Direitos do consumidor: uma questão de direitos humanos
16 de março de 2025, 8h00
O dia 15 de março é comemorado como o “Dia Internacional do Consumidor” pelo movimento global organizado de associações de consumidores, fazendo referência ao mesmo dia no qual, em 1962, o presidente John Kennedy encaminhou mensagem ao Congresso dos Estados Unidos em promoção aos direitos dos consumidores.

É oportuno, em uma data internacional, abordar a importância da proteção do consumidor no mundo globalizado como parte indivisível da gramática dos direitos humanos defendidos universalmente.
O objetivo central deste artigo é refletir sobre a relação entre a proteção de direitos humanos e os direitos do consumidor, mostrando a necessidade da utilização da gramática internacional de direitos humanos nas relações consumeristas, que pode servir para orientar a proteção nacional, evitando retrocessos e lacunas.
De início, ressalto que a proteção internacional dos direitos humanos não é estática e evolui constantemente. O Direito Internacional dos Direitos Humanos engloba, hoje, dezenas de convenções universais e regionais, sendo que algumas delas contam ainda com órgãos próprios de supervisão e controle (os chamados treaties bodies), além de outras normas protetoras de direitos humanos vinculantes oriundas do costume internacional e dos chamados princípios gerais de direito (fontes do Direito Internacional[1]).
Além das normas internacionais vinculantes, há também normas internacionais de soft law (ou direito em formação), as quais consistem no conjunto de normas não vinculantes e que servem (i) para auxiliar a interpretação e integração das normas internacionais vinculantes e ainda (ii) para estimular os Estados a adotarem normas internacionais vinculantes, como um tratado.
Não há um rol predeterminado desse conjunto mínimo de direitos essenciais a uma vida digna. As necessidades humanas variam e, de acordo com o contexto histórico de uma época, novas demandas sociais são traduzidas juridicamente e inseridas na lista dos direitos humanos.
A abertura desses direitos consiste na possibilidade de expansão do rol dos direitos necessários a uma vida digna. Fica consolidada, então, a não exauribilidade dos direitos humanos, sendo o rol de direitos previsto na Constituição Federal e tratados internacionais meramente exemplificativo, sem excluir o reconhecimento futuro de outros direitos[2].
Tal expansão internacionalista tem como centralidade o reconhecimento da universalidade dos direitos humanos, a qual consiste na atribuição desses direitos a todos os seres humanos, não importando nenhuma outra qualidade adicional, como nacionalidade, opção política, orientação sexual, crença, entre outras.
Por isso, o universalismo dos direitos humanos complementa e age contra as falhas normativas ou jurisprudenciais domésticas. Caracteriza ainda a proteção internacional de direitos humanos a (i) indivisibilidade, (ii) interdependência dos direitos humanos e, para a finalidade deste artigo (iii), a eficácia horizontal dos direitos humanos.
A indivisibilidade consiste no reconhecimento de que todos os direitos humanos possuem a mesma proteção jurídica, uma vez que são essenciais para uma vida digna. O objetivo do reconhecimento da indivisibilidade é exigir que o Estado também invista em todos os direitos, zelando pelo chamado mínimo existencial, ou seja, condições materiais mínimas de sobrevivência digna do indivíduo.
A interdependência significa que todos os direitos humanos contribuem para a realização da dignidade humana, interagindo para a satisfação das necessidades essenciais do indivíduo, o que exige, novamente, a atenção integral a todos os direitos humanos, sem exclusão. O conteúdo de um direito pode se vincular ao conteúdo de outro, demonstrando a interação e a complementaridade entre eles, bem como que certos direitos são desdobramentos de outros[3].
Justiça e igualdade
A indivisibilidade e a interdependência de tais direitos foram confirmadas em várias ocasiões. A Declaração de Viena (aprovada na 2ª Conferência Mundial de Direitos Humanos da ONU, 1993) reiterou que “todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase” (§ 5º).
Por sua vez, há uma eficácia irradiante dos direitos humanos, ou seja, sua capacidade de influenciar e se expandir para diferentes áreas do Direito, incluindo as relações privadas, como o consumo, que devem ser aplicados a todas as relações sociais e não somente às relações entre o indivíduo e o Estado. Os direitos essenciais de um indivíduo podem ser invocados contra outros particulares, consagrando a eficácia horizontal dos direitos humanos (relação particular vs. particular).
Por sua vez, a assimetria entre os particulares consagrou, ainda, a eficácia diagonal dos direitos humanos, que consiste na invocação de direitos nas relações entre os particulares nas quais uma das partes ostenta vulnerabilidade, como ocorre nas relações de consumo, fazendo nascer a prevalência de determinado direito de um particular sobre o outro.[4]
Por isso, não foi surpresa que a proteção de direitos dos consumidores viesse a ser mencionada no plano internacional. Em 1985, a Organização das Nações Unidas, por meio de sua Assembleia Geral, adotou as Diretrizes das Nações Unidas de Proteção do Consumidor (resolução 39/248), posteriormente ampliadas pelo Conselho Econômico e Social (em 1999), e revistas pela Assembleia Geral na resolução 70/186 de 2015, como forma de criar um marco internacional de orientação aos Estados[5].
Entre as legítimas necessidades dos consumidores discutidas na revisão das diretrizes da ONU feita em 2015, destaco, pelo impacto que possuem na desigual realidade brasileira, as seguintes: 1) o acesso a bens e serviços essenciais; 2) a proteção aos consumidores em situações de vulnerabilidade; 3) a proteção à saúde e à segurança dos consumidores; 4) a proteção da privacidade; 5) a proteção dos consumidores no comércio eletrônico; 6) o estímulo ao consumo sustentável; 7) o acesso à meios rápidos e eficientes de solução de litígios[6].
Adaptação necessária
A incorporação dos direitos do consumidor ao rol dos direitos humanos universalmente protegidos decorre da necessidade de adaptação da proteção jurídica às novas realidades impostas pela globalização e pela sociedade de consumo em massa. A interdependência e a indivisibilidade dos direitos humanos evidenciam que a dignidade da pessoa humana não pode ser plenamente garantida sem a proteção do consumidor, pois o consumo é um fenômeno universal e inerente à vida cotidiana de todas as pessoas.
O poder das grandes corporações, a assimetria informacional e a vulnerabilidade estrutural dos consumidores impõem desafios que exigem uma resposta normativa baseada nos princípios universais dos direitos humanos, garantindo acesso justo e equitativo a bens e serviços essenciais, além da proteção contra práticas abusivas e lesivas à saúde, ao meio ambiente e à segurança.
Nesse sentido, a eficácia irradiante dos direitos humanos demonstra que o reconhecimento dos direitos do consumidor transcende a esfera das relações privadas e deve ser entendido como parte fundamental da promoção da justiça social e da igualdade material.
Os direitos do consumidor podem ser compreendidos como direitos sociais e econômicos, voltados à proteção dos vulneráveis em uma relação desigual. De um lado, estão os fornecedores e prestadores de serviço, detentores de conhecimento técnico, poder econômico e estratégias de mercado; do outro, os consumidores, frequentemente com acesso restrito à informação e dificuldades para fazer valer seus direitos. Essa assimetria de poder justifica a existência de normas específicas que buscam equilibrar essa relação e garantir proteção contra abusos.
Todavia, ainda não há um tratado global ou regional abrangente sobre direitos dos consumidores. No entanto, organizações internacionais como as Nações Unidas desenvolveram diretrizes e recomendações para fortalecer a proteção do consumidor em nível internacional, como as Diretrizes das Nações Unidas para a Proteção do Consumidor.
A Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, em seu artigo 38, prevê — modestamente e sem detalhamento — que “as políticas da União devem assegurar um elevado nível de defesa dos consumidores”. Assim, a defesa específica dos direitos humanos dos consumidores deve ser feita de forma indireta, devendo ser extraídas garantias próprias dos consumidores dos direitos previstos em tratados de direitos humanos.
Dentre os principais direitos dos consumidores e que podem ser extraídos dos diplomas normativos genéricos de direitos humanos, destacam-se (i) o direito à segurança, que protege o direito à vida e à saúde do consumidor, em face de produtos e serviços que possam causar danos à saúde ou ao bem-estar; (ii) o direito à informação, garantindo acesso a dados claros e precisos sobre produtos e serviços adquiridos; (iii) o direito à autonomia, o qual assegura que consumidores tenham opções diversificadas no mercado; (iv) o direito à educação para o consumo, capacitando-os para tomar decisões conscientes; (v) o direito ao meio ambiente equilibrado nas relações consumeristas, forjando o consumo sustentável; (vi) o direito à reparação dos danos, que concretiza a igualdade material (se o fornecedor não for obrigado a reparar o dano, ele estará em posição superior e o consumidor em situação de inferioridade) e viabiliza reparações em casos de danos causados por práticas abusivas; (vii) o direito de acesso à Justiça e ao devido processo legal consumerista, o que assegura a possibilidade de demandas coletivas e remédios processuais específicos, como a inversão do ônus da prova.
A inclusão dos direitos do consumidor no arcabouço dos direitos humanos se justifica pela vulnerabilidade do consumidor e por seu caráter universal, indivisível e inalienável. Eles visam assegurar padrões mínimos de dignidade, prevenindo exploração econômica e garantindo condições justas de acesso a bens e serviços.
Portanto, no Dia Internacional do Consumidor, é essencial lembrar que proteger o consumidor significa também resguardar o indivíduo em um mercado globalizado, onde as dinâmicas do capitalismo frequentemente ampliam desigualdades e desafiam a efetiva proteção de direitos. Os avanços nessa área devem ser celebrados, mas também devem servir como um lembrete da necessidade de aprimorar as garantias já conquistadas e expandi-las em resposta aos desafios do mercado contemporâneo.
[1] Ver mais sobre as fontes do Direito Internacional dos Direitos Humanos em CARVALHO RAMOS, André de. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 83 e seguintes.
[2] CARVALHO RAMOS, André de. Curso de direitos humanos. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2025, p. 3.
[3] CARVALHO RAMOS, André de. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 219.
[4] CARVALHO RAMOS, André de. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 234.
[5]Ver os artigos anteriores nesta Coluna na ConJur, de Ana Cândida Muniz Cipriano (https://www.conjur.com.br/2019-jul-31/garantias-consumo-defesa-consumidor-ganha-importancia-ambito-internacional) e de Claudia Lima Marques, Amanda Flávio de Oliveira e Ana Cândida Muniz Cipriano (https://www.conjur.com.br/2016-out-26/garantias-consumo-onu-acompanha-evolucao-relacoes-consumo-nivel-transnacional)
[6] Resolução n. 70/186 da Assembleia Geral da ONU, adotada em 22 de dezembro de 2015. Disponível em: https://unctad.org/system/files/official-document/ares70d186_en.pdf
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