Responsabilidade civil, grandes eventos e mudanças climáticas: proteção dos consumidores
30 de abril de 2025, 8h00
Após a crise da Covid-19, o Brasil voltou a ser o destino de grandes festivais e eventos, que se multiplicam por diversas capitais e contam com renomados artistas nacionais e internacionais. Inegável que os brasileiros são fãs diferenciados e fazem verdadeiras loucuras para participarem dos shows e ficarem mais perto de seus ídolos. Não é incomum vermos notícias que informam sobre a existência de filas em formato de acampamento meses antes do evento e venda de ingressos com horário programado, que, em poucos minutos, se esgotam.
Por óbvio que o fascínio e a admiração do público brasileiro por determinados artistas – nacionais ou estrangeiros – aliado ao perfil devotado e caloroso desnudam fãs emocionados e propensos aos mais diversos atos para demonstrarem o nível de gratidão e amor pelo seu ídolo. No entanto, no mercado dos grandes eventos artísticos a proteção dos consumidores não pode ser mitigada e a exposição desnecessária às mais diversas intempéries climáticas em filas quilométricas e desorganizadas, bem como meios de transporte nem sempre adequadamente estruturados para o contingente esperado, demonstram que o setor ainda é pródigo em desrespeitar a legislação nacional de defesa do consumidor e os direitos humanos básicos.
Soma-se ao cenário descrito os efeitos climáticos que atingem o público-consumidor em grandes eventos e que, em regra, a organização desconsidera as medidas preventivas cada vez mais necessárias. Impossível não lembrar da esperada turnê da estrela internacional Taylor Swift – The Eras Tour – em solo brasileiro, que movimentou os swifities na segunda quinzena de novembro de 2023 [1]. Infelizmente, o primeiro dia da turnê foi marcado pela trágica morte de uma jovem fã, de 23 anos, que após horas de espera na fila e dentro do estádio no qual o show aconteceria. Segundo informações da Secretária Municipal de Saúde, a jovem sul-mato-grossense, faleceu após uma parada cardiorrespiratória [2]. O óbito da fã não pode ser encarado como mero infortúnio ou fatalidade. As altas temperaturas em solo fluminense que alcançaram sensação térmica próxima aos 60º já eram previstas pelos meteorologistas e foram, por ocasião do evento, potencializadas em razão da proibição de entrada de garrafa de água, cobrança abusiva dos valores nas imediações, utilização de tapumes e materiais inadequados, que ocasionaram queimaduras em alguns fãs e mais de uma centena de pessoas que passaram mal por causa do calor intenso.
Indispensável compreender que diante do estado de emergência climática os grandes eventos precisam de plano de contingência, ilhas de climatização e hidratação, distribuição gratuita de água, redimensionamento das filas e da arena em quadrados menores e com lotação máxima por área, entre outras medidas, sob pena de negligência e violação dos direitos básicos dos consumidores, como vida, saúde e segurança, que correspondem à direitos humanos basilares. De fato, após o trágico acontecimento anteriormente narrado, a organizações de diversos eventos incluíram ilhas de hidratação e/ou distribuição gratuita de água. Em março de 2025, o festival Lollapalooza sofreu com o agravamento da chuva e dos ventos no Autódromo de Interlagos, tendo sido os shows suspensos por mais de uma hora, em razão do alerta meteorológico sobre risco de raios. A organização emitiu informe nos telões que o público se afastasse das grades e estruturas metálicas e procurassem abrigo e, posteriormente, informou que implementou de forma pioneira plano de evacuação e retorno do público em caso de tempestades, chuvas, raios ou ventos fortes [3].
É notório que o ordenamento jurídico dispõe de arsenal suficiente de normas que tutelam a vida, a saúde e a segurança dos consumidores, em especial previstos na Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Logo após a tragédia ocorrida no show da popstar Taylor Swift, o então ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, determinou a adoção imediata de providências em resposta às denúncias de vedação ou ausência de disponibilidade de água para os consumidores em shows, em meio à intensa onda de calor que assolava o Brasil, em especial o Rio de Janeiro [4]. Em decorrência, foi editada a Portaria GAB-Senacon/MJSP nº 35, de 18 de novembro de 2023, que estabeleceu “estratégias destinadas à proteção da saúde dos consumidores em shows, festivais e quaisquer eventos de grandes proporções”.
O prazo de vigência da referida portaria tem sido prorrogado por força de atos normativos subsequentes (Portaria GAB-Senacon/MJSP n. 42, de 19 de março de 2024 e Portaria GAB-Senacon/MJSP nº 50, de 22 de abril de 2025). Enquanto isso, propostas legislativas aguardam aprovação no Congresso Nacional. O Projeto de Lei nº 5.569/2023, do Senado, por exemplo, trata do direito dos consumidores ao acesso à água potável em estabelecimentos comerciais e eventos coletivos. Na Câmara dos Deputados também tramita o Projeto de Lei nº 5.612/2023, que pretende criar a “Lei Ana Benevides estabelecendo as ações de saúde pública destinadas à proteção dos consumidores em shows, festivais e quaisquer eventos, especialmente aqueles expostos ao calor, em períodos de alta temperatura”.

Sem dúvida, o trágico evento mobilizou os fãs que clamaram nas redes sociais pela proposta de lei com o nome da vítima Ana Benevides, com o objetivo de distribuição de água gratuita nos grandes eventos, o que surtiu efeito, como acima mencionado. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, a Lei nº 2.424, de 22 de agosto de 1995, obriga bares, restaurantes e estabelecimentos similares a servirem água filtrada, de forma gratuita, aos seus clientes, que, nos termos da redação dada pela Lei nº 7.047/15, deverá ser água natural potável não mineral. A citada lei ainda estabelece que os estabelecimentos são obrigados a afixarem cartazes informando sobre a gratuidade da água potável filtrada.
A essencialidade da água vincula-se à preservação da dignidade da pessoa-consumidora, devendo ser fornecida pelos realizadores de grandes eventos não somente em casos de extremo calor, eis que vital ao bem-estar em espaços coletivos de festividade. Entretanto, em virtude da segurança e integridade dos consumidores, é possível estabelecer regras relativas os recipientes a serem disponibilizados e permitidos o ingresso no local dos grandes eventos.
A rigor, em tempos de mudanças climáticas significativas em razão da predatória atividade humana de poluição e desmatamento, inviável não compreender tais questões dentro das situações de injustiça e racismo ambiental, que, em especial, atingem países em desenvolvimento e periféricos. Não é de hoje que desastres ambientais atingem especialmente camadas mais vulneradas da população, o que revela que, principalmente, as consequências negativas do desrespeito ao equilíbrio ao meio ambiente “não são democráticas, tendendo a alcançar os grupos e indivíduos pertencentes a setores menos favorecidos da sociedade” [5].
Indispensável, portanto, que tal questão seja considerada para fins de quantificação da compensação do dano, uma vez que a exposição ao risco e o efetivo dano injusto atingem mais acentuadamente jovens de baixa renda e negros. Não é por acaso que a vítima fatal da tragédia no show da Taylor Swift tenha sido uma jovem negra. As desigualdades e discriminações, inclusive ambientais, tendem a atingir de forma mais acentuado às populações mais vulneradas, inclusive nos grandes eventos. Decerto, é comum áreas privativas ou com valores diferenciados em festivais, nos quais tendem a ter acessos diferenciados e maiores comodidades, o que igualmente revela traço discriminatório em eventos coletivos, quando não é assegurado o mínimo existencial aos consumidores de áreas com valores mais baixos, tais como ilhas de hidratação e pontos de evacuação de acordo com a quantidade do público.
Dano de massa
Promover grandes eventos lucrativos sem articular de forma coordenada a mobilização de diferentes atores para o cuidado aos consumidores no trajeto, nas filas, durante o evento em si e na dispersão é atentatório à dignidade de todas as pessoas envolvidas no evento (público, trabalhadores formais e informais, artistas e sua equipe). Em especial, o público consumidor de eventos, como shows e festivais, parece diretamente atingido, com a má prestação dos serviços e valores exorbitantes, que parecem transcorrer sem a devida fiscalização dos órgãos responsáveis e a passividade dos usuários do serviço, que parecem não compreender que igualmente são consumidores desses serviços.
Como é sabido, a segurança nos arredores dos eventos é precária, as filas são, em regra, desorganizadas, e o público é alvo de diversos ambulantes, que, não raras vezes, são os únicos que disponibilizam produtos alimentícios e bebidas. A lógica de que a responsabilidade é limitada à área do evento esfalece diante da atuação direta dos fornecedores em todas as etapas para a realização dos grandes eventos e que, portanto, devem zelar pela segurança e saúde de acordo com as necessidades decorrentes para a promoção do evento em si.
Há que se ponderar, inclusive, que tal situação retrata um dano de massa, uma vez que todo público foi exposto desnecessariamente ao risco, ainda que não tenha individualmente sofrido uma lesão à sua integridade física, inegavelmente sua esfera psíquica foi violada. Por isso, no plano dos critérios para arbitramento das indenizações de todo pertinente sua elevação de modo a inibir sua repetição, tendo por finalidade, de forma pedagógica, impor aos responsáveis um incremento da diligência e cautela nestes casos, de maneira a desincentivar os agentes econômicos que racionalmente não desejam arcar com os custos reparatórios elevados.
É evidente a lesão a interesses coletivos merecedores de tutela como a vida, saúde e segurança do público, que são indevidamente expostos à risco demasiado em razão da ausência de adequados planos de riscos, bem como de medidas aptas a suavizarem os deletérios efeitos climáticos extremos, tais como calor excessivo ou tempestades e ventos intensos. A rigor, a desorganização na entrada de shows e festivais, a proibição de ingresso com garrafas de água, a inexistência ilhas de hidratação e adequada climatização do estádio potencializaram os riscos ao público, especialmente os consumidores hipossuficientes, que estão mais suscetíveis ao racismo ambiental.
Bem-estar do público requer preparação para as mudanças climáticas
O Código de Defesa do Consumidor protege a parte vulnerável nas relações de consumo, em especial na dimensão da saúde e segurança dos produtos e serviços disponibilizados no mercado de consumo (artigo 8º), o que releva pontuar que cabem aos fornecedores informarem adequadamente sobre os riscos climáticos quando houver previsão meteorológica desfavorável e elaborar planos de dispersão para evitar riscos desnecessários ao público-consumidor de grandes eventos.
Aliás, cabe destacar que a mera exposição à concreto risco de lesão à saúde e à integridade psicofísica do consumidor, por si só, já caracteriza o dano de natureza moral [6], desde que comprovado que a organização do evento não adotou as cautelas necessárias para evitar ou diminuir os riscos efetivos aos consumidores. A rigor, considerando as previsões meteorológicas, as condições climáticas adversas não podem ser simplesmente entendidas como caso fortuito ou força maior, nos termos do artigo 393 do Código Civil vigente, visto que é obrigação da organização desses eventos impedir ou mitigar os efeitos climáticos previsíveis, por meio da adoção de medidas preventivas indispensáveis. Desse modo, pontos de hidratação, distribuição de água potável, planos de evacuação em caso de adversidades climáticas, entre outros, tornam-se medidas imperativas de proteção à saúde e à integridade psicofísica do público-consumidor.
A partir de dados meteorológicos disponíveis, é fundamental a adoção de providências voltadas à adaptação e à mitigação climática, o que, por sua vez, revela que a violação ao dever imputado aos organizadores de segurança e integridade dos participantes gera o dever de indenizar em razão da exposição à riscos concretos desnecessários. Sem embargo, a prova do nexo causal pode ser um desafio em matéria de mudanças climáticas, pois o dano pode ser o resultado de múltiplas ações, o que dificulta o estabelecimento da contribuição individual de cada agente. No entanto, a omissão da organização de grandes eventos e festivais diante de probabilidade meteorológica significativa acarreta a configuração do nexo causal em razão dos danos causados ao público-consumidor, o que pode ser caracterizado com base na exposição ao risco concreto.
Descortina-se, portanto, a imperiosa necessidade de gerenciamento dos riscos e plano de ação em grandes eventos com contingente de público significativo em razão de emergências climáticas com a adoção de medidas concretas que preservem, de forma preventiva, a vida, a saúde e a segurança dos consumidores de grandes shows e festivais. A proteção dos consumidores é mandamento constitucional e o argumento de que as adversidades climáticas são excludentes do nexo de causalidade é soterrado diante de previsibilidade de ondas de calor escaldantes e chuvas ou tempestades torrenciais. É preciso estar preparado para as mudanças climáticas para o bem-estar do público-consumidor. Há um patamar mínimo de precaução e cuidado que, por lei, deve ser observado. É uma questão de respeito aos intrépidos e calorosos fãs brasileiros e, sobretudo, de assegurar a garantia de defesa dos consumidores em sua dimensão da proteção à saúde e à segurança.
[1] Disponível em: https://exame.com/pop/taylor-swift-no-brasil-tudo-o-que-voce-precisa-saber-para-os-shows-da-the-eras-tour/. Acesso em 25 abr. 2025.
[2] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/morre-fa-taylor-swift-brasil/. Disponível em 18 nov. 2023.
[3] Disponível em: https://exame.com/pop/lollapalooza-2025-shows-sao-retomados-apos-chuvas-e-risco-de-raios/. Disponível em: 25 abr. 2025.
[4] Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/ministerio-da-justica-determina-medidas-apos-denuncias-de-falta-de-agua-em-show-no-rio-de-janeiro. Disponível em: 25 abr. 2025.
[5] GUIMARÃES, Virginia Totti. Justiça ambiental no direito brasileiro: fundamentos constitucionais para combater as desigualdades e discriminações ambientais. Teoria Jurídica Contemporânea, v. 3, n. 1, 2018, p. 36-63.
[6] V., STJ, REsp. n. 1.899.304/SP, Segunda Seção, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 25 ago. 2021.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!