como não houve?) e existem outros elementos capazes de comprovar seguramente autoria e materialidade (e a regra do jogo?). Sejam oficiadas as respectivas corregedorias para averiguação.

Acreditar no réu Dona Florinda, mas duvidar da inviolabilidade constitucional do domicílio é, portanto, uma escolha que em nada se relaciona à falta de conhecimento jurídico ou a falta de percepção lógica dos fatos. O Estado produz violência e chancela violência por escolha, por uma opção política — não muito surpreendente, é verdade — esclarecida desde a exposição de motivos de 1941.

E parece importante esclarecer que o Estado não é uma divindade maléfica, a chancela acima citada advém do trabalho de pessoas preparadas e compromissadas com as normas, que, violando-as, optam — como Eichmann — por apenas seguir o fluxo do trabalho, sem maiores reflexões.

Sem a possibilidade de apresentar uma resposta a um problema que não começa e não termina nas salas de audiência, a conclusão possível, nesse momento, parece ser a necessidade de, ao menos, construir a percepção crítica sobre a realidade. Quando não adiantar citar a Constituição, o código, a jurisprudência e a lógica, talvez, quem sabe, invocar o folclore brasileiro, o boto cor de rosa ou, até, o apego infantil a Chaves e a, nem sempre tão doce, Dona Florinda, ajude a satirizar — com fundamento — o autoritarismo (da teoria e da prática).

 


Bibliografia

BRASIL. Código de Processo Penal, 03 de outubro de 1941.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6 TURMA). Habeas Corpus nº 768440. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. FLAGRANTE. DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. AUSÊNCIA DE FUNDADAS RAZÕES. CONTRADIÇÕES E FALTA DE VEROSSIMILHANÇA DOS DEPOIMENTOS POLICIAIS. DÚVIDAS RELEVANTES. IN DUBIO PRO REO. PROVAS ILÍCITAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. ABSOLVIÇÃO. ORDEM CONCEDIDA. relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em 20 de agosto de 2024. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?num_registro=202202786540. Data de acesso: 18 de março de 2025.

DIETRICH, William Galle. #98 – Alfredo Rocco, o legislador da “revolução fascista”, e suas considerações sobre o processo. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/98-alfredo-rocco-o-legislador-da-revolucao-fascista-e-suas-consideracoes-sobre-o-processo. Data de acesso: 17 de março de 2025.

LEONE, Priscila Novaes. Teto de vidro. In: Admirável Chip Novo. Composição e interpretação: Priscila Novaes Leone, Pitty. Rio de Janeiro, 2003.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 22.ed. São Paulo: Saraiva, 2025

LOPES JR., Aury. Sistema de nulidades “a la carte” precisa ser superado no processo penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-set-05/limite-penal-sistema-nulidades-la-carte-superado-processo-penal/. Data de acesso: 17 de março de 2025.

SLOBOGIN, Christopher. Testilying: police perjury and what to do about it. Disponível em: https://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.journals/ucollr67&div=49&id=&page=. Data de acesso 18 de março de 2025.

[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-set-05/limite-penal-sistema-nulidades-la-carte-superado-processo-penal/. Data de acesso: 17 de março de 2025.

[2] BRASIL. Código de Processo Penal, 03 de outubro de 1941.

[3] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/98-alfredo-rocco-o-legislador-da-revolucao-fascista-e-suas-consideracoes-sobre-o-processo. Data de acesso: 17 de março de 2025.

[4] Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?num_registro=202202786540. Data de acesso: 18 de março de 2025.

[5] Disponível em: https://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.journals/ucollr67&div=49&id=&page=. Data de acesso 18 de março de 2025.

[6] Idem 1.

[7] Idem 4.

[8] PITTY. Teto de vidro.

[9] Com o perdão da expressão.

[10] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-set-05/limite-penal-sistema-nulidades-la-carte-superado-processo-penal/. Data de acesso: 17 de março de 2025.

[11] LOPES JR, Aury., 2025, p.2;

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