Judiciário espera reduzir custos e acervo de ações com identificação de demandas abusivas
4 de novembro de 2024, 8h51
O Conselho Nacional de Justiça espera diminuir o acervo e os custos do Poder Judiciário com a aprovação da recomendação que contém diretrizes para identificar, prevenir e combater a litigância abusiva.
A proposta, apresentada pelo ministro Luís Roberto Barroso, presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal, e pelo corregedor nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques, foi aprovada no último dia 22.
Juízes que integram os centros de inteligência do Judiciário, órgãos responsáveis por levantar casos de litigância abusiva e propor soluções, além de ministros e conselheiros disseram à revista eletrônica Consultor Jurídico que esperam grande adesão à recomendação e que a medida deve diminuir custos processuais e o acervo de ações.
A recomendação lista uma série de condutas e demandas que podem ser caracterizadas como abusivas, para que juízes e tribunais identifiquem as práticas. Uma vez identificadas, o CNJ sugere a adoção de medidas que vão desde a comunicação do caso à Ordem dos Advogados do Brasil até a requisição de providências à autoridade policial e ao Ministério Público.
Por fim, o documento recomenda aos tribunais a criação de ferramentas de monitoramento de processos para identificar possíveis demandas abusivas. O objetivo é criar uma base de dados integrada entre os órgãos e tribunais do Judiciário para que sejam gerados relatórios periódicos. Com essas informações, serão adotadas novas ações preventivas, de correção e avaliação sobre a litigância abusiva.
O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do CNJ e do Supremo, disse à ConJur que o objetivo da recomendação é identificar indícios de litigância abusiva e respaldar o tratamento desse tema pelo Judiciário.
Segundo ele, apesar de a produtividade do Judiciário ter aumentado nos últimos anos, o acervo também cresceu. Uma das causas, afirma, é a litigância abusiva.
“Essa alta judicialização da vida brasileira tem muitas causas, como a ineficiência do sistema de arrecadação fiscal, a má qualidade da prestação de serviços públicos e privados, a resistência na observância de precedentes qualificados etc. Tenho procurado enfrentar esses problemas em diversas frentes, como a das execuções fiscais, a trabalhista e a previdenciária. A litigância abusiva é apenas mais um fenômeno a ser considerado nesse cenário complexo”, afirmou.
“O Poder Judiciário tem uma experiência acumulada na observação de demandas propostas de forma artificial, frívola, sem um real conflito de interesses, ou mesmo de forma fraudulenta, com documentos falsos e sem o conhecimento da parte demandante, para não falar nos casos de assédio processual. O que a Recomendação faz é apenas consolidar essa experiência acumulada numa relação exemplificativa de medidas para prevenir, identificar e tratar o problema”, concluiu.
A conselheira Daniela Madeira, que está à frente dos centros de inteligência do Poder Judiciário, afirmou que um dos objetivos do CNJ agora é criar um grande sistema para identificar demandas abusivas no âmbito da Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ).
“Queremos juntar tribunais que já possuem algum sistema desenvolvido de detecção de demandas abusivas para trabalharem em cooperação e depositarem os códigos-fontes na PDPJ, para serem compartilhados com todos os tribunais”, disse ela.
Segundo Daniela, os TJs de Pernambuco, Goiás e Maranhão são alguns que já possuem sistemas para detectar demandas abusivas.
Litigância predatória
Um dos problemas que a recomendação busca combater é a chamada litigância predatória, demandas muitas vezes ajuizadas em massa, em diferentes comarcas, com petições quase sempre idênticas, e geralmente de causas consumeristas.
O custo para o Judiciário é alto: só em São Paulo, a litigância predatória foi responsável por uma média de 337 mil novos processos por ano, entre 2016 e 2021, e gerou um prejuízo anual de cerca de R$ 2,7 bilhões aos cofres públicos. Considerado todo o período, o dano foi de R$ 16,7 bilhões.
Para conter essas demandas, um dos anexos da recomendação lista condutas que os juízes e tribunais devem observar para identificar possíveis casos de litigância predatória, como, por exemplo, pedidos habituais e padronizados de dispensa de audiência preliminar ou de conciliação e a desistência de ações ou manifestação de renúncia após o indeferimento de medidas liminares.
“Há diversos casos de litigância artificialmente criada, em que se inventam demandas para buscar enriquecimento sem causa por meio do sistema de Justiça. Isso por vezes é feito por meio de pedidos padronizados, com solicitações genéricas, em que a pessoa diz que não fez um determinado empréstimo, que não contratou um cartão ou que simplesmente não lembra se contratou. Narrações assim são repetidas em centenas ou mesmo milhares de casos”, exemplifica a juíza Mônica Silveira Vieira, integrante do Grupo de Pesquisa da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados sobre Prevenção de Conflitos, Precedentes, Impactos das Decisões Judiciais e Centros de Inteligência
Segundo explica a julgadora, por vezes os pedidos não apontam dados básicos, como o valor do empréstimo que não teria sido contratado ou a instituição bancária responsável pelo empréstimo, entre outros.
“São pedidos que não esclarecem nada sobre o processo. E isso mostra claramente quando é uma demanda predatória. A demanda que representa litigância abusiva vêm com narrações padronizadas, apesar de se tratar de lides que exigiriam discussão individualizada. E é muito comum que dispensem audiência preliminar e de conciliação, para que as partes não tenham de se apresentar, nem os advogados.”
Sobre a desistência ou renúncia após o indeferimento de liminares, a juíza diz que é muito comum que advogados peçam a extinção dos processos quando acham que vão perder a causa. Em seguida, segundo ela, normalmente o mesmo advogado leva o mesmo pedido a outra vara.
“Na minha comarca há muitos casos em que se pede a extinção quando solicito mais detalhes sobre o caso. O banco prova que houve a contratação de um empréstimo e o advogado apresenta a desistência ou a renúncia ao direito alegado na inicial, para tentar levar o processo à extinção e encerrar aquele problema que ele criou.”
Fraude cai, mas processos aumentam
Vicente de Chiara, diretor jurídico da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), fez um levantamento sobre os casos de litigância predatória contra bancos. Os dados foram apresentados na última quinta-feira (31/10), durante evento do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em Brasília.
Segundo ele, os maiores bancos brasileiros identificaram apenas 0,03% de contratos de empréstimo fraudados em 2023. Ainda assim, há um número enorme de ações no Judiciário em que pessoas afirmam que não solicitaram serviços ou empréstimos.
“Você tem as fraudes constatadas caindo, o número de reclamações em órgãos administrativos caindo, e o número de ações aumentando.”
Em um levantamento feito nas oito maiores instituições financeiras do país, Chiara diz ter identificado cerca de 300 mil ações predatórias. Segundo ele, todos os casos envolvem apenas dez advogados, sendo que um deles, sozinho, foi responsável por 70 mil ações contra bancos.
“Ninguém está tolhendo a liberdade de advogados atuarem e defenderem seus clientes, mas estamos vendo que há uma gama muito pequena de profissionais e que a atuação beira a ilicitude.”
De acordo com Chiara, em 99% dos casos identificados como abusivos as petições são genéricas e têm pedido de dispensa de audiência, e cerca de 90% delas foram julgadas improcedentes. Ainda assim, os bancos tiveram gastos de aproximadamente R$ 500 milhões com esses processos.
Também no evento do IDP, o ministro Mauro Campbell Marques contou que muitas vezes os autores dos pedidos nem sabem que ingressaram no Judiciário.
Ele recordou o caso de um juiz que conseguiu extinguir metade das ações em sua vara a partir de um gesto simples: chamar os autores, que, em muitos dos casos, deram procuração a advogados sem saber.
“Foram chamados velhinhos e velhinhas que tinham colocado o polegar direito nas petições para que fossem à vara. E eles vinham chorando porque não tinham noção do que se tratava o processo. O polegar, usado nas procurações, nem era deles. Eles não conheciam o advogado, não eram parte”, relatou o magistrado.
“O que temos de ter em conta é que essas são demandas que abalam a estrutura do Judiciário. O profissional entra com cem, 200 ações em vários juízos, que vêm negando as liminares. Quando ele consegue uma liminar, a rede de expectativa desses advogados direciona milhares de outras ações para aquele foro (que concedeu a liminar).”
Tem solução?
A recomendação do CNJ lista uma série de medidas quem devem ser adotadas diante de casos concretos de litigância abusiva. Entre elas estão a adoção de protocolos de análise das petições iniciais; a promoção de audiências preliminares; o uso de métodos consensuais de conflitos; e a notificação da parte para a complementação de documentos.
Além disso, o conselho recomenda a comunicação do caso à OAB para que sejam identificados indícios de captação indevida de clientela ou de litigância abusiva, e ao Ministério Público e às autoridades policiais caso seja identificada a possível prática de crimes.
Airton Pinheiro de Castro, juiz e assessor do corregedor-geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo, acredita que as medidas vão aprimorar o funcionamento do Judiciário.
“O principal ponto da recomendação é a sinalização pública, o reconhecimento da existência desse fenômeno, do abuso do processo, em suas diversas formas de manifestação, da necessidade de observar parâmetros para a sua identificação, tratamento e prevenção, tendo em vista o custo social de tais práticas, que podem conduzir ao colapso do sistema judicial e já comprometem seriamente o predicado da eficiência do Poder Judiciário.”
Ele diz não ter dúvidas de que a recomendação encontrará imediata adesão dos membros do Judiciário: “O impacto esperado é o aprimoramento do Judiciário sob a ótica da construção de soluções de equilíbrio entre a garantia do acesso à Justiça e a contenção do abuso. Somente assim teremos como preservar a eficiência do Poder Judiciário”.
A juíza Mônica Vieira concorda. Para ela, deve ser considerado positivo por si só o fato de o CNJ reconhecer oficialmente a existência dos fenômenos da litigância abusiva e da litigância predatória.
“Haverá uma adesão grande por magistrados e tribunais, porque não é uma imposição de cima para baixo, mas há o aproveitamento de tudo o que foi construído dialogicamente ao longo dos anos em eventos, debates, inclusive quanto à construção dos próprios centros de inteligência.”
Já o Conselho Federal da OAB criticou a medida em nota enviada à ConJur. A entidade afirma que a recomendação foi feita sem a participação da advocacia e que ela pode afetar o exercício da profissão e “o acesso à Justiça, particularmente para a população vulnerável”.
“A Ordem entende que a medida poderá resultar em interpretações generalizadas e restritivas, dificultando o exercício de direitos legítimos ao impor exigências documentais excessivas, ignorando o princípio de boa-fé e comprometendo o acesso ao Judiciário. A OAB já combate rigorosamente a litigância abusiva, punindo desvios no exercício profissional, e atuará para assegurar o equilíbrio entre coibir abusos e garantir o direito de defesa e o acesso à Justiça, preservando os direitos de todos os cidadãos”, afirmou a OAB.
Problema nacional
O tema é complexo e está em pauta no Superior Tribunal de Justiça. E a resolução do problema vai depender dos limites que o juiz, a quem a lei dá poderes para disciplinar a marcha processual, deve respeitar quando identificar indícios de abuso do direito de ação.
A possibilidade de o magistrado obrigar as partes a apresentar novos documentos capazes de lastrear minimamente o pedido feito em demandas repetitivas e massificadas está em discussão no Tema 1.198 dos recursos repetitivos, que será julgado pela 2ª Seção do STJ.
O recurso ataca um incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) julgado pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, que fixou a tese segundo a qual o juiz pode exigir a apresentação dos novos documentos que entender pertinentes.
Em Mato Grosso do Sul, assim como em São Paulo, foi identificado o mesmo itinerário da litigância predatória: os advogados entram com reclamações no site consumidor.gov e ajuízam processos em nome de pessoas vulneráveis, com procurações outorgadas por instrumento particular.
Segundo estudo do Centro de Inteligência do TJ-MS, há diversos casos de litigância predatória sobre, por exemplo, empréstimos consignados. As demandas, em sua grande maioria, tramitam em comarcas específicas e são patrocinadas por um pequeno grupo de advogados e escritórios.
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