Abuso do direito

Litigância predatória distorce conceito de acesso à Justiça

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23 de abril de 2025, 8h15

* Reportagem publicada no Anuário da Justiça São Paulo 2025. A versão impressa está em pré-venda na Livraria ConJur (clique aqui). Acesse a versão digital pelo site do Anuário da Justiça (anuario.conjur.com.br).

_CAPA A-SP 2025 - Anuário da Justiça São Paulo 2025

Capa da nova edição do Anuário da Justiça São Paulo

O aumento na prática da litigância predatória tem preocupado cada vez mais os operadores do sistema de Justiça brasileiro. O fenômeno, caracterizado pelo uso abusivo do Judiciário para conseguir vantagens indevidas, tem causado sérios danos à sociedade, por comprometer a capacidade de prestação jurisdicional e o acesso à Justiça.

Para fazer frente à ameaça, em outubro de 2024, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação 159/2024. “O Poder Judiciário tem uma experiência acumulada na observação de demandas propostas de forma artificial, frívola, sem um real conflito de interesses, ou mesmo de forma fraudulenta, com documentos falsos e sem o conhecimento da parte demandante, para não falar nos casos de assédio processual. A recomendação apenas consolida essa experiência acumulada numa relação exemplificativa de medidas para prevenir, identificar e tratar o problema”, disse à ConJur o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ e relator da norma.

À frente dos centros de inteligência do Poder Judiciário, a conselheira Daniela Madeira afirmou que um dos objetivos do CNJ é criar um sistema para identificar demandas abusivas no âmbito da Plataforma Digital do Poder Judiciário. “Queremos juntar tribunais que já possuem algum sistema de detecção de demandas abusivas para depositarem os códigos-fontes na PDPJ, para serem compartilhados com todos os tribunais”, disse.

Já o Tribunal de Justiça de São Paulo instalou o Núcleo Especializado de Justiça 4.0: Grandes Litigantes – Pessoas Físicas, que julgará ações de abrangência do Foro Central Cível da Capital. O presidente do tribunal, desembargador Torres Garcia, destacou que o núcleo alcançará demandas que impactam, substancialmente, a organização dos serviços judiciais. “Essa é uma iniciativa muito importante no sentido da racionalização da utilização dos recursos orçamentários, da concretização do princípio constitucional do amplo acesso à Justiça e da eficiência na prestação jurisdicional.”

Em São Paulo, a litigância predatória é responsável por cerca de 337 mil novos processos por ano e por um prejuízo anual de cerca de R$ 2,7 bilhões. É o que aponta levantamento feito pelo Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demandas (Numopede). O levantamento levou em conta as demandas consideradas predatórias identificadas entre 2016 e 2021. No período, o prejuízo atingiu R$ 16,7 bilhões. Para chegar a esse valor, o Numopede levou em conta o custo médio do processo, estimado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em R$ 8.270, o que não inclui despesas com perícias técnicas, interposição de recursos ou, indiretamente, contratação de advogados.

“A litigância predatória não se estabelece apenas pelo número de processos, mas pela distorção de institutos processuais e da própria ideia de acesso à Justiça”, diz relatório do estudo do Nupomede. Ligado à Corregedoria de Justiça, o núcleo constatou, ainda, que a litigância predatória contribui para a alta litigiosidade no Brasil. Ao distorcer o conceito de acesso à Justiça, inclusive pelo abuso da gratuidade processual, viabiliza o ajuizamento de ações sem litigiosidade real, conclui o levantamento. “A massificação da conduta serve para potencializar ganhos, a partir de uma aposta de que, havendo vitória em alguns casos, sendo irrelevante o número de casos em que houver derrota, já que institutos como a gratuidade isentam os interessados do custo de ingresso e da responsabilidade pela sucumbência.”

Litígios em massa, por si só, não podem ser considerados predatórios, alerta a vice-presidente da OAB-SP, Daniela Magalhães: “A litigância abusiva ou fraudulenta, que pode ser identificada tanto no polo ativo quanto no polo passivo de uma demanda, podem ser demandas falsas, propostas com documentos falsos ou com desconhecimento das partes; litígios coordenados, que aparentam ser individuais, mas são propostos em vários locais para buscar efeito inibidor de uma conduta; ou um litígio simulado, criado artificialmente para, por exemplo, atacar um concorrente”.

A juíza Maria Rita Rebello, assessora da Corregedoria do TJ-SP, afirma que a litigância predatória pode ser detectada a partir da distribuição atípica de processos, comparando a média de profissionais que atuam no mesmo segmento. Diz, também, que tem características específicas, como a fragmentação de ações e a solicitação de Justiça gratuita. “O uso desses institutos processuais não se dá com o objetivo de proteger a parte, mas de potencializar honorários advocatícios”, diz.

Um levantamento do Nupomede, com foco no assunto de massa “práticas abusivas”, mostrou que, entre janeiro de 2021 e agosto de 2024, monitorou um total de 73.600 casos novos propostos por um universo de 16.437 advogados. Ao analisar um grupo de apenas 37 deles, o que corresponde a 0,22% do total do grupo amostral, constatou-se que eles apresentavam uma média de ajuizamentos muitas vezes maior do que os outros 16.400 advogados (veja o quadro ao lado).

“Em um grupo de 37 advogados, encontramos advogados que tinham média de distribuição mensal superior a 100 casos por mês. Isso ajuda a ilustrar que não é um assunto de massa”, destacou a juíza. Para ela, o problema é a forma de litigar. “Como explicar que um grupo ínfimo de 0,22% dos profissionais que atuam num assunto de massa tem uma média de distribuição tão maior que os outros 99,77% que atuam nesse mesmo assunto?”

Ela contou ainda que, nesse grupo de 37 advogados, há o caso de um único advogado que distribuiu, em um período de dois meses, 37 processos em nome de uma única pessoa física.

Também juíza assessora da Corregedoria, Paula Lopes Gomes destacou que ao longo dos anos o fenômeno da litigância predatória vem se agravando em alta velocidade. “Há um aumento fora do padrão na curva de distribuição de processos novos, que gera um aumento de custos que o Poder Judiciário não tem condição de acompanhar. É muito diferente do que se via nos anos anteriores, onde o aumento de distribuição acompanhava o aumento da população, permitindo um planejamento, para que a estrutura do Judiciário acompanhasse o aumento da demanda”, ressaltou. “Na velocidade que o fenômeno vem acontecendo, em pouco tempo podemos colapsar.”

Os casos chegam ao Nupomede por meio de comunicação dos próprios juízes, por meio do encaminhamento da sentença ou do acórdão, como explica a juíza Paula Lopes. Em seguida, há a instalação de um expediente. Caso o núcleo entenda que aquela comunicação está fundamentada, é pedido à Diretoria de Planejamento do tribunal um estudo para identificar o perfil de demandas do advogado.

Depois dos estudos, é feita uma análise mais precisa, com o ingresso nos autos dos processos. Havendo indicação de litigância predatória, o Nupomede emite comunicados reservados aos juízes, orientando como eles devem proceder em casos parecidos com aquele. “Identificada a situação, orientamos os juízes a marcar audiência para tomar o depoimento pessoal da parte, confirmar os fatos narrados na inicial, exigir documentos mais precisos de contratação.” A juíza explica que a atuação do núcleo é orientativa e que não vincula o juiz na sua forma de proceder ou de decidir. Caso a litigância predatória fique caracterizada, a OAB e o Ministério Público são informados para que tomem as medidas cabíveis.

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça decidiu, em março de 2025, que se há indícios de litigância predatória por meio de ações falsas ou temerárias, o juiz pode exigir do advogado documentos complementares capazes de lastrear minimamente o pedido. A tese vinculante foi aprovada por unanimidade.

O debate se centrou na necessidade de o juiz exercer o poder de cautela para impedir ações temerárias ou abusivas, mas sem que isso se torne um fator que impeça o amplo acesso à Justiça. O voto do ministro Moura Ribeiro ainda abordou uma preocupação manifestada pela advocacia, a de evitar complicações irrazoáveis por magistrados interessados em receber menos processos. Ele apontou que o risco de exigências judiciais excessivas sempre existe, mas deve ser controlado em cada processo.

Para a vice-presidente da OAB-SP, Daniela Magalhães, preocupa que se busque ampliar o poder de um juiz no âmbito do Judiciário e não em amplo debate com o parlamento e a sociedade civil. “Em termos de enfrentamento processual da litigância predatória, entendo que nosso sistema processual já possui ferramentas importantes como a competência territorial, prevenção do juízo, possibilidade de o magistrado determinar a emenda à inicial ou a reunião de processos”, diz.

Já a juíza Maria Rita Rebello destaca que a litigância predatória é um abuso de direito. “O direito de ação não é feito para enriquecer pessoas, e é isso o que a gente vê quando falamos da litigância predatória. Diante dessa prática abusiva, o juiz precisa exercer os poderes que ele tem na lei processual para evitar esse ato ilícito”, afirmou. “Reconhecer que o juiz tem poder para adotar medidas necessárias para evitar esse ato abusivo, me parece que é extremamente relevante para o combate dessa prática”, concluiu.

A OAB-SP e o TJ-SP criaram um grupo de trabalho, em janeiro de 2025, com o objetivo de fazer o acompanhamento sistemático, e a elaboração de fluxos e processos mais eficientes para lidar com a litigância abusiva. “É preciso a cooperação interinstitucional de todos os agentes indispensáveis à administração da Justiça, o investimento em tecnologia e a utilização de inteligência artificial, assim como de ferramentas eficientes de gestão da litigância capazes de afastar os que fraudam e agem de má-fé e de garantir um ambiente de segurança jurídica àqueles que dependem do Poder Judiciário para a solução de seu problema”, disse Daniela Magalhães ao Anuário.

A OAB-SP exerce papel regulatório e fiscalizatório do exercício da profissão de cerca de 398 mil advogados de todo o estado, com competência exclusiva para julgar a conduta no exercício da profissão. “O advogado que promove uma lide fraudulenta poderá, mediante denúncia ao Tribunal de Ética e Disciplina, ser advertido, suspenso e, em última instância, a depender da gravidade do ato, ser expulso dos quadros da Ordem. Sabemos que são pouquíssimos os que agem irregularmente e até hoje não tivemos qualquer caso de expulsão”, afirmou.

O TJ-SP está atento aos casos de litigância predatória e tem extinguido ações relacionadas. Em setembro de 2024, o juiz Pedro Henrique Batista dos Santos, da Vara Única de Auriflama (SP), depois de identificar 13 ações similares, extinguiu os processos movidos por consumidora contra uma instituição financeira. De acordo com os autos, as ações foram propostas ao mesmo tempo no nome da consumidora e tratavam de contratos de empréstimo consignado, com alegação de fraude na contratação e pedidos de devolução em dobro dos valores. Para o juiz, o fracionamento das demandas caracterizou a litigância predatória. Ele entendeu que, apesar de os contratos serem distintos, as demandas poderiam ser reunidas em um processo.

“Não parece razoável supor que o advogado tenha sido procurado no mesmo período de tempo por inúmeras pessoas, das mais variadas cidades, que não a de seu escritório, relatando exatamente os mesmos problemas em relação a instituições financeiras das mais variadas. Crível que a captação ilícita de clientela está embasada em possível uso de dados de instituições financeiras, cuja fonte de obtenção se desconhece, como ocorre nos autos, para distribuir milhares de ações completamente artificiais, o que demanda a integral e devida apuração.”

Em dezembro de 2024, a 2ª Vara Cível de Várzea Paulista (SP) extinguiu ação movida contra um fundo de investimento em que o autor alegava a prescrição das dívidas cobradas e pleiteava a declaração de inexigibilidade do débito. Foram identificadas inconsistências, como a apresentação de uma procuração inválida. O juiz destacou, ainda, que o advogado ajuizou seis ações idênticas em nome do mesmo devedor, protocoladas em um curto período de tempo, caracterizando a litigância abusiva.

Em caso parecido, a 3ª Vara Cível de Taboão da Serra extinguiu ação que discutia a prescrição de uma dívida. O autor alegava desconhecer a origem da dívida e sustentava que não poderia ser cobrado, pois havia transcorrido o prazo de prescrição. A defesa do credor, a cargo de Eckermann, Yaegashi, Santos Sociedade de Advogados, demonstrou que o advogado da parte contrária já havia ajuizado mais de 80 ações idênticas na comarca, com petições genéricas e procurações irregulares. “Essa prática compromete a credibilidade do Judiciário e prejudica tanto os operadores do Direito quanto os jurisdicionados. Decisões como essa demonstram que a Justiça está atenta e disposta a coibir abusos, garantindo um processo justo e legítimo para todas as partes”, afirmou a advogada do escritório, Kelly Pinheiro.

ANUÁRIO DA JUSTIÇA SÃO PAULO 2025
ISSN: 2179244-5
Número de páginas: 284
Versão impressa: R$ 50, pré-venda na Livraria ConJur
Versão digital: disponível gratuitamente, a partir de 22 de abril, no app “Anuário da Justiça” ou pelo site anuario.conjur.com.br

ANUNCIARAM NESTA EDIÇÃO
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