EMBARGOS CULTURAIS

Os deuses têm sede, de Anatole France

Autor

9 de março de 2025, 8h05

Os deuses têm sede, de Anatole France, é um livro que me leva às memórias da estante de meu pai. Aquela geração que nasceu na década de 1940 (meu pai era de 1941) tinha Anatole France (1844-1924) entre seus autores de cabeceira. Nunca suspeitei de que Os deuses têm sede era um romance histórico. Descobri que era um romance histórico por conta de observação de Mario Vargas Llosa, feita em entrevista em Princeton, nos Estados Unidos. O livro é de 1912. E é um livro que cuida de um assunto extremamente atual.

Trata de um rapaz que atuou como julgador em um dos tribunais da França revolucionária, durante o terror da era jacobina. Os jacobinos estiveram o poder nos anos de 1793 e 1794. Foi uma época de extremo radicalismo. Como juiz, o rapaz via-se como um Deus. E tinha sede de julgar com vingança, e daí o título do livro.

Penso que possa haver juízes que se entendam como deuses, mas não tenho provas. Se eu fosse magistrado talvez me veria dessa forma. Pode ser uma patologia. A vingança, no entanto, não é um atributo da justiça, mas uma armadilha da vaidade — e talvez seja nesse abismo que alguns magistrados poderiam confundir o papel de árbitros com o de deuses implacáveis. Refiro-me à França dos jacobinos, e é desse tempo que trata o livro.

Em Os deuses têm sede, Anatole France sintetiza a onipotência julgadora dita revolucionária em Evaristo Gamelin. Era um jovem pintor, um artista em formação, que ao que consta trabalhava e estudava no ateliê de Jacques-Louis David (1748-1825), pintor oficial da corte francesa à época de Napoleão Bonaparte. Jacques-Louis David é o nome mais expressivo do neoclassicismo francês. Entre seus quadros mais conhecidos pode-se enumerar, O juramento dos Horácios, A morte de Sócrates, A morte de Marat, O juramento do jogo de Péla, Psiquê abandonada, Napoleão cruzando os Alpes.

Na arte, Gamelin era um aprendiz. Politicamente, estava ao lado dos jacobinos, cujas ideias defendia intransigentemente. Indicado por uma influente senhora, fará parte de um importante tribunal que julgava os inimigos da revolução. Isto é, um tribunal implacável com qualquer forma real ou imaginária de oposição. A guilhotina não parava de funcionar.

Pontificavam Marat (o amigo do povo) e Robespierre (o incorruptível). Este último era tido como de honestidade a toda prova. Aquele primeiro o grande defensor do povo, um conceito amplo e indefinível, tanto antes, como hoje em dia.

O romance é fidelíssimo aos acontecimentos históricos. O autor faz menção ao assassinato de Marat, por Charlotte Gorday, uma aristocrata que foi punida com a guilhotina. Marat passava boa parte do tempo em uma banheira, por conta de uma horrível doença de pele, supostamente contraída nos esgotos onde se escondia em outros tempos. O assassinato ocorreu quanto Marat estava na banheira, e é o que se constata em um dos quadros de Jacques-Louis David, acima mencionado.

Os deuses têm sede é um retrato nítido de uma justiça de justiceiros. Exemplifico com uma passagem na qual a personagem central, Gamelin, lamenta que não havia provas em um caso que julgavam. Os juízes mais antigos vociferavam no sentido de que nunca havia provas. Para que provas? Era postulado incontornável que o acusado era um inimigo do Estado. O julgamento era um simulacro. Não havia necessidade de provas. O acusado já estava condenado ainda antes de ser preso. A cena do julgamento era um suplício adicional, cujo auge era a cena final da execução. A multidão exultava!

Os jacobinos exigiam que todos os cidadãos (essa era a nova palavra identificadora das pessoas) portassem “atestados de civismo”. O livre trânsito era condicionado à comprovação de que não se fazia oposição ao regime. Por parte do tribunal o negócio era condenar e executar. Buscavam inimigos secretos e declarados. E buscavam mesmo quem não tinha posição ou opinião definidas. Ninguém escapava.

Catavam falsificadores de dinheiro. Pegavam comerciantes que escondiam alimentos, tirando-os do mercado, na expectativa de alta dos preços. Caçavam agiotas. Vasculhavam a vida de prostitutas, que diziam saudosas do Antigo Regime. Buscavam traidores (de fato, ou fantasiosos). Colocavam na cadeia quem gritasse “Viva o Rei!”. Essa é a Revolução Francesa, pranteada pelos manuais de Direito Constitucional.

Do ponto de vista psicológico a narrativa nos dá conta de como o ódio contra quem não fosse jacobino vai tomando conta de Gamelin. O papel que exercia, “jurado do tribunal” o fazia uma pessoa importante. Como julgador poderoso, via-se como um Deus. Não hesitou em condenar o cunhado, os amigos e a influente senhora que o indicou para o cargo.

Com o Golpe do 9 do Termidor (27 de julho de 1794) os conservadores e a alta burguesia voltaram ao poder e alijaram os jacobinos (radicais). Robespierre discursou à Convenção Nacional em 26 de julho (8 do Termidor). O dia do discurso é narrado no livro. Em seguida, Robespierre foi guilhotinado. Veio a Reação Termidoriana. Os jacobinos passam a se sentar nos bancos dos réus, e de lá vão para a guilhotina.

O autor descreve como Gamelin passou para o outro lado da barra do tribunal. Obcecado, não se arrependia da conduta. Acreditava mesmo que deveria ser executado. Uma espécie de “ética da convicção”, que segundo Max Weber é característica de quem não renuncia a crenças e valores, mesmo quando dramaticamente contrastados com a realidade.

Mario Vargas Llosa tem razão ao afirmar que, muitas vezes, se aprende mais história em um bom romance histórico do que em um manual acadêmico. Os deuses têm sede não apenas reconstrói os eventos do terror jacobino, mas nos insere no espírito de sua época, fazendo-nos sentir a euforia revolucionária e a brutalidade dos tribunais populares.

A narrativa de Anatole France não se limita a relatar fatos — ela os humaniza, expondo o fanatismo, a arbitrariedade e o preço da convicção cega. Em tempos de polarização e discursos inflamados, o livro ressoa como um alerta atemporal: a justiça, quando tomada pelo fervor ideológico, transforma-se em vingança, e os deuses que têm sede hoje podem ser as vítimas de amanhã.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!