Opinião

Importância do controle emocional do advogado no Tribunal do Júri

Autor

  • Natan Zabotto

    é advogado criminalista com atuação com ênfase no Tribunal do Júri especialista em Direito Penal e Processo Penal pela PUC-MG campus de Poços de Caldas professor de Direito Processual Penal e conselheiro da Jovem Advocacia da OAB-SP (biênio 2023-2024).

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7 de setembro de 2024, 13h25

O Tribunal do Júri, por expressa disposição constitucional, lida com os crimes mais densos em termos humanísticos: os crimes dolosos contra a vida. Processos que versam sobre esse tipo de delito trazem, naturalmente, uma carga emocional muito grande, na medida em que, em seu bojo, os mais terríveis dramas e misérias humanas são colocados a nu.

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O réu e seus familiares enfrentam a angustiante via crucis imposta pelo processo criminal, com a exposição e execração públicas na imprensa e, muitas vezes, com a privação da liberdade representando uma mudança drástica na vida cotidiana da família, afetando as relações sociais, o trabalho e a questão financeira, sem falar na ansiedade gerada pela incerteza sobre o futuro.

Da mesma maneira, os familiares da vítima, que, em grande parte dos casos, estão lidando com a tragédia da perda de um ente querido em circunstâncias traumáticas. O processo judicial certamente toca fundo em feridas ainda não cicatrizadas, intensificando o sofrimento, o luto e os sentimentos de revolta, raiva e até mesmo de vingança.

A publicidade concernente aos feitos de competência do Júri permite que todas essas pessoas afetadas pela desgraça tratada no processo assistam ao julgamento, quase sempre embebidas de uma exacerbada condição emocional, acompanhando ao vivo, atentamente e a poucos metros de distância todos os movimentos e falas dos atores processuais. Imagens, objetos e provas difíceis de presenciar são exibidos em plenário, causando nos presentes todo tipo de reação.

Somado a isso, o rito bifásico do Tribunal do Júri é baseado, preponderantemente, na oralidade, característica que torna os julgamentos muito mais dinâmicos, o que, especialmente no plenário do Júri, gera uma interação direta e instantânea entre acusação, defesa, juiz e jurados, de modo que, a todo momento, é preciso tomar decisões, e de forma rápida.

Toda essa atmosfera tensa e conflagrada impinge ao tribuno uma enorme pressão, por maior que seja sua experiência. Nesse momento, destaca-se a importância do controle emocional que o advogado deve ter no Tribunal do Júri. Para alcançá-lo, algumas medidas são fundamentais.

O ponto de partida é a consciência profissional. O advogado de Tribunal do Júri deve saber qual é seu papel e sua importância para a escorreita administração da Justiça (artigo 133 da Constituição). Isto é, tem de conhecer seus deveres deontológicos e suas prerrogativas profissionais, que estão estampados no Código de Ética e Disciplina da OAB e na Lei 8.096/1994.

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Deve saber, especialmente, que é seu direito e dever assumir a defesa criminal sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado, e que não há causa criminal indigna de defesa, cumprindo ao advogado agir, como defensor, no sentido de que a todos seja concedido tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana, sob a égide das garantias constitucionais (artigo 23, caput e § único, do Código de Ética e Disciplina da OAB).

Também precisa ter a ciência de que, em qualquer circunstância, deve manter independência (artigo 31, § 1º, da Lei 8.096/1994), e nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão (artigo 31, § 2º, Lei 8.096/1994).

Firmeza não pode se confundir com arrogância

Essa autonomia de critério e a firmeza e altivez profissional com que o advogado tem de agir não devem, entretanto, ser confundidas com arrogância, grosseria ou falta de respeito. Conforme bem observou o criminalista Antônio Pitombo, citado por Luciano Feldens, “nas audiências, o advogado jamais se apresenta arrogante. Melhor falar com jeito cortês mesmo quando questiona a testemunha mentirosa, discorda do promotor público arbitrário […]. O sistema adversarial, adotado pela legislação processual penal consoante a tradição norte-americana, exige advogado bem-preparado, não prepotente”[1].

Sem se esquecer da defesa efetiva do cliente, é necessário ter empatia e respeito para com a memória da vítima e a dor dos seus familiares. Isso é de grande relevância, visto que não apenas humaniza a posição do defensor, mas também ajuda a criar um ambiente mais respeitoso e menos hostil, o que atenua as pressões emocionais, além de proporcionar conexão, simpatia e, consequentemente, a atenção dos jurados que julgarão a causa.

A autoconsciência, ademais, é imprescindível: o advogado precisa saber, de antemão, que, irremediavelmente, lidará com situações no mínimo desconfortáveis, em um palco tenso de dor e desespero, como é o plenário do tribunal. Evandro Lins e Silva, um dos maiores advogados de Júri da história do Brasil, ostentava essa autoconsciência, que foi demonstrada em seu magistral livro “O salão dos passos perdidos”, quando disse: “ninguém me procura para contar uma coisa alegre, uma amenidade; sobretudo na advocacia penal, trata-se sempre de uma desgraça, uma infelicidade. E aí, eu tenho que atuar” [2].

Henri Robert, célebre criminalista francês, também a tinha. Cuida-se de uma característica dos grandes. Escreveu ele, em seu clássico livro “O Advogado”, que “os advogados são as testemunhas profissionais dos maus dias” [3].

De fato. Tensão e pressão são elementos naturais no Tribunal do Júri. Portanto, conhecer as situações delicadas que irá enfrentar ao longo do julgamento, e as próprias reações emocionais diante delas, é o primeiro passo para controlá-las. É preciso que essas dificuldades sejam encaradas como oportunidades de demonstrar habilidade e profissionalismo.

A par disso, outro aspecto essencial para o controle emocional é o preparo técnico. Quando assume o caso, ao advogado impõe-se à elaboração de um projeto de defesa técnica que orientará todas as estratégias defensivas durante o julgamento, com base em um vertical estudo do processo, da legislação, da doutrina e da jurisprudência aplicáveis ao caso.

Glória da advocacia criminal nos EUA, Clarence Darrow, citado por Evandro Lins, ensinava a seus alunos: “Antes de comparecerem perante um tribunal do júri, informem-se dos fatos, todos os fatos, todos os menores detalhes, e façam isso pessoalmente” [4].

O grande e saudoso criminalista estadunidense Francis Lee Bailey comparava a preparação preliminar do caso à parte submersa do iceberg que afundou o Titanic, que contava com 87% do gelo total. A parte visível fora da água simboliza o julgamento em plenário, que representa a culminação do trabalho [5].

Bailey se inspirava em seu conterrâneo Edward Bennett Williams, não menos ilustre advogado criminal, o qual dizia que “um advogado de defesa tem que se fechar e trabalhar centenas e até milhares de horas até que conheça o caso melhor do que aqueles que o viveram” [6].

O já citado defensor francês Henri Robert pensava o assunto da mesma maneira. Ele escreveu: “por princípio, o advogado não deve ignorar coisa alguma que possa contribuir para o sucesso da causa que defende” [7].

Vale dizer, um plano de defesa estrategicamente pensado e previamente estabelecido traz segurança emocional ao tribuno, haja vista que funciona como um porto seguro durante o julgamento. O que fazer e o que não fazer? O que falar e o que não falar? O que perguntar e o que não perguntar a uma testemunha? As respostas a essas indagações surgirão justamente do projeto de defesa previamente definido.

Haja o que houver, sustente o que sustentar a acusação, reaja como reagir o público presente, o profissional que sabe o que está fazendo no plenário, porque se preparou anteriormente, conseguirá se determinar e, se o caso, improvisar, desempenhando seu trabalho de forma eficaz. “Na realidade, a improvisação não é mais que um longo trabalho de acumulação” [8], dizia Robert.

Ou seja, quando o cenário emocional toma conta do plenário e a acusação apresenta um discurso muito forte, é o momento de se lembrar que existe uma firme estratégia defensiva na qual é preciso confiar. Isso ajuda a manter a calma e a concentração, possibilitando que, posteriormente, o advogado, sustentando de maneira elegante, concisa e sincera, faça com que o foco do júri seja redirecionado para os pontos que favorecem as hipóteses de trabalho da defesa, que ficarão ecoando por último.

Autoconfiança deve nortear trabalho

Em suma, consolidada pelo preparo técnico, a autoconfiança profissional preserva a serenidade que deve nortear o trabalho defensivo no Tribunal do Júri e mantém o advogado nos trilhos da tranquilidade, da razão, dos fatos e da lógica dos argumentos que apresentará em seguida, ao invés de se deixar levar por provocações, inquietações ou pressões emocionais.

Essa serenidade se reflete na postura física e no tom de voz, que, por sua vez, podem influenciar a percepção dos jurados. Uma atitude calma e confiante certamente transmite credibilidade, mesmo quando, em processos difíceis, a exposição acusatória pareça absolutamente irrespondível.

O cuidado com a saúde física e mental é, igualmente, de grande relevância para o controle emocional em plenário. Às vésperas do julgamento, atividades físicas como corrida, por exemplo, podem ajudar a reduzir o estresse.

Ao final, todas as dificuldades enfrentadas pelo tribuno do Júri são recompensadas pela sensação de dever cumprido e de ter deixado no solo do plenário seu suor e o melhor que tinha a entregar profissionalmente, independentemente do resultado do julgamento. Não há esforço inútil se o advogado souber conservar a fé na utilidade de sua missão.

Por fim, este texto não pretende esgotar o assunto. Trata-se apenas de algumas reflexões e medidas que, particularmente, funcionam bem com o autor e podem ajudar a outros profissionais do Júri. Até porque, como dizia Carlos Drummond de Andrade, “ninguém é igual a ninguém.

Todo o ser humano é um estranho ímpar”. Nesse ponto, na linha do pensamento socrático, conhecer a si mesmo é essencial: cada um deve desenvolver suas próprias técnicas de autocontrole, conhecendo seus limites, seus medos, suas reações e, a partir desse entendimento, encontrar suas próprias estratégias para se manter emocionalmente equilibrado no Júri

O importante, em qualquer caso, é que o advogado não perca de vista a seriedade do trabalho que realiza e, assim, se esforce para manter a razão e a prudência como guias de sua postura no plenário do Júri

Cada julgamento traz consigo lições únicas e inestimáveis. Ao refletir sobre os casos anteriores e nos preparar para os desafios futuros, moldamos e aprimoramos continuamente nossa prática profissional. Como bem afirmou o mestre Evandro Lins e Silva, o melhor júri é sempre o próximo.

 


[1] FELDENS, Luciano. O direito de defesa: a tutela jurídica da liberdade na perspectiva da defesa penal efetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021, p. 145.

[2] SILVA, Evandro Lins e. O salão dos passos perdidos: depoimento ao CPDOC. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Ed. FGV, 1987, p. 219.

[3] ROBERTS, Henri. O Advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 6.

[4] SILVA, Evandro Lins. A defesa tem a palavra, o Caso Doca Street e algumas lembranças. 4ª ed. Rio de Janeiro: Booklink, 2011, p. 34

[5] BAILEY. Francis Lee. Cómo se ganan los juicios: el abogado litigante. Ed. Limusa. P. 97.

[6]Disponível em: https://www.washingtonpost.com/archive/politics/1988/08/14/legal-titan-edward-bennett-williams-dies/4c0a1e4d-3e0e-422d-a82b-cb7c0b441f2d/. Acesso em: 04.09.2024.

[7] ROBERTS, Henri. Op. Cit. p. 37.

[8] ROBERTS, Henri. Op. Cit. p. 26.

Autores

  • é advogado criminalista, com atuação com ênfase no Tribunal do Júri, especialista em Direito Penal e Processo Penal pela PUC-MG, campus de Poços de Caldas, professor de Direito Penal e Processo Penal e Conselheiro da Jovem Advocacia da OAB-SP (biênio 2023/2024).

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