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25 anos da LRF e sua relação com o teto e o novo arcabouço fiscal

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  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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29 de abril de 2025, 11h20

No próximo domingo, a Lei de Responsabilidade Fiscal completará 25 anos de vigência. Promulgada em 4 de maio de 2000, a Lei Complementar nº 101 alcança seu jubileu de prata, tendo diversos motivos para comemorar, mas também havendo acumulado desafios de larga envergadura neste primeiro quarto de século do terceiro milênio.

O aniversário da LRF nos provoca dúvida razoável acerca de sua ineficácia ou fraqueza, sobretudo se a contrastarmos com o suposto reforço normativo dos seus sucessores “Novo Regime Fiscal”, trazido pela Emenda 95/2016, e “Regime Fiscal Sustentável”, introduzido pela Emenda 126/2022 e pela Lei Complementar nº 200/2023. Tais normas de ajuste fiscal foram desenhadas para serem aplicadas exclusivamente à União e passaram a ser mais conhecidas apenas como, respectivamente, “teto de despesas primárias” (doravante apenas teto) e “novo Arcabouço Fiscal” (doravante apenas NAF).

Aparentemente, a efeméride dos 25 anos da LRF não trará consigo registro significativo de comemorações, porque seu legado prático — verificado nas contas públicas dos diversos entes da federação — é de caos fiscal. Todavia, é notável a resiliência da agenda nuclear inscrita no §1º do seu artigo 1º, que assim define responsabilidade na gestão fiscal como:

“a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar”.

O inegável mal-estar da noção de responsabilidade fiscal na realidade brasileira em que presentemente vivemos decorre da nossa incapacidade de mensurar, executar e fiscalizar o cumprimento tempestivo de metas fiscais e sociais que promovam conjugadamente o equilíbrio intertemporal das contas públicas em face dos objetivos fundamentais fixados constitucionalmente para a nossa república.

Antes de qualquer limitação intelectual ou metodológica, o déficit é, sobretudo, republicano: não distribuímos equitativamente os bônus e os ônus das escolhas públicas entre qual carga de tributos cada qual de nós paga e qual conjunto de despesas governamentais — feitas direta ou indiretamente (a exemplo de subsídios ou incentivos fiscais) — pode ser assumido coletivamente em nosso nome. Por inexistir equacionamento primário acerca da gestão democrática dos escassos recursos públicos, comprometemos o futuro, acirramos desigualdades cavalares, flertamos com a inflação e nos endividamos sem termos parâmetros acerca do custo de oportunidade dessas escolhas.

Spacca

Obviamente, tal cenário abre espaço para diversas tentativas e, muitas das vezes, para consumadas estratégias de apropriação privada do interesse público, porque a legalidade orçamentária, em nosso país, é ainda absolutamente frágil para filtrar, de forma democraticamente legítima, os diversos conflitos de interesse. Há aqui considerável cota de responsabilidade dos órgãos de controle, cuja omissão e/ou conivência ativa permitiram o esvaziamento interpretativo do regime jurídico não só da responsabilidade fiscal, como também das cláusulas constitucionais de financiamento adequado dos direitos sociais.

À pergunta de “como chegamos até aqui?”, Zeina Latif, Marcos de Barros Lisboa e Carlos Alberto de Mello ofereceram, como resposta nuclear, o fato de que deixamos de enfrentar nosso déficit de higidez institucional ao negligenciarmos a busca pelo seu aperfeiçoamento contínuo:

“As conquistas se mostraram frágeis frente à política de ocasião. As regras fiscais foram sistematicamente desrespeitadas e o regime de metas de inflação foi enfraquecido. As contas de diversos governos estaduais foram aprovadas pelos Tribunais de Contas, apesar do virtual estado de insolvência das contas públicas. Houve retrocesso na microeconomia, com intervenções discricionárias do Poder Executivo; ingerência sobre tarifas públicas, bancos públicos e empresas estatais; e distribuição de privilégios para empresas e setores selecionados à margem de uma deliberação democrática informada sobre os custos e benefícios esperados. Enquanto isso, agências reguladoras foram fragilizadas ao ponto de se tornarem pouco relevantes, reduzindo o contraditório, essencial para a democracia. […] Tudo isso sem reação adequada e tempestiva dos Poderes Legislativo e Judiciário. Com poucas exceções, os órgãos de controle foram apáticos, e a oposição, omissa. A crise decorre da ausência do ajuste que a campanha assegurou desnecessário.

Não houve o equilibrado contraponto dos poderes e a independência de diversos setores públicos e privados ao Poder Executivo de plantão. […] Empresas enfrentam crise financeira e muitas fecham, enquanto Brasília se mantém distante do Brasil e refém da política pequena. […] Será que resgataremos a agenda de fortalecimento das instituições democráticas, que garantam a transparência e estimulem o contraditório? A democracia se beneficiaria de regras e procedimentos que estabeleçam princípios para a intervenção pública, em particular a relação com os grupos de interesse, e as suas implicações sobre as novas gerações.”

Nesse contexto, urge que reflitamos o aniversário de 25 anos da LRF exatamente à luz do Teto e do NAF, na medida em que esses acabam por evidenciar e comprovar, em última instância, a debilidade de eficácia normativa daquela.

Trafegar o problema estrutural acerca do complexo equacionamento intertemporal entre metas fiscais e sociais na federação brasileira por meio da falsa promessa de regimes fiscais excepcionais aplicáveis apenas ao Governo Central é apenas e tão somente adiá-lo, o que tende a agravar sua complexidade e seus efeitos danosos.

Paradoxalmente, o jubileu de prata da LRF se vê através do espelho do teto e do NAF não só como tragédia da nossa incompetência em regrar o equilíbrio das contas públicas de forma aderente ao propósito da máxima eficácia dos direitos fundamentais, mas, sobretudo, como uma repetição farsescado déficit democrático e republicano que cerca a matéria.

Para comprovarmos nossa percepção, aqui retomamos a fragilidade das estimativas de impacto das escolhas governamentais sobre a geração de renúncias fiscais e de despesas obrigatórias de caráter continuado, bem como o quase inexistente fluxo de controle acerca desse fato.

Vale a pena comparar, por oportuno, a literalidade do artigo 113 do ADCT, ali inserido pela EC 95, com os artigos 14 e 17 da LRF: enquanto o primeiro dispositivo exige que a proposição legislativa seja acompanhada da estimativa de impacto orçamentário e financeiro (em esforço de coobrigar o legislador), as duas normas da LRF que regem, respectivamente, a renúncia de receita e a despesa obrigatória de caráter continuado abordam o tema em redação formalmente mais detida, mas finalisticamente idêntica ao comando do “Novo Regime Fiscal”. É o que lemos a seguir:

“Art. 113. A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”.

“Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:

I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;

II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.
[…] § 2º Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de que trata o caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso […]”.

“Art. 17. Considera-se obrigatória de caráter continuado a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios.

§1º Os atos que criarem ou aumentarem despesa de que trata o caput deverão ser instruídos com a estimativa prevista no inciso I do art. 16 e demonstrar a origem dos recursos para seu custeio.

§2º Para efeito do atendimento do § 1º, o ato será acompanhado de comprovação de que a despesa criada ou aumentada não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo referido no § 1º do art. 4º, devendo seus efeitos financeiros, nos períodos seguintes, ser compensados pelo aumento permanente de receita ou pela redução permanente de despesa.

[…] §4º A comprovação referida no § 2º, apresentada pelo proponente, conterá as premissas e metodologia de cálculo utilizadas, sem prejuízo do exame de compatibilidade da despesa com as demais normas do plano plurianual e da lei de diretrizes orçamentárias.

§5º A despesa de que trata este artigo não será executada antes da implementação das medidas referidas no § 2º, as quais integrarão o instrumento que a criar ou aumentar[…]”.

 Ora, repetir uma norma já vigente, trazendo-a para o escopo do ADCT, não teve o condão de assegurar automaticamente seu pleno cumprimento. O reiterado descumprimento e a posterior revogação da Emenda 95/2016 já contradisseram a ilusão de que bastaria alterar a estatura normativa do dever de apresentação de estimativas de impacto orçamentário e financeiro para que fosse possível, em tese, controlar os desajustes significativos na concessão de renúncias fiscais.

A história se repete também no que concerne às punições aplicáveis ao gestor que, porventura, venha a se afastar do regime (antigo e/ou novos) de responsabilidade fiscal. Desde 2000, falamos em limites formais de despesas e em controle por meio de estimativas de impacto financeiro-orçamentário, mas não executamos suficientemente as sanções cabíveis pelo seu descumprimento. Sintomático, a esse respeito, é o fato de que a leitura do artigo 109 do ADCT — incorporado pela Emenda 95 — em quase nada inova no seu congênere conjunto de sanções e vedações descrito nos artigos 22 e 23 da LRF.

No âmbito do NAF, as sanções tampouco avançaram estruturalmente, porque as vedações previstas nos artigos 6º-A e 6º-B pressupõem um arranjo prospectivo (a partir de 2025, se e quando houver déficit primário ou, a partir de 2027, se e quando houver redução nas despesas primárias discricionárias) que não obriga imediatamente o Congresso Nacional e o próprio Executivo federal a conterem as renúncias fiscais e as despesas de pessoal:

“Art. 6º-A. Em caso de apuração de déficit primário do Governo Central, nos termos do § 4º do art. 2º desta Lei Complementar, a partir do exercício de 2025, ficam vedadas, no exercício subsequente ao da apuração, e até a constatação de superávit primário anual: (Incluído pela Lei Complementar nº 211, de 2024)

I – a promulgação de lei que conceda, amplie ou prorrogue incentivo ou benefício de natureza tributária; e (Incluído pela Lei Complementar nº 211, de 2024)

II – até 2030, no projeto de lei orçamentária anual e na lei orçamentária anual, a programação de crescimento anual real do montante da despesa de pessoal e de encargos com pessoal de cada um dos Poderes ou órgãos autônomos acima do índice inferior de que trata o § 1º do art. 5º desta Lei Complementar, excluídos os montantes concedidos por força de sentença judicial. (Incluído pela Lei Complementar nº 211, de 2024)

Parágrafo único. Fica autorizado o Poder Executivo federal a não aplicar as vedações de que trata o caput deste artigo na hipótese de ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, nos termos do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal). (Incluído pela Lei Complementar nº 211, de 2024)

Art. 6º-B. A partir do projeto de lei orçamentária de 2027, se verificado que as despesas discricionárias totais tenham redução nominal, na comparação do realizado no exercício anterior com o imediatamente antecedente, ficam vedadas, no exercício de vigência da respectiva lei orçamentária, e até que as despesas discricionárias totais voltem a ter crescimento nominal: (Incluído pela Lei Complementar nº 211, de 2024)

I – a promulgação de lei que conceda, amplie ou prorrogue incentivo ou benefício de natureza tributária; e (Incluído pela Lei Complementar nº 211, de 2024)

II – até 2030, no projeto de lei orçamentária anual e na lei orçamentária anual, a programação de crescimento anual real do montante da despesa de pessoal e de encargos com pessoal de cada um dos Poderes ou órgãos autônomos acima do índice inferior de que trata o § 1º do art. 5º desta Lei Complementar, excluídos os montantes concedidos por força de sentença judicial. (Incluído pela Lei Complementar nº 211, de 2024)”

Único legado

No balanço acerca dos 25 anos da Lei Complementar 101/2000, impera o pessimismo acerca dos necessários avanços institucionais quanto ao sistema de freios e contrapesos capaz de reequilibrar intertemporalmente as contas públicas à luz da Constituição, e não a despeito dela.

Quiçá não seja mesmo possível falarmos em maturidade fiscal, porque, a bem da verdade, somos uma sociedade infantilizada e capturada pelo trato patrimonialista e paternalista dos orçamentos públicos em sua relação com o Estado e na relação desse com o mercado.

O único legado digno de nota nesse aniversário reside na perda das ilusões, o que — com boa vontade e esforço pedagógico — pode vir tendencialmente a ampliar a consciência do quanto somos todos corresponsáveis pela irresponsabilidade fiscal em que as contas públicas se encontram no Brasil.

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