Escritos de Mulher

Urgência de um direito sancionador orçamentário e a deterioração fiscal

Autor

30 de abril de 2025, 12h18

Contexto de fragilidade normativa e econômica

O atraso sistemático na aprovação da Lei Orçamentária Anual (LOA) no Brasil voltou a evidenciar graves deficiências no sistema de governança fiscal do país, especialmente no exercício de 2025. Este cenário, marcado por disputas políticas e fragilidades institucionais, tem impactado diretamente a execução de políticas públicas e a sustentabilidade fiscal brasileira. Nesse contexto, torna-se imprescindível refletir sobre a urgência da criação de um Direito Sancionador Orçamentário robusto, capaz de prevenir atrasos e responsabilizar agentes públicos por irregularidades no processo orçamentário.

Relatórios técnicos recentes, como o Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF nº 99) da Instituição Fiscal Independente (IFI), apontam para uma preocupante trajetória de deterioração fiscal, evidenciando falhas na execução orçamentária e na gestão das finanças públicas. A combinação entre debilidade normativa e agravamento fiscal configura um cenário de alto risco que demanda reformas institucionais urgentes.

Atrasos recorrentes e fragilidade institucional

A aprovação da LOA de 2025, ocorrida apenas em 20 de março, reiterou a prática recorrente de atrasos no processo orçamentário brasileiro desde a redemocratização. Embora a Constituição Federal exija a aprovação do orçamento antes do início do exercício financeiro, essa determinação tem sido frequentemente desrespeitada, sem a imposição de sanções legais significativas.

A sanção tardia do orçamento compromete diretamente a execução eficiente das políticas públicas, restringindo a liberação de novos investimentos e inviabilizando projetos estratégicos para o desenvolvimento econômico e social. Em 2025, o atraso resultou principalmente de disputas em torno das emendas parlamentares, especialmente quanto à transparência e ao destino dos recursos. Decisões judiciais, como a proferida pelo ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, que suspendeu parte dos repasses, exigiram uma reavaliação do sistema de distribuição. Essa situação revela não apenas a politização do orçamento, mas também a fragilidade institucional do processo legislativo-orçamentário.

Deterioração fiscal e o papel da IFI

No RAF nº 99, publicado em abril de 2025, a IFI apresentou uma análise aprofundada das perspectivas fiscais do país, indicando um quadro preocupante de deterioração dos principais indicadores econômicos. Embora a meta de resultado primário zero para 2025 pudesse ser formalmente alcançada mediante deduções legais e margem de tolerância, o déficit real projetado era de R$ 64,2 bilhões (0,51% do PIB).

A IFI também identificou discrepâncias significativas no orçamento aprovado, sobretudo em relação à superestimação das receitas primárias líquidas, calculada em R$ 54,2 bilhões. Essa diferença decorre, em grande parte, da inclusão de receitas extraordinárias condicionadas a fatores incertos, como transações tributárias e decisões no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Para 2026, o cenário torna-se ainda mais preocupante, com projeção de déficit de R$ 128 bilhões (0,95% do PIB), sinalizando um risco crescente à sustentabilidade fiscal.

As projeções da dívida pública reforçam esse alerta. A dívida bruta deve atingir 79,8% do PIB em 2025 e escalar para 84,0% em 2026, resultado da combinação entre baixo crescimento econômico, inflação elevada e subestimação persistente de despesas obrigatórias, como previdência, saúde e assistência social.

Consequências econômicas e sociais da incerteza orçamentária

Os impactos da incerteza orçamentária e da fragilidade fiscal não são meramente técnicos ou institucionais; atingem diretamente a população. Programas sociais essenciais, como Bolsa Família, Farmácia Popular e Vale Gás, são prejudicados pela instabilidade gerada pela aprovação tardia do orçamento e pela indefinição quanto à disponibilidade real de recursos.

Reprodução

A prática reiterada de elaborar orçamentos com receitas superestimadas ou despesas subestimadas compromete a capacidade do Estado de planejar ações eficazes, desorganiza o fluxo de investimentos públicos e aprofunda desigualdades estruturais. Essa imprevisibilidade mina a confiança da sociedade nas instituições e na eficácia das políticas públicas.

Necessidade de um direito sancionador orçamentário

O atual cenário fiscal evidencia a insuficiência das normas vigentes para assegurar uma governança orçamentária eficiente e responsável. Torna-se urgente a implementação de um direito sancionador orçamentário, voltado à responsabilização formal de agentes públicos por atrasos deliberados ou condutas que comprometam o ciclo orçamentário.

Entre as propostas prioritárias, destacam-se:

– A responsabilização administrativa e financeira de agentes que atrasem ou manipulem o processo orçamentário;

– O fortalecimento das competências dos Tribunais de Contas para adotar medidas cautelares com maior eficácia;

– A ampliação dos poderes da IFI, incluindo maior capacidade de ação preventiva e interlocução institucional;

– A criação de uma Lei de Responsabilidade Orçamentária específica, com prazos rígidos e sanções claras para o descumprimento de etapas do processo.

Essas medidas visam consolidar o orçamento público como instrumento de desenvolvimento e justiça social, afastando-o da lógica de barganha política e oportunismo fiscal.

Papel fundamental da instituição fiscal independente

Nesse contexto, a Instituição Fiscal Independente consolida-se como um dos pilares da transparência e do controle fiscal no país. Criada pela Resolução nº 42/2016 do Senado Federal, a IFI oferece análises técnicas e imparciais sobre a execução orçamentária e a trajetória da dívida pública, contribuindo para o debate democrático sobre as finanças do Estado.

Com a produção de seus quatro tipos de produtos, que envolvem o trabalho técnico de projeção e análise econômica e fiscal na divulgação de estimativas de parâmetros e variáveis relevantes para a construção de cenários fiscais e orçamentários, a IFI desempenha um papel crucial na transparência fiscal.

A IFI analisa a aderência do desempenho de indicadores fiscais e orçamentários às metas definidas na legislação pertinente e mensura o impacto de eventos fiscais relevantes, especialmente os decorrentes de decisões dos Poderes da República, incluindo os custos das políticas monetária, creditícia e cambial. Além disso, projeta a evolução de variáveis fiscais determinantes para o equilíbrio de longo prazo do setor público.

Entre os produtos desenvolvidos pela IFI estão: os Relatórios de Acompanhamento Fiscal (RAF), com periodicidade mensal, que fornecem uma visão contínua da execução fiscal; os Estudos Especiais (EE), que, sem periodicidade definida, aprofundam temas específicos de interesse fiscal; as Notas Técnicas (NT), também sem periodicidade definida, que oferecem análises técnicas sobre questões pontuais; e os Comentários da IFI (CI), que, igualmente sem periodicidade definida, fornecem insights sobre eventos fiscais relevantes. Esses produtos coletivamente contribuem para a clareza e a responsabilidade na gestão fiscal.

Um dos principais instrumentos dessa atuação são os Relatórios de Acompanhamento Fiscal (RAFs), publicados mensalmente. Esses relatórios apresentam diagnósticos detalhados sobre receitas, despesas, cumprimento de metas fiscais e evolução da dívida, além de projeções macroeconômicas semestrais em três cenários (base, otimista e pessimista). Os RAFs são amplamente utilizados por parlamentares, jornalistas, economistas e gestores públicos, e têm sido fundamentais para o acompanhamento técnico e transparente das contas públicas.

A divulgação sistemática dos RAFs promove um debate mais qualificado sobre política fiscal, permitindo o monitoramento constante dos desvios em relação às metas e a identificação precoce de riscos. Desde sua primeira edição em 2017, os relatórios vêm estabelecendo um contraponto saudável às projeções do Executivo, fortalecendo o papel da IFI como observadora independente da política fiscal brasileira.

Contudo, a atuação da IFI permanece limitada ao campo consultivo. Para que sua contribuição seja mais efetiva, é necessário conferir-lhe maior autonomia e capacidade de interferência preventiva no processo orçamentário, elevando seu protagonismo na gestão fiscal do país.

Desafio da dívida pública: sustentabilidade, regulação e responsabilidade intergeracional

A dívida pública é um dos principais elementos da política fiscal de qualquer país, e sua gestão eficiente é fundamental para a sustentabilidade das finanças públicas. A dívida pública é um componente relevante na economia de qualquer país, refletindo a quantidade de recursos que o governo toma emprestado para financiar seus déficits orçamentários, quando as despesas superam as receitas.

No Brasil a expansão da dívida pública se intensificou nas últimas décadas, particularmente a partir da década de 1980, após o fim da ditadura militar e a transição para um regime democrático. Durante esse período, o país enfrentou crises econômicas significativas, marcadas pela hiperinflação, uma série de planos econômicos fracassados e dificuldades em honrar compromissos internacionais. A dívida pública brasileira, tanto interna quanto externa, cresceu substancialmente durante esse período, com o governo recorrendo a empréstimos para financiar déficits orçamentários e manter o funcionamento da economia.

Nos anos 1990, com o Plano Real, o Brasil conseguiu controlar a inflação e implementar reformas econômicas que estabilizaram o crescimento da dívida. No entanto, o endividamento público continuou a ser uma questão crítica, uma vez que o país ainda dependia de financiamentos externos e enfrentava dificuldades estruturais no equilíbrio das contas públicas. O aumento dos gastos sociais e o fortalecimento das políticas de bem-estar social, especialmente nos anos 2000, contribuíram para a elevação dos gastos públicos e, consequentemente, da dívida.

O tema da disciplina orçamentária e da dívida pública é central para a gestão das finanças de qualquer Estado, envolvendo uma série de responsabilidades que impactam diretamente a estabilidade econômica e social. A dívida pública representa o montante de obrigações assumidas pelo governo para financiar suas atividades, seja por meio da emissão de títulos, seja através de empréstimos nacionais e internacionais. Sua gestão exige um equilíbrio delicado entre o financiamento do desenvolvimento e a preservação da sustentabilidade fiscal de longo prazo.

Diversos fatores influenciam a trajetória da dívida pública, como o desempenho do PIB, as políticas fiscais adotadas, as taxas de juros praticadas e o ambiente macroeconômico global. Durante a pandemia de Covid-19, por exemplo, muitos países — incluindo Brasil — elevaram seus níveis de endividamento para financiar medidas emergenciais de proteção social e estímulo econômico. Embora essas ações tenham sido necessárias, elas impõem o desafio de reconstruir gradualmente a estabilidade fiscal, exigindo planejamento rigoroso e compromisso político.

No Brasil, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) constitui o principal marco legal para a disciplina da dívida pública, impondo limites ao endividamento, exigindo transparência na gestão das finanças e estabelecendo parâmetros para o equilíbrio das contas públicas. Esse arcabouço normativo busca evitar que o descontrole fiscal comprometa a credibilidade do Estado e dificulte o acesso a financiamentos futuros.

Entretanto, a sustentabilidade da dívida vai além do cumprimento de metas legais. Trata-se também de assegurar que as obrigações presentes não comprometam os direitos e o bem-estar das futuras gerações. Essa perspectiva de responsabilidade intergeracional é essencial em contextos onde o endividamento crescente pode gerar um fardo excessivo para os próximos governos e limitar o espaço fiscal para investimentos sociais.

A flexibilização temporária de regras fiscais permite ações de resposta no aparecimento de crise, mas exige revisão estratégica para garantir que a retomada do crescimento não seja acompanhada por uma escalada descontrolada do endividamento.

Nesse cenário, o papel das Instituições Fiscais Independentes (IFIs) torna-se ainda mais relevante, pois por meio de seus estudos técnicos, tais como os Relatórios de Acompanhamento Fiscal (RAFs), a IFI contribui com diagnósticos precisos sobre a trajetória da dívida, alertam sobre riscos fiscais e propõem ajustes antes que a situação se torne insustentável. A gestão eficiente da dívida pública, portanto, não apenas evita crises financeiras, mas também assegura o uso responsável dos recursos públicos.

No Brasil, ferramentas como o Portal da Transparência, que disponibiliza informações sobre execução orçamentária, contratos e licitações, são complementadas pelo trabalho analítico da IFI. A combinação dessas fontes de informação permite à sociedade – inclusive aos cidadãos leigos – uma compreensão mais acessível e aprofundada da estrutura e das tendências da economia nacional.

Rumo a uma governança fiscal efetiva

O caso do orçamento de 2025 ilustra, de forma contundente, a urgência de reformas estruturantes no sistema de governança fiscal brasileiro. A persistência de atrasos, inconsistências nas projeções e fragilidade normativa demonstra que as normas constitucionais e legais atuais não são suficientes para assegurar a responsabilidade fiscal.

A criação de um direito sancionador orçamentário, associada ao fortalecimento de instituições como a IFI e aos Tribunais de Contas, é fundamental para garantir previsibilidade, eficiência e transparência na execução orçamentária. Essas mudanças devem ser encaradas não apenas como exigências técnicas, mas como compromissos democráticos com o interesse público e a justiça social.

A consolidação de uma governança fiscal efetiva permitirá ao Estado brasileiro cumprir com maior rigor seus objetivos constitucionais, promovendo o desenvolvimento sustentável, a estabilidade econômica e a redução das desigualdades.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!