Hamlet, Quixote e os fantasmas de abril: a literatura como ato da Justiça
25 de abril de 2025, 16h20
Abril tem dessas ironias do tempo: Shakespeare e Cervantes deixaram o mundo no mesmo mês, talvez no mesmo dia — 23 de abril de 1616. Coincidência ou capricho cósmico, o fato é que abril nos obriga a tirar o pó dos clássicos, esses espelhos antigos que ainda nos devolvem imagens mais nítidas que o jornal da manhã. Ali estão Hamlet e Dom Quixote: um a filosofar sobre o ser, o outro a guerrear contra o impossível. Ambos, à sua maneira, põem a Justiça em xeque.

Shakespeare fez do teatro um tribunal onde a ética tropeça nos próprios argumentos. A peça dentro da peça — The Mousetrap —, encenada por Hamlet para revelar a consciência do rei, é um artifício teatral para buscar a verdade onde o processo legal falhou. Hamlet finge loucura para falar verdades perigosas, enquanto questiona a corrupção do poder (“Há algo de podre no reino da Dinamarca”, brada Marcellus).
A famosa hesitação, encapsulada na solilóquica dúvida sobre ser ou não ser, é o eco da indecisão ética e jurídica perante o abismo das consequências. No fim, a tragédia de Hamlet é a de uma justiça que chega tarde, após uma cadeia de enganos e mortes, um lembrete de quão complexa é a equação entre ética e ação no mundo do Direito.
Em outra peça, a tragédia de Titus Andronicus, Shakespeare empurra a ideia de justiça até o limite da selvageria. Titus e Tamora, cada qual com sua vingança de fé, entram num duelo de horrores que vai desfigurando o que chamam de justiça. O palco vira matadouro, e o Direito, um pretexto para a barbárie. No banquete final, Titus serve à rainha os próprios filhos, em um gesto tão grotesco quanto simbólico. É o Direito vestido de fúria, sem toga nem limites. Shakespeare, com seu gosto pelo exagero lúcido, nos lembra que até o senso de justiça pode se travestir de erro com pose de acerto: se cada um age conforme seu senso de justiça, quem nos garante que o nosso não é apenas o mais bem vestido dos enganos?
Em Cervantes, Dom Quixote julga a realidade com leis de sonho. Vê liberdade onde há correntes e heroísmo onde há ruína. Em determinada trama, num gesto nobre, Dom Quixote liberta os galeotes, condenados às galés — pois “Deus e a natureza os fizeram livres”. Mas a gratidão não veio no pacote: os libertos o espancam e fogem. O cavaleiro sem juízo colhe pedras onde plantou justiça. A lição é dolorosa e valiosa ao jurista: boa intenção e impulso heroico não bastam, é preciso prever as consequências e compreender a natureza humana para que a justiça não descambe em caos.
Justiça demais
Na Viena de Medida por Medida, Shakespeare encena uma crítica feroz às ilusões do legalismo de profunda ressonância civilizatória. Na peça, o Duque Vincentio, ao perceber o desgaste da autoridade legal em Viena, entrega o poder a Ângelo, um moralista aparentemente incorruptível. Na verdade, o Duque jamais se ausenta por completo: recua para os bastidores, travestido de frade, atento ao teatro moral que ele próprio arquitetou.

Ângelo, personificação do legalismo inflexível, aplica com frieza o rigor da norma e condena Cláudio à morte por um delito de carne: engravidar sua noiva antes do matrimônio, segundo os costumes adormecidos da cidade. A irmã de Cláudio, Isabela, uma noviça virtuosa, intercede em nome do irmão. Encantado por sua beleza, Ângelo propõe um pacto indecente para poupar a vida de Cláudio, revelando sua hipocrisia. A voz de Isabela ecoa o último apelo contra a rigidez da norma: e se o Juiz dos juízes julgasse vosso coração? O teatro se converte em tribunal e a linguagem, em juízo moral. Como Cervantes, Shakespeare desconfia da justiça fundada apenas na punição. Justiça demais pode virar injustiça (summum jus, summa injuria – o máximo direito é a máxima injustiça). Ângelo é desses juízes que parecem justos demais para serem honestos.
Shakespeare contrapõe lei e equidade: o governante que se crê pura encarnação da justiça acaba desmascarado, e somente o retorno do Duque (disfarçado de frade durante grande parte da ação) traz um desfecho equilibrado, combinando punição e perdão. Medida por Medida oferece, assim, uma poderosa reflexão: sem a temperança e a compreensão da condição humana, a lei converte-se em tirania.
Cervantes, além de Dom Quixote, legou-nos no fim da vida Os Trabalhos de Persiles e Sigismunda. Nele, o herói Persiles (um príncipe viajando disfarçado) enfrenta perigos não com espada em punho, mas com a eloquência e a prudência de um orador. Ao longo da jornada, é a persuasão — e não a força — que salva o grupo dos piores apuros. Ali, Cervantes sussurra o que o Direito só aos poucos aprendeu: é mais nobre persuadir que coagir. A alternativa violenta traz consequências nefastas, enquanto o discurso sábio pode apaziguar barbaridades.
Julgar e perdoar
O jurista atento há de notar a ideia de que o Direito é um empreendimento de razão e palavra, não de violência. A lei escrita e arguida nos tribunais substitui a vingança febril, tal como Persiles substitui a espada pela voz. A literatura cervantina converge com a lição shakespeariana: não há justiça sem escuta, sem voz e sem a arte de dizer o justo. Palavra, afinal, é o modo mais humano de se evitar a barbárie.
Ao lermos Shakespeare e Cervantes, descobrimos o que poderíamos ser como juristas e como humanos. Quem conheceu Hamlet sabe reconhecer, no réu consumido pela culpa, o peso da dúvida e da consciência. Quem habitou as páginas de Dom Quixote saberá valorizar os sonhos de justiça, mas sem perder de vista a prudência de Sancho Pança. Quem viu Titus servir vingança à mesa hesitará antes de crer que castigo brutal trará paz. Quem escutou Isabela em Medida por Medida saberá que julgar é também saber perdoar. E quem seguiu Persiles por mares e labirintos entenderá que, entre a espada e a palavra, é o verbo que civiliza, verdadeiras armas da civilização contra a barbárie.
Neste abril de lembranças literárias, palco das despedidas de Cervantes e Shakespeare há mais de quatro séculos, reforcemos o compromisso de manter vivo o diálogo entre as Letras e as leis. Que cada jurista se torne, a seu tempo, um espectador e ator melhor das tragédias e comédias da vida real. Pois, ao fim e ao cabo, o Direito também é poema e teatro: uma construção coletiva de significados, uma encenação contínua em busca da justiça. E, para encená-la com verdade e beleza, nada substitui a inspiração profunda que emana dos clássicos da literatura universal.
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