Opinião

A defesa criminal pro bono e o direito a uma defesa 'eficiente'

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2 de maio de 2025, 7h01

A expressão latina pro bono pode ser traduzida como “para o bem” ou “para o bem público”. Na advocacia, essa expressão está associada à defesa gratuita de pessoas que não têm condições financeiras de custear o trabalho de um profissional, sendo definida pelo Código de Ética da OAB como “a prestação gratuita, eventual e voluntária de serviços jurídicos em favor de instituições sociais sem fins econômicos e aos seus assistidos, sempre que os beneficiários não dispuserem de recursos para a contratação profissional” (artigo 30, § 1º).

O Brasil é um dos países mais litigiosos do mundo. Segundo o relatório Justiça em Números, publicado pelo CNJ em 2024, o Judiciário nacional, composto de 91 tribunais, conta com 18 mil juízes, 275 mil servidores e assombrosas 84 milhões de ações judiciais em trâmite. [1] No âmbito da Justiça criminal, o ano de 2023 conheceu 3,4 milhões de novos processos. [2]

Devido a esses assombrosos números, às vezes nem as defesas públicas — formadas por profissionais altamente qualificados — podem abarcar a demanda. Também é comum que em determinadas comarcas, sobretudo em municípios mais isolados, não haja defensores lotados no local. Às vezes até mesmo em capitais tal situação pode ocorrer.

Em situações assim, é a advocacia privada a responsável por auxiliar na tarefa da defesa das pessoas hipossuficientes, seja pela advocacia dativa, seja pela advocacia pro bono.

Advocacia criminal pro bono

O advogado privado é muitas vezes o responsável pelo patrocínio dos interesses das pessoas que não têm condições de arcar com os custos de uma defesa profissional. Na Constituição, lê-se o direito dos hipossuficientes à “assistência jurídica integral e gratuita” prestada pelo Estado (artigo 5º, inciso LXXIV).

Consta no artigo 14, 3, letra d) do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos (no Brasil, Decreto nº 592/1992) que toda a pessoa acusada possui direito a “[…] ter um defensor designado ex officio gratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo”. Também a Convenção Americana de Direitos Humanos garante, ao artigo 8.2, d e e o direito de o acusado ser assistido por defensor de sua escolha ou proporcionado pelo Estado, remunerado ou não. Nessa ótica, e também na linha dos §§ 2º e 3º do artigo 5º da nossa Constituição, a defesa gratuita às pessoas hipossuficientes é direito fundamental.

Para um advogado, a defesa pro bono possui vantagens, desde a experiência em diferentes tipos de ação penal até a rede de contatos profissionais que pode advir dessa defesa — a realização de audiência com diferentes magistrados e membros do Ministério Público, despachos com diferentes desembargadores, relacionamento com colegas que defendem corréus na mesma ação penal etc. Por outro lado, o tempo de trabalho não remunerado pode significar a perda de chances profissionais, como a firmatura de novos contratos. Logo, o tempo que o advogado trabalha graciosamente implica em diminuição (ou não acréscimo) da sua renda privada, afetando não a sua vida e a de sua família.

Spacca

No entanto, como indica a expressão latina, a defesa pro bono possui uma raiz que é social antes de qualquer outra coisa. A Constituição consagra em seu artigo 133 que o advogado é indispensável à administração da Justiça. Se isso é assim, o advogado que aceita patrocinar uma causa sem perceber remuneração pelo seu trabalho, não faz outra coisa senão contribuir para o desenvolvimento social.

E isso se dá por uma pluralidade de fatores. Primeiro, por oferecer um trabalho qualificado a uma pessoa que é presumidamente inocente, nos termos do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição. Depois, por contribuir, dentre outros, aos objetivos fundamentais da República, elencados ao artigo 3º da nossa Carta, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I), e, sobretudo, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV).

O papel social do advogado é ainda reforçado pela Lei nº 8.906/94, o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O artigo 2º, caput, repete a dicção de que “o advogado é indispensável à administração da justiça”, e os seus §§ acrescentam que “o advogado presta serviço público e exerce função social” (§ 1º), contribuindo para a “postulação de decisão favorável ao seu constituinte, e os seus atos constituem múnus público” (§ 2º).

Já no Código de Ética e Disciplina da OAB (Resolução nº 02/2015, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil), lê-se no artigo 30 que o defensor “empregará o zelo e a dedicação habituais, de forma que a parte por ele assistida se sinta amparada e confie no seu patrocínio”.

No âmbito da sociedade civil, é de relevo citar o Innocence Project Brasil, que presta defesa técnica de qualidade gratuitamente. [3] O projeto integra a Innocence Network, rede que conta com 68 organizações ao redor do mundo e já conseguiu reverter a condenação de centenas de inocentes. [4] Atualmente, os seus casos têm ganhado repercussão nacional, e estão disponíveis também em publicações de relevo, como o Boletim IBCCRIM. [5]

Por fim, também a atividade docente do advogado pode socorrer pessoas com condições hipossuficientes. Um advogado com formação intelectual reconhecida pode confeccionar parecer técnico para juntada aos autos — este que, embora não seja uma peça de defesa, pode, através de reflexão doutrinal, auxiliar na adjudicação do caso em favor do réu.[6]

Direito a uma defesa efetiva

É dever de todo advogado prestar uma defesa efetiva. A esse dever não escapam os profissionais que não são remunerados.

O papel do advogado criminal e o direito a uma defesa penal efetiva são temas pouco abordados se comparados a outros — muito embora existam textos consagrados. [7] Esse cenário, parece estar em vias de mudar, já que nos anos recentes o Brasil conheceu relevantes publicações, como a edição temática do Boletim nº 381 do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), cujo dossiê são os desafios atuais da defesa técnica (pública e privada), [8] além de livros específicos sobre o tema. [9]

Apesar dessa evolução doutrinal, é evidente que o direito à defesa ainda é desconhecido pelos Tribunais, o que se consolida na equivocada súmula 523 do STF, que assim enuncia: “No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”. Como efeito, a súmula produz (ao menos) três consequências:

  1. estabeleceu uma vaga diferença entre “ausência” de defesa e defesa “deficiente”, esta que é injustificadamente tolerada no Brasil;
  2. determinou que essa deficiência não implica em vício processual, se não for comprovado o “prejuízo” pelo réu; e
  3. impôs ao acusado, que já foi deficientemente assistido, o ônus de provar o prejuízo sofrido. [10][11]

Uma aplicação prática dessa súmula é a vedação da prolação de sentença sem apresentação de alegações finais defensivas. Esse problema é de fácil resolução, pois basta intimar o réu para constituir novo patrono, ou intimar a Defensoria Pública. No entanto, se as alegações finais forem apresentadas com poucas laudas, teses genéricas e nenhum pedido de nulidade quando o caso comporta, p. ex., a súmula terá cumprido o seu papel e, para todos os efeitos, estará cumprida a “defesa”, ainda que “deficiente”, salvo se comprovado o prejuízo.

Em levantamento estatístico do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), viu-se que a maioria dos processos criminais no Brasil só há exercício de defesa técnica mediante apresentação de peças processuais consideradas obrigatórias pela jurisprudência. [12] Eis aí uma constatação que demonstra o equívoco da dita súmula, que atende a requisitos meramente formais.

Segundo Diogo Malan, existe intensa dificuldade em se medir a efetividade da defesa técnica, por uma falta de standards. O autor esboça dois: empenho pessoal (com critérios como comparecimento a atos processuais, protocolização de arrazoados e requerimento de provas) e capacitação técnica do defensor (com critérios como a consistência da fundamentação jurídica dos arrazoados, análise crítica dos elementos probatórios e pedido de absolvição). [13]

Ademais, é ainda de se destacar o tema de repercussão geral nº 339, no qual consta que o artigo 93, inciso IX da Constituição exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados “ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas”. Essa ressalva final, na prática, restringe o núcleo essencial do direito de influência na decisão judicial. [14]

Duas provocações ainda cabem fazer neste âmbito.

A primeira delas é a respeito do famigerado princípio da proibição da proteção deficiente, amiúde suscitado para questões que envolvem a criminalização de determinadas condutas. [15] Sem esboçar maiores considerações a respeito desse princípio, pensa-se que, se há uma situação em que ele poderia ser suscitado, é aqui: no direito a uma defesa penal que possa se considerar efetiva.

A segunda é o fato de que uma das características essenciais dos regimes autoritários é o desgosto pelo direito de defesa e pelo papel do advogado criminal. Uma das mais repressoras leis de segurança nacional da nossa história, o DL nº 898/1969 — editada no mesmo ano, por sinal, da súmula 523 do STF —, previa, em seus artigos 65 e 66, a possibilidade de arrolar três testemunhas por parte do Ministério Público, mas apenas dois por parte da defesa, sendo que estas deveriam comparecer independentemente de intimação — em uma época em que testemunhar em favor de presos políticos não era, nem de longe, a mais tranquila das incumbências. [16]

O que se pode concluir neste breve ensaio é que o direito a uma defesa efetiva é fundamental ao desenvolvimento social e à administração da Justiça como um todo. E esse direito assiste, inclusive, àqueles que não têm condição de contratar uma defesa privada. Portanto, o dever que o advogado tem de prestar uma defesa efetiva ao seu cliente ou assistido está igualmente presente em atuações pro bono.

 


[1] Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Justiça em números 2024. Brasília: CNJ, 2024, p. 98 e 15. Disponível em: https://bit.ly/3SczsMo. A respeito do relatório, veja-se também matéria disponibilizada pela Revista Piauí, disponível em: https://bit.ly/42PABhN.

[2] Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2024, p. 291. Disponível em: https://bit.ly/3SczsMo, fl. 291.

[3] A história do instituto é exposta por MALAN, Diogo Rudge. Advocacia criminal da inocência. Consultor Jurídico (Conjur). 30 dez. 2020. Disponível em: https://bit.ly/4cQZWwJ.

[4] Dados disponíveis no site: https://www.innocencebrasil.org/quem-somos-1.

[5] BRAGA, Fernando; ARCHANGELO, Fátima Aurora Guedes Afonso; BOSSONARIO, Letícia Daniele. O que podemos aprender com os primeiros casos do innocence project Brasil (I): o caso Antônio. Boletim IBCCRIM, a. 33, n. 390, p. 23-28, mai. 2025. Sobre a questão dos erros judiciários, consultar: CANI, Luiz Eduardo; ROSA, Alexandre Morais da. Guia para mitigação dos erros judiciários no processo penal. Florianópolis: Emais, 2021.

[6] “[…] em razão da relevância da matéria e dos efeitos da decisão condenatória, mas sobretudo em decorrência das condições econômicas enfrentadas pelo acusado e pela sua família – o réu encontra-se preso e, mesmo antes disso, por força do processo, não desempenhou qualquer atividade profissional desde o incêndio –, realizo o presente estudo pro bono” CARVALHO, Salo de. Dolo eventual e medida da culpabilidade: conteúdo judicialmente valorado e limites da aplicação da pena no caso da Boate Kiss. In: WUNDERLICH, Alexandre; RUIVO, Marcelo Almeida; CARVALHO, Salo de. Dolo eventual: Imputação e determinação da pena: estudos sobre o caso da Boate Kiss. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2022, p. 43.

[7] V. MORAES FILHO, Antônio Evaristo de. Advogado criminal, esse desconhecido. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 9, p. 104-114, jan. 1995.

[8] MALAN, Diogo Rudge. Desafios atuais da defesa técnica (pública e privada). Boletim IBCCRIM, a. 32, v. 381, pp. 2-6, ago. 2024.

[9] FELDENS, Luciano. O direito de defesa: a tutela jurídica da liberdade na perspectiva da defesa penal efetiva. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2021; MALAN, Diogo Rudge. Advocacia criminal contemporânea. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2022.

[10] Cfr. FELDENS, Luciano. Defesa técnica efetiva e postura judicial. Boletim IBCCRIM, a. 32, v. 381, pp. 10-12, ago. 2024, p. 11.

[11] A própria categoria do “prejuízo” já deveria ter sido, há muito, extirpada do processo penal. Conferir:  GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Uma nova teoria das nulidades: processo penal e instrumentalidade constitucional. Tese (doutorado em direito), UFPR. Curitiba: 2010, p. 244 e ss. Disponível em: https://bit.ly/3DHJWzK.

[12] Detalhes a respeito do referido estudo em: MALAN, Diogo. Op. cit., p. 121 e ss.

[13] MALAN, Diogo. Op. cit., p. 123; e MALAN, Diogo Rudge. Desafios atuais da defesa técnica (pública e privada). Boletim IBCCRIM, a. 32, v. 381, pp. 2-6, ago. 2024, p. 4.

[14] Assim: MALAN, Diogo. Op. cit., p. 4.

[15] No Brasil, texto seminal em: SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 12, n. 47, p. 60-122, mar./abr. 2004.

[16] Consultando o marco histórico, ressaltamos que observamos com preocupação a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, em 11 de abril de 2025, de dispensar de intimação as testemunhas de defesa no julgamento da AP nº 2.668/DF. É muito difícil não fazer um paralelo com períodos autoritários, na medida em que há uma evidente desvalorização do papel da defesa criminal.

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