O que o dinheiro não compra, de Michael J. Sandel
16 de fevereiro de 2025, 10h07
O que o dinheiro não compra, de Michael J. Sandel, circula no Brasil em publicação da Civilização Brasileira. Uma tradução muito competente, de Clóvis Marques, que se desincumbiu de tarefa difícil. O núcleo do livro é o direito (combinado com a economia e com a moral) e, como sabemos, não há um esperanto jurídico. A tradução direta por dicionários de referência pode dificultar a compreensão do instituto jurídico que se pretende traduzir. O tradutor conseguiu transpor esse obstáculo. Não se percebe aqui a curiosa figura do “tradutor traidor”.
Nas primeiras páginas o leitor pode suspeitar de que tem mais um livro de economia aplicada aos fatos do dia a dia, bem na linha do imperdível Freakonomics, o lado oculto e inesperado de tudo que nos afeta, Stephen Dubner e Steven Levitt. Ou então, o leitor tem a impressão de que o livro lembra as partes introdutórias de textos do selo direito e economia. Há, aparentemente (bem entendido, aparentemente) alguma afiliação com Richard Posner, Gary Becker além da dupla turma de Os custos dos direitos, Stephen Holmes e Cass Sunstein. No Brasil, o trabalho mais interessante é o de Flávio Galdino, Direitos não dão em árvores. Esse livro está esgotado, os poucos exemplares que sobraram são orçados em 200 reais pela Estante Virtual.
Há também nesse livro de Michael J. Sandel algum sabor de livros de teorias da justiça, a exemplo do clássico de John Rawls, e de seu “offspring”, na obra de Amartya Sen. Lembra também livros de filosofia moral e economia, na linha do pai fundador da disciplina, Adam Smith.
Não sou economista, porém me esforço para aprender com minha tutora na disciplina, Alessandra Cardoso, que os primeiros economistas eram muito preocupados com questões morais. Vejamos, por exemplo, A Teoria dos Sentimentos Morais, do já mencionado Adam Smith. Creio que não se pode dissociar a economia de postulados morais de bem-estar coletivo.
A relação entre a economia e os dilemas morais, mediados pelas teorias da justiça, anima o livro aqui comentado. O autor nos pergunta se, de fato, queremos uma sociedade na qual tudo seja precificado. Isto é, onde tudo esteja à venda. Haveria bens (de ordem moral) que o dinheiro não compra, ou que não poderia comprar?
O livro é estruturado em um consistente raciocínio lógico-dedutivo. Trata com realismo alguns assuntos de tradição mais metafísica. O autor desafia clichês e lugares-comuns. Paradoxalmente, um acentuado moralismo também pulveriza o texto com muitos outros clichês e muitos outros lugares-comuns.
O autor expõe os dois lados dos problemas que levanta. Porém, está claro desde o início para qual lado está pendendo. O leitor intui desde a primeira linha por quem os sinos dobram na disputa entre a gramática do dinheiro e a dogmática dos direitos fundamentais. O autor não disfarça sua opinião.
O debate entre justiça e eficiência é o lugar-comum de todas as discussões que o autor apresenta. A justiça, pode-se arriscar definir, é um conceito funcional que opera na pragmática dos juristas. A eficiência é um conceito funcional para os economistas, na dinâmica dessa dificílima técnica de alocar valores e disponibilizar recursos.
Esses conceitos não se confundem. Posso ilustrar com um exemplo de nossa cultura política. Refiro-me à emenda constitucional que inseriu o princípio da eficiência entre os princípios da administração pública, alargando o artigo 37 da Constituição. É o contexto da emenda Bresser (Emenda Constitucional 19/1988). Vale ler a Exposição de Motivos, assinada entre outros por Nelson Jobim, então ministro da Justiça.
O que os economistas entendem por justiça? O que os juristas entendem por eficiência? Essa questão básica, parece-me, não foi enfrentada nas mais de 200 páginas do livro. A questão central do livro é o problema moral da atribuição de preços a bens não que moralmente não poderiam ser precificados.
Posso ilustrar com ações que correm nos tribunais brasileiros nas quais se discute o abandono afetivo. Não há como se precificar o afeto. Então, à míngua de uma decisão corretiva os tribunais precificam o afeto com compensações financeiras. Porém, não se trata de uma ação com o objetivo de se cobrar uma pensão alimentícia, ainda que pragmaticamente desviada para a cobrança por danos morais no contexto das teorias de imputação de responsabilidade. O (a) interessado (a) busca judicialmente afeto. Não há como se precificar o afeto. Confira-se, por exemplo, o decidido pelo STJ no REsp 1.887.697 2019/0290679-8, relatado pela ministra Nancy Andrighi, julgado em 21 de setembro de 2021.
O autor dá um bom número de exemplos de precificação duvidável: venda de posições em quaisquer tipos de filas, uso de cambistas para acesso a consultas médicas, venda de missas papais, remuneração para crianças que tiram boas notas, multas por excesso de velocidade, políticas chinesas de filho único, créditos para emissão de carbono, pagamento para autorização de caça de animais em extinção (rinocerontes), discussão em torno de presentes de aniversário (afinal, presentear familiares e amigos é uma obrigação?), venda de sangue, vendas de apólices de seguro, venda de nome em espaços públicos.
Ilustremos o lado inverso com exemplos brasileiros. O Largo do Batata, em São Paulo, tornar-se-ia o Largo da Batata Ruffles. O Ministério Público pediu esclarecimentos ao Prefeito de São Paulo e a PepsiCo teria desistido do projeto. Lembro-me também do Prefeito de Marília, que cortou com um alicate os fios que alimentam os radares que controlam a velocidade dos veículos na cidade que governa. Ou ainda, o nosso “Programa Pé de Meia”, e toda a polêmica que envolve a Lei n. 14.818/2014, e especialmente o Regulamento, contido no Decreto n. 11.901/2024.
O livro também trata de uma “camarotização” da vida norte-americana. Isto é, quem mais pode pagar pode ocupar os melhores espaços. A medida vai da primeira-classe dos aviões até espaços em eventos esportivos. Não vejo novidade nisso. Na navegação do século XIX já havia camarotes de primeira classe. E nos estádios (no Brasil) há muito tempo há cadeiras-cativas. Esse argumento não me pareceu convincente. No caso dos navios lembro-me da emblemática cena do Titanic, quando, no momento mais angustiante do naufrágio não havia como se comprar um bote salva vidas prioritário ou um bote de primeira classe. O diretor, James Cameron, explorou com sensibilidade essa cena, que problematiza os limites da desigualdade.
Michael J. Sandel propõe uma reflexão provocativa sobre os limites morais dos mercados. O texto é acessível e temperado com miríade de exemplos instigantes. A argumentação desafia a naturalização da lógica da venda de tudo que se possa imaginar. O autor argumenta que há nichos da vida que não poderiam ser reduzidos a transações econômicas. Há um tom marcadamente moralizante na crítica. O dinheiro é explicitado como um permanente fator de corrupção da existência.
O livro é, no entanto, um estimulante desafio de leitura sobre o impacto da mercantilização na vida social. Tenho a impressão de que o autor nos pergunta se estamos, de fato, confortáveis em conviver em uma sociedade na qual tudo estaria à venda. Se tudo tem um preço, talvez o que realmente esteja em jogo seja o valor que atribuímos àquilo que o dinheiro não deveria comprar. Remeto o leitor também a outro livro do autor, Justiça, o que é fazer a coisa certa, que a coluna resenhará oportunamente.
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