Consultor Tributário

Degraus tributários: quando o intérprete desce a pirâmide, o arbítrio sobe

Autor

  • é mestre e doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (de cujo programa de pós-graduação — mestrado/doutorado — foi coordenador) professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado) membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA) advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität em Viena (Áustria).

    Ver todos os posts

30 de abril de 2025, 10h22

Tenho observado, como professor, advogado e pesquisador, o crescimento de um fenômeno que, embora silencioso, tem enorme impacto sobre o Direito Tributário brasileiro: o aumento do arbítrio à medida que se desce na hierarquia normativa. Pode parecer algo óbvio — e é — mas paradoxalmente é também pouco percebido, e talvez não se tenha ainda plena dimensão dos motivos, causas, consequências e desdobramentos do fenômeno.

Spacca

Essa é a hipótese que pretendo desenvolver em um pequeno livro ainda em elaboração. O ponto de partida é simples, mas instigante: quanto menor a hierarquia de uma norma, na estrutura do ordenamento, maior tende a ser o grau de arbitrariedade (em matéria tributária) nela contido. E isso não ocorre por acaso.

À medida que se desce da Constituição para as leis, destas para os decretos, e daí para portarias e instruções normativas, estreitam-se as barreiras institucionais entre quem elabora a norma e quem se beneficia diretamente de seu conteúdo. No caso tributário, isso significa aproximar, gradual e perigosamente, o credor da relação obrigacional do processo normativo que define os contornos dessa obrigação.

O sistema jurídico brasileiro foi concebido com uma estrutura piramidal, cujas bases teóricas remontam à obra de Kelsen e foram popularizadas, no plano didático, por Norberto Bobbio. A Constituição estaria no topo, definindo os fundamentos e limites das normas infraconstitucionais. No entanto, a pirâmide, que deveria organizar e limitar o poder, tem sido, em muitos casos, invertida. O topo se torna simbólico, e a base, desproporcionalmente robusta e expansiva, passa a ditar regras com consequências práticas muito maiores do que aquelas previstas nas normas superiores.

Exemplos

A Emenda Constitucional nº 132/2023 e a Lei Complementar nº 214/2025 oferecem exemplos recentes e eloquentes desse fenômeno. Embora a Constituição tenha deixado claro que a não cumulatividade do novo IVA dual se submete à restrição apenas nas hipóteses de os bens e serviços adquiridos pelo contribuintes serem destinados a uso ou consumo pessoal, a lei complementar, sob o pretexto de regulamentar, cria um rol extenso de bens e serviços que seriam assim considerados, ainda que, na prática, muitos deles não se enquadrem nessa exceção. Pior: a porta está aberta para que o regulamento avance ainda mais.

O problema não se limita ao conteúdo. Envolve também o processo de produção normativa. Ao transferir competências substanciais para o Poder Executivo — muitas vezes por meio de fórmulas ambíguas, como “divulgação” de alíquotas (p.ex. do IBS e da CBS incidentes sobre combustíveis e sobre serviços financeiros) ou “complementação” de regimes especiais (como o fazem muitas leis estaduais, em matéria de ICMS, tema de meu artigo passado nesta coluna) — o legislador fragiliza o princípio da legalidade e empurra o contribuinte para um labirinto interpretativo dominado por atos administrativos que frequentemente extrapolam o papel de mera regulamentação.

Respeitar a hierarquia normativa não é apenas um capricho formal. Trata-se de um instrumento de contenção do poder. A Constituição reserva certos temas para tratamento em nível superior justamente porque reconhece que sua disciplina afeta diretamente direitos fundamentais. Quando esses temas são delegados a normas infralegais — por conveniência técnica, política ou mesmo fiscal — o risco de abuso cresce. E cresce silenciosamente.

Se a legalidade já foi entendida apenas como limite, hoje, como insiste o professor Marco Aurelio Greco, é também instrumento de participação. A lei, aprovada por representantes eleitos, é — ou deveria ser — fruto de debate público, aberto à crítica e à deliberação coletiva. As normas infralegais, por sua vez, tendem a ser unilaterais, pouco transparentes, e às vezes deliberadamente opacas. O resultado é um sistema que promete democracia fiscal, mas entrega unilateralismo tecnocrático.

As repercussões, e interrelações, diante de outros princípios, são claras. Separação de poderes, supremacia constitucional, legalidade, democracia, transparência, cooperação, justiça fiscal, todos são impactados quando normas inferiores tratam de temas que deveriam constar de normas superiores, ou o fazem extrapolando o teor destas.

Que isso não é possível, já se sabe. Mas as razões pelas quais ocorre, e os motivos pelos quais não deve ocorrer, talvez ainda se precisem esclarecer. Sobretudo em uma época em que se fala tanto, e de forma equivocada, de uma legalidade que poderia ser apenas “suficiente”, afirmação em tese correta, mas na prática não raro equivocada, ou distorcida, porque assim entendida aquela que o autor do texto legal deseja subjetivamente atender, ou, pior, que o autor do texto infralegal entende capaz de deixar-lhe a margem para a desejada extrapolação.

Ao investigar os degraus do arbítrio, pode-se contribuir com esse debate. Não se trata de nostalgia por um tempo em que tudo estaria contido na Constituição (que, de resto, nunca existiu), tampouco de recusa à complexidade da tributação contemporânea. Mas é preciso perceber que, se continuarmos a permitir que os níveis inferiores do sistema jurídico concentrem cada vez mais poder — e o façam sem controle, transparência ou responsabilidade, como lhes é próprio — a pirâmide deixará de ser estrutura de ordenação e passará a ser mero desenho retórico, simbólico.

Autores

  • é mestre e doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), ex-coordenador (2012/2016) do programa de pós-graduação (mestrado/doutorado) da UFC, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität, em Viena, na Áustria.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!