Opinião

Credor fiduciário como sujeito passivo do IPVA e o julgamento do Tema 1.153

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30 de abril de 2025, 18h28

O Supremo Tribunal Federal (STF) está analisando, no julgamento do RE nº 1.355.870 (leading case do Tema nº 1.153 da Repercussão Geral), em relação aos veículos adquiridos em alienação fiduciária em garantia, quem seria o sujeito passivo do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA): se o credor fiduciário ou o devedor fiduciante. Se aquele que possui a posse indireta ou se o possuidor legítimo do veículo.

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O tema tem o potencial de mexer drasticamente na dinâmica de arrecadação dos estados, a depender da decisão que será tomada ao fim do julgamento, com sérias consequências para o equilíbrio federativo e para a repressão de uma futura guerra fiscal.

Como sabido, a Constituição (CRFB/1988) dispõe, em seu artigo 155, III, que compete aos estados e ao Distrito Federal instituir IPVA. Conquanto tal outorga de competência esteja prevista desde outubro de 1988, o legislador ordinário ainda não editou a norma complementar a que alude o artigo 146 da Constituição. Diante da inexistência de lei complementar que disponha especificamente sobre normas gerais atinentes a esse imposto, os estados passaram a legislar sobre a questão, ao ensejo da competência legislativa plena prevista no artigo 24, §3º também da Constituição.

Uma grande celeuma que se estabeleceu desde então, é aquela atinente aos veículos adquiridos em alienação fiduciária. Nestes casos quem deve figurar como contribuinte do imposto? O credor fiduciário ou o devedor fiduciante? Nesse contexto, coube a cada ente federativo estabelecer os sujeitos passivos do IPVA (contribuinte e responsáveis), observada as delimitações constitucionais.

Como os estados elegem credores e devedores

Analisando as legislações que regem o IPVA nos 26 estados e no Distrito Federal, foi possível identificar que oito estados (PB, CE, AP, MA, SP, RJ, SE, PE) elegem como contribuinte do IPVA o “proprietário do veículo” sem informar se este seria o credor fiduciário ou o devedor fiduciante. Além disso, não há previsão de responsabilidade solidária na hipótese de alienação fiduciária. Outros sete estados (SC, PR, MG, ES, MT, AL, AC) preveem o “proprietário do veículo” como contribuinte do imposto e como responsável solidário o devedor fiduciante, pelo que se depreende que o credor fiduciário seria o real contribuinte.

Por sua vez, três estados (PI, PA, AM) preveem expressamente o credor fiduciário como contribuinte e o devedor fiduciante como responsável. Dois estados (TO, BA) preveem como contribuinte da exação o “proprietário do veículo” e como responsável o credor fiduciário e o devedor fiduciante, uma redação bastante atécnica, pois se ambos forem responsáveis quem será o contribuinte? Ainda, três estados (RN, RR, RS) preveem o devedor fiduciante como contribuinte do imposto e destes somente o estado do Rio Grande do Sul prevê o credor fiduciário como responsável.

Outros três estados (MS, GO, RO) preveem o “proprietário do veículo” como contribuinte do IPVA, o devedor fiduciante como substituto tributário e o credor fiduciário como responsável solidário pelo tributo. Por fim, o Distrito Federal elegeu como contribuinte do imposto o “proprietário do veículo” e o devedor fiduciante e nada disse a respeito do credor fiduciário, sendo silente sobre sua eleição como responsável tributário.

Veja-se, abaixo, tabela ilustrativa do que acabamos de dizer:

UF LEI CONTRIBUINTE RESPONSÁVEL SUBSTITUTO
AC 114/02 Proprietário do veículo Devedor fiduciante
AL 6.555/04 Proprietário do veículo Devedor fiduciante
AM 19/97 Credor fiduciário Devedor fiduciante
AP 194/94 Proprietário do veículo
BA 6.348/91 Proprietário do veículo Credor fiduciário e devedor fiduciante
CE 12.023/92 Proprietário do veículo
DF 7.431/85 Proprietário do veículo e devedor fiduciante
ES 6.999/01 Proprietário do veículo Devedor fiduciante
GO 11.651/91 Proprietário do veículo Credor fiduciário Devedor fiduciante
MA 5.594/92 Proprietário do veículo
MG 14.937/03 Proprietário do veículo Devedor fiduciante
MS 1.810/97 Proprietário do veículo Credor fiduciário Devedor fiduciante
MT 7.301/00 Proprietário do veículo Devedor fiduciante
PA 6.017/96 Credor fiduciário Devedor fiduciante
PB 11.007/17 Proprietário do veículo
PE 10.849/92 Proprietário do veículo
PI 4.548/92 Credor fiduciário Devedor fiduciante
PR 14.260/03 Proprietário do veículo Devedor fiduciante
RJ 2.877/97 Proprietário do veículo
RN 6.967/96 Devedor fiduciante
RO 950/00 Proprietário do veículo Credor fiduciário Devedor fiduciante
RR 59/93 Devedor fiduciante
RS 8.115/85 Devedor fiduciante Credor fiduciário
SC 7.543/88 Proprietário do veículo Devedor fiduciante
SE 7.655/13 Proprietário do veículo
SP 13.296/08 Proprietário do veículo
TO 1.287/01 Proprietário do veículo Credor fiduciário e devedor fiduciante

Impacto na sujeição passiva do IPVA

Em recente artigo[1] publicado nos Cadernos Jurídicos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, coordenado pela Escola Paulista da Magistratura, analisamos a possibilidade de eleição do credor fiduciário como contribuinte ou responsável do IPVA.

A distinção entre propriedade plena e propriedade fiduciária impacta diretamente a sujeição passiva do IPVA. Primeiramente, dever-se-á considerar que a propriedade plena, conforme definida no artigo 1.228 do Código Civil, confere ao titular de um determinado bem todos os atributos essenciais da propriedade, como o uso, o gozo, a fruição e a disposição da coisa. Em contraste, a propriedade fiduciária é um direito real resolúvel que serve apenas como garantia de uma obrigação assumida pelo devedor fiduciante. O credor fiduciário, nesse contexto, detém apenas a posse indireta do bem, não podendo utilizá-lo para seus próprios fins, mas apenas retomá-lo em caso de inadimplência para posterior alienação.

Spacca

Nesse sentido, o veículo objeto de alienação fiduciária não integra o patrimônio do credor fiduciário, uma vez que este reconhece em seus ativos apenas o direito de crédito. Como consequência, a titularidade dos direitos sobre o bem pertence ao devedor fiduciante, que é quem efetivamente usa, goza e usufrui do veículo. O artigo 1.367 do Código Civil reforça essa distinção ao afirmar que a propriedade fiduciária não se equipara à propriedade plena. Assim, qualquer tentativa de equiparar os dois conceitos é totalmente equivocada, pois ignora os princípios fundamentais do direito civil e a própria sistemática do ordenamento jurídico brasileiro.

A partir disso, é possível verificar que para que um sujeito seja considerado contribuinte desse imposto, ele deve possuir capacidade econômica vinculada à propriedade plena do bem. Como o credor fiduciário não detém o direito de usar ou dispor do veículo, não há justificativa para incluí-lo no polo passivo da obrigação tributária. Esse entendimento é reforçado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que no julgamento do Recurso Extraordinário nº 727.851 (leading case do Tema nº 685 da repercussão geral) decidiu que “incide a imunidade prevista no art. 150, inciso VI, alínea ‘a’ da Constituição Federal, em se tratando de contrato de alienação fiduciária em que pessoa jurídica de direito público surge como devedora”.

Decisão do STJ

Em caso bastante semelhante, também analisando o contrato de alienação fiduciária, mas desta vez para imóveis, o Superior Tribunal de Justiça, em decisão de março deste ano, decidiu que o credor fiduciário não pode ser obrigado ao pagamento do IPTU antes da consolidação da propriedade e da imissão da posse do imóvel.

O caso analisado pelo STJ, sob a óptica do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) também perpassou pela análise dos requisitos da propriedade plena. Nesse sentido, para manter a coerência do sistema jurídico-tributário nacional, aguarda-se que o STF, ao analisar o contrato de alienação fiduciária de veículos e sua repercussão no IPVA, julgue o Tema 1.153 também no mesmo sentido.

A questão, decidida pela 1ª Seção do STJ, foi julgada sob o pálio dos recursos repetitivos (Tema 1.158) e resultou na seguinte tese: “o credor fiduciário, antes da consolidação da propriedade e da imissão da posse do imóvel, objeto da alienação fiduciária, não pode ser considerado sujeito passivo do IPTU, uma vez que não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas no art. 34 do CTN“.

Além do aspecto jurídico, importante considerar, também, as implicações de ordem econômica de uma eventual declaração de constitucionalidade das normas estaduais que preveem o credor fiduciário com contribuinte do IPVA.

Risco aos contratos de financiamento

Caso os credores fiduciários sejam responsabilizados pelo imposto, eles tenderão a repassar esse risco adicional para os contratos de financiamento, encarecendo as taxas de juros e tornando o crédito mais restritivo. Isso, por sua vez, pode reduzir a venda de veículos novos e impactar o setor automotivo, que representa uma parcela significativa da economia brasileira.

Por fim, a tentativa de enquadrar o credor fiduciário como sujeito passivo do IPVA também pode gerar distorções na arrecadação tributária, pois, se for considerada válida, a cobrança passaria a ser feita nos estados onde as instituições financeiras estão sediadas, e não onde os veículos circulam, nos termos do entendimento firmado pelo STF no julgamento do RE nº 1.016.605 (leading case do Tema nº 708 da repercussão geral).

Isso levaria a uma concentração da receita do IPVA em poucos estados, especialmente São Paulo, prejudicando a arrecadação das demais unidades federativas e incentivando uma guerra fiscal entre estados e municípios na tentativa de atrair instituições financeiras para seus territórios.

Diante disso, referidas normas estaduais são juridicamente insustentáveis, economicamente prejudiciais e institucionalmente perigosas, pois comprometem a segurança jurídica, desorganizam o pacto federativo e afetam negativamente o funcionamento do mercado de crédito no Brasil.

Julgamento no STF

Agora, no julgamento do Tema nº 1.153, o relator, ministro Luiz Fux, apresentou seu voto no sentido de considerar inconstitucional a previsão da legislação do Estado de Minas Gerais que consagra o credor fiduciário como contribuinte do IPVA. Entendimento este que reputamos acertado. Contudo, de acordo com Fux, seria possível que os estados e o Distrito Federal elegessem o credor fiduciário como responsável pelo pagamento do imposto estadual.

A despeito das considerações colocadas no voto, ao nosso sentir, a possibilidade de enquadrar o credor fiduciário como responsável pelo pagamento do IPVA, viola tanto princípios constitucionais quanto normas tributárias. De acordo com o artigo 128 do Código Tributário Nacional (CTN), a responsabilidade tributária só pode ser imputada a um terceiro quando houver uma relação econômica indireta com o fato gerador, que lhe permita repassar o custo do tributo ao verdadeiro contribuinte. No caso da alienação fiduciária, essa relação não existe, pois o credor fiduciário não realiza o fato gerador do IPVA e tampouco pode reter ou cobrar do devedor fiduciante o valor do imposto.

Diferentemente de situações em que o responsável tributário pode descontar o tributo devido de um pagamento feito ao contribuinte (como um empregador que retém o Imposto de Renda de um funcionário), o credor fiduciário não tem qualquer mecanismo de repasse do valor do IPVA ao devedor fiduciante, já que sua relação com ele é exclusivamente de credor, e não de pagador. Assim, forçá-lo a arcar com o tributo seria transferir um encargo financeiro para alguém que não possui capacidade contributiva relacionada ao fato gerador do imposto, o que violaria o princípio da capacidade contributiva e geraria uma tributação desproporcional e injusta.

Portanto, a previsão do credor fiduciário como sujeito passivo do IPVA (seja como contribuinte, seja como responsável) é ilegal e inconstitucional, pois contraria o conceito de propriedade adotado pela Constituição e pelo Código Civil. Além disso, sua aplicação prática resultaria em distorções econômicas significativas, como o incremento dos custos de financiamento e a concentração de arrecadação em poucos Estados, comprometendo a equidade do sistema tributário e a cooperação entre os entes federativos.

O julgamento do Tema nº 1.153 foi suspenso por pedido de vista formulado pelo ministro Cristiano Zanin e ainda não há previsão para sua retomada.

 


[1] SILVA, Paulo Roberto Coimbra ; ANDRADE, Aurélio Oliveira. Análise da constitucionalidade da previsão do credor fiduciário como sujeito passivo do IPVA e suas consequências. CADERNOS JURÍDICOS (EPM), v. 67, p. 66-84, 2024. Disponível em: https://epm.tjsp.jus.br/Publicacoes/CadernoJuridico/105699?pagina=1. Acesso em: 21 mar. 2025.

Autores

  • é advogado, doutorando e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da UFMG e membro dos Grupos de Pesquisa "Direito Tributário Crítico", Direito Tributário Previdenciário" e Direito Tributário Sancionador", vinculados ao CNPq e radicados na Faculdade de Direito da UFMG.

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