A prisão preventiva como devir sancionatório
29 de abril de 2025, 17h17
Com a implementação da Lei Federal 13.964/19 (pacote anticrime), mais precisamente, no parágrafo 2o, do artigo 313 do Código de Processo Penal, a prisão preventiva com “finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia”, deve ser inadmitida.

Resolvido. A lei pôs fim a décadas de rompimento com a Constituição e fez revigorar a maltratada presunção de inocência. O encarceramento automático, amiúde a “bem do combate ao crime” teve fim com a exigibilidade de requisito e fundamento que extrapolem o próprio existir de uma persecução penal. Está resolvido, certo? O óbvio foi dito? Espere. Lembremos do “interpretar condicionado” do Estado-juiz em que nada é o que parece ser, mesmo as leis mais claras e impositivas suportam um “se”.
Infelizmente, apesar da claridade do texto legal, e passados mais de cinco anos de sua entrada em vigor, o que tem se verificado em inúmeros julgados país afora [1] é o esvaziamento do tipo processual penal, especialmente, no que toca à incidência da Lei 12.850/13 (Lei de Organização Criminosa).
Expressões como “prisão com objetivo de interromper a atuação das facções criminosas”, “prisão justificada na necessidade da garantia da ordem pública ante o envolvimento do crime organizado” e “prisão adequada porque envolve a participação em organização criminosa de alta periculosidade”; têm sido cada dia mais recorrentes nas cortes como fundamento para segregação cautelar.
Violação ao dever de motivação
A violação ao dever de motivação é patente, expressões símiles não atendem ao mandamento do inciso IX, do artigo 93 da Constituição e menos ainda à imposição do artigo 315 do CPP. Fundamentação que se aplica a qualquer caso e utiliza do próprio tipo penal como suficiente ao encarceramento cautelar (raramente provisório) deve(ria) ser tida por imprestável ao processo penal, isso pois, não atinge o dever de fundamentação das decisões judiciais e rompe com o due process of law (artigo 5º, inciso LIV, Constituição).
Com isso, não se quer dizer que tais expressões não possam ser utilizadas na decisão que decreta ou mantem a prisão, o que não pode se permitir é a utilização dessas expressões como suficientes à segregação. Devem ser argumentação-meio, jamais, argumentação-fim.
Isso é dizer, deve-se confrontar essas expressões, por si, genéricas, com outros elementos do caso concreto, elementos que diferenciem o caso em análise de todos os outros casos, fórmulas genéricas podem ser usadas para corroborar a decisão que determina a segregação, enquanto subsidiárias (argumentação-meio) ao fundamento principal que revela o periculum criado (argumentação-fim).
Contemporaneidade do fato
Outro grande problema quando se fala de prisão preventiva em casos de organização criminosa é o afastamento da contemporaneidade do fato. Com crescente jurisprudencial, o entendimento majoritário é de que o artigo 2o da Lei 12.850/13 é crime permanente, portanto, afastado o critério da atualidade dos fatos.

Em nosso sentir, a adoção do critério classificatório do crime (se é permanente, instantâneo, material, formal etc.) não deve servir como fundamentação válida a afastar a disposição legal do § 1º, do artigo 315 do CPP, onde é expresso: “Na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar, o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)”.
Nos parece que a criação jurisprudencial para justificar a prisão por fatos praticados em data longínqua malfere o dispositivo processual penal mencionado, além de romper com o prisma teleológico da medida cautelar. Isso porque, se o fato é antigo e ausentes elementos concretos de razões novas ou contemporâneas de persistência na prática criminosa, não se pode entender por atendido o periculum libertatis.
Lembremo-nos que o periculum não é requisito das medidas cautelares, mas sim seu fundamento, porquanto, no processo penal, a aplicação é diversa da adotada no processo civil quando abordamos as medidas coercitivas pessoais. O periculum in mora de lá (CPC) não deve ser importado para cá (CPP), uma vez que não se trata de perigo criado pelo atraso inerente ao decurso do tempo até que recaia sentença definitiva no processo, e, sim, do perigo que decorre do estado de liberdade do acusado. Portanto, para a sistemática processual penal, não é sobre lapso temporal entre o provimento cautelar e o definitivo, sem embargo, é sobre a situação de perigo criada pela conduta (atual ou contemporânea) do imputado. [2]
Devir sancionatório
Por essas ponderações fica ainda mais evidente a invalidade da fundamentação posta no entendimento de que fatos praticados por organização criminosa denotam mais gravidade e dispensa da atualidade do perigo, isso, pois, decisões assim não atendem ao caso concreto e se prestam a (in)fundamentar qualquer caso, posto que, genéricas e imotivadas.
A fim de exemplificar a tese aqui defendida: se um acusado do cometimento do crime de integrar organização criminosa (artigo 2o da lei 12.850/13) em 2017, tem sua prisão preventiva decretada em 2025, sob argumento de que a prisão é necessária para resguardar a ordem pública porque envolve a participação em organização criminosa de alta periculosidade, ainda que não tenha qualquer elemento de que continuou na organização criminosa ou persistiu em outra, e; outro acusado em semelhante situação, exceto pelo tempo do fato e antecedentes, este praticado em 2024, tem sua prisão preventiva também decretada. Pergunta-se: qual decisão desperta maior segurança quanto à aplicação das normas?
É proporcional que o acusado pelo cometimento de fato ocorrido há quase dez anos, que seguiu sua vida longe de qualquer notícia de prática delituosa, suporte a mesma medida aplicada a alguém que foi acusado de praticar o mesmo delito há menos de um ano e possui antecedentes?
Se a resposta à última pergunta for positiva, encaremos que se trata de aplicação da medida pessoal coercitiva para fins de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal, uma vez que nos dois fatos a semelhança é o delito imputado.
Logo, nada mais adequado que definir a prisão preventiva como devir sancionatório.
Devir, do latim devenire, vir-a-ser, tornar-se [3]; o conceito filosófico que se amolda ao presente estudo, enquanto processo de transformação constante. Da prisão cautelar (situação de perigo criada pela conduta atual ou contemporânea do acusado) que torna-se prisão em caráter de sanção, vez que fundamentada tão somente na conduta imputada.
De modo que, a depender do tipo penal — mormente os da Lei 12.850/13 e Lei 11.343/06 —, as cortes são mais tolerantes às decisões genéricas e desprovidas de elementos do caso concreto.
Uns crimes são maiores
Isso é dizer, há crimes que são mais crimes que outros. Por isso, a análise e enfrentamento às razões lançadas pela acusação surtem mais efeito quando elencadas nas mencionadas leis criminais. Em nosso sentir, como já dito, tais fundamentos tornam a decisão nula por não atender ao dever de fundamentação das decisões judiciais.
Em conclusão, no início deste artigo foi apresentada a Lei Federal 13.964/19, que expressamente disse o óbvio e proibiu a prisão preventiva com “finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia” (§ 2º, 313, CPP). Portanto, não nos parece que a-lei-não-disse-aquilo-que-tinha-que-dizer, do contrário, disse-tudo-aquilo-que-tinha-que-dizer, posto que o que falta é boa vontade e seriedade do julgador ao realizar o enfrentamento ao pleito de prisão cautelar, enquanto magistrados(as) se deixarem seduzir pelo “canto das sereias” (Streck), prisões injustas seguirão sendo decretadas e reautorizadas pelas Cortes país afora.
É necessário romper com o devir sancionatório. Prisão cautelar é excepcional e deve ter deferimento excepcional, o juiz pode lançar mão da grave prisão quando esgotadas as outras medidas diversas (319, CPP), porquanto, a prisão é sempre medida residual.
[1] Nesse sentido: STJ – AgRg no RHC: 198290 SC 2024/0180909-9, Relator.: Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, Data de Julgamento: 12/08/2024, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/08/2024;
TJ-PA – HABEAS CORPUS CRIMINAL: 08184404420238140000 18298676, Relator.: ROMULO JOSE FERREIRA NUNES, Data de Julgamento: 27/02/2024, Seção de Direito Penal.
[2] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 20 Ed. Saraiva Jur. São Paulo. 2023, p. 692.
[3] https://michaelis.uol.com.br/busca?id=XWKq
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