Opinião

Da interferência do Judiciário em concursos públicos

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9 de abril de 2025, 6h37

A judicialização das provas de concurso público é um fenômeno crescente no Brasil e desperta importantes questões jurídicas, organizacionais e operacionais. O processo de seleção para cargos públicos, que envolve milhões de candidatos e uma estrutura administrativa complexa, tem sido cada vez mais afetado por demandas judiciais.

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Embora seja legítimo buscar a reparação de direitos em caso de ilegalidades, o aumento das ações judiciais que envolvem a revisão das decisões das bancas examinadoras está gerando sobrecarga e comprometendo a efetividade do próprio processo seletivo. Neste contexto, a atuação do Judiciário, por vezes, tem extrapolado os limites da sua função, interferindo de forma indevida nas etapas do concurso e prejudicando a organização do certame.

Atuação do Judiciário e limites da interferência

O papel do Poder Judiciário em relação aos concursos públicos deve ser, primordialmente, o de garantir a legalidade e a regularidade do processo seletivo, respeitando os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade administrativa e eficiência. Porém, cada vez mais, os tribunais estão sendo chamados a intervir no mérito das decisões das bancas examinadoras, seja em razão de alegações de erro na correção das provas, seja devido à revisão de questões ou à reanálise de recursos já julgados.

Essa intervenção judicial tem ocorrido, muitas vezes, por meio de mandado de segurança, no qual candidatos buscam a anulação de decisões que os prejudicaram durante o concurso, inclusive obrigando as bancas a reconsiderarem recursos já analisados, criando um ciclo interminável de novas avaliações e atendimentos repetidos às mesmas questões. Em diversos casos, as bancas são compelidas a reavaliar provas ou refazer análises técnicas que já foram feitas anteriormente, gerando sobrecarga de trabalho, retrabalho e atrasos, e, consequentemente, comprometendo o cumprimento do cronograma do certame.

O problema se agrava quando as decisões judiciais, em muitas ocasiões, são tomadas sem a devida compreensão do contexto técnico das provas e sem uma análise aprofundada do conteúdo das questões. Esse cenário de excessiva judicialização acarreta uma interferência indevida nas etapas mais sensíveis do certame, como avaliação de provas, e até mesmo a posse dos candidatos aprovados, além de gerar um verdadeiro caos administrativo.

Atuação judicial e seus limites

A jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal (Tema 485) reconhece que o Judiciário não pode substituir a banca para revisar o conteúdo das provas, salvo em hipóteses de flagrante ilegalidade, inconstitucionalidade, erro material inequívoco ou violação a direitos fundamentais. A função judicial, nesse contexto, deve ater-se ao controle de legalidade, vedada a incursão no juízo de conveniência e oportunidade das decisões técnicas.

Ocorre, contudo, que a utilização de ações como o mandado de segurança cível com pedidos de obrigação de fazer tem promovido, na prática, um casuísmo decisório, já que tais medidas beneficiam apenas o impetrante, sem produzir efeito coletivo. Tal prática, além de gerar insegurança jurídica, fere o princípio da isonomia consagrado no caput do artigo 5º da Constituição, na medida em que somente uma minoria — aquela com conhecimento jurídico ou acesso à assessoria especializada — consegue judicializar a controvérsia, obtendo decisões favoráveis que não são estendidas aos demais candidatos em idêntica situação fática e jurídica.

Quando uma decisão judicial exige, por exemplo, uma nova correção individualizada com critérios não previstos, ou a reinclusão de um candidato em etapa posterior, cria-se um descompasso. Isso obriga a banca a procedimentos paralelos e excepcionais, que interferem na isonomia entre os demais candidatos.

Esse tipo de intervenção quebra a homogeneidade do certame e acarreta insegurança jurídica, uma vez que o resultado final passa a depender da judicialização e não apenas do desempenho técnico do candidato.

Caso do CNU

Recentemente, o caso do CNU — ou CPNU (Concurso Público Nacional Unificado) — exemplificou de maneira clara o que pode ser entendido como materialidade forçosa  nas pretensões infundadas de um grupo de candidatos. No caso em questão, os candidatos alegaram que haviam sido injustamente eliminados do concurso por conta de erros na marcação do número do gabarito ou por não terem transcrito corretamente as frases na prova.

Esses candidatos entraram com recursos, com base em uma superinterpretação das normas editalícias e enfatizadas na prova, argumentando que as falhas não deveriam ter levado à eliminação, e que a banca examinadora agiu de maneira injusta, mesmo os candidatos, conforme inúmeros relatos, como no site reddit.com, afirmando que não se atentaram às instruções devido tão somente às suas distrações e direcionamento interpretativo das regras que não o seu.

Contudo, ao se inscreverem, os candidatos concordaram expressamente com todas as regras do concurso, inclusive sobre marcação e transcrição das respostas. O edital, com força contratual, impõe obrigações cujo descumprimento acarreta consequências. Recorrer ao Judiciário sem respaldo nas normas, especialmente por falhas materiais ou de transcrição, revela má-fé e tentativa de distorcer regras claras por interpretações excessivamente subjetivas.

Sobrecarga nas bancas examinadoras

Outro aspecto que merece destaque é a sobrecarga de trabalho das bancas examinadoras, que precisam lidar com análises técnicas exaustivas de provas já avaliadas e recursos previamente julgados.

O efeito disso não é apenas a perda de eficiência e o atraso no processo seletivo, mas também o desestímulo para as bancas mais conceituadas e experientes, que, mesmo com resistência, se veem obrigadas a ceder às solicitações de reavaliação feitas pelo Judiciário. Muitas dessas bancas, compostas por especialistas em suas áreas, são constantemente obrigadas a atender reivindicações infundadas, mesmo quando as suas decisões estão claramente fundamentadas na legalidade e na clareza do edital.

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Além disso, a obrigatoriedade de revisão das avaliações e das questões das provas, muitas vezes sem motivos sólidos, gera um efeito cascata de revisões intermináveis. Isso implica em excesso de recursos e em uma cultura de litígios que visa corrigir, de forma excessiva, aspectos técnicos ou formais do concurso, em vez de buscar a verdadeira eficiência e imparcialidade na seleção dos candidatos.

Em concursos de grande porte, com milhões de candidatos, a repetição incessante de análises de recursos e de provas, motivadas por uma excessiva judicialização, acaba resultando em atrasos nas fases subsequentes, como a homologação, a nomeação e a posse dos candidatos aprovados. Isso não apenas prejudica os candidatos, mas também compromete a gestão pública, que vê seus processos seletivos paralisados ou sobrecarregados.

Defesa da banca examinadora

Outro ponto crítico é a falta de proteção das bancas examinadoras, que são frequentemente colocadas em uma posição vulnerável diante de decisões judiciais imediatas resultando numa espécie de “concurso individual”, determinando às bancas que procedam novamente com as etapas já superadas somente para um candidato, sem que aquelas tenham a oportunidade de se defender de forma plena. Enquanto as bancas não têm garantido a ampla defesa e o contraditório, que são assegurados aos candidatos no processo judicial, elas se veem diante de uma obrigação de acatar decisões que muitas vezes vão contra o seu próprio julgamento técnico e especializado.

Nesse sentido, ocorre um desequilíbrio processual quando as bancas, apesar de serem partes diretamente afetadas, não têm oportunidade de manifestação no bojo das ações, em desrespeito aos incisos LIV e LV do artigo 5º da Constituição. Quando uma decisão judicial obriga uma banca a reavaliar ou alterar sua análise sem um embasamento legal consistente, está sendo desrespeitado o direito da banca de atuar dentro da autonomia técnica que lhe é conferida pela própria Constituição e pela lei de licitações.

Essa assimetria, sem o embargo da previsão constitucional, prejudica a equidade do processo e subverte a legitimidade do trabalho da banca, que, muitas vezes, é mais especializada e qualificada do que a própria análise feita pelo Judiciário em muitos casos.

Observância do edital

O editamento do edital é o momento no qual se estabelece a relação entre o candidato e a Administração Pública. A partir da inscrição no concurso, o candidato consente tacitamente com as condições estabelecidas, especialmente com relação às regras de avaliação e os procedimentos de execução do concurso. Caso o candidato tenha alguma dúvida quanto a alguma exigência do edital, sua responsabilidade é buscar esclarecimentos, seja por meio dos canais de atendimento ao candidato ou impugnando o edital dentro do prazo estipulado. A ausência de impugnação do edital configura uma presunção de concordância com as regras nele descritas, conforme entendimento pacífico na jurisprudência.

Além disso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em diversos julgados, tem reafirmado o entendimento de que não cabe ao Judiciário substituir a banca examinadora para revisar a correção das provas ou as questões que, de forma legítima, foram elaboradas de acordo com o conteúdo programático do concurso. O Tema 485 do STF é claro ao afirmar que o Judiciário não pode reexaminar o conteúdo das provas, a não ser em casos de ilegalidade ou inconstitucionalidade, ou ainda em situações excepcionais em que haja violação de direitos fundamentais do candidato, como no caso de fraude ou erro material flagrante.

Subjetivismo probatório

Tem-se verificado que candidatos, insatisfeitos com sua pontuação, buscam inovar nas normas do edital, alegando genericamente violação de princípios constitucionais, especialmente quanto aos critérios de avaliação de provas discursivas. Questionam rubricas previamente definidas pela banca, como coesão, coerência e argumentação, tentando converter sua discordância em ilegalidade. Contudo, não é legítimo que o candidato, após aderir expressamente aos termos do edital, busque modificá-los com interpretações subjetivas de princípios como isonomia e transparência.

Além disso, é comum que impugnações se concentrem em ataques à banca examinadora, sem apresentar elementos técnicos que justifiquem eventual majoração da nota, o que configura tentativa de subversão da boa-fé objetiva e da moralidade administrativa, previstas no artigo 37 da Constituição.

Outro aspecto preocupante é o acolhimento de demandas sem a devida demonstração probatória por parte do impetrante. Muitas ações são fundamentadas unicamente em alegações subjetivas, sem documentos comprobatórios robustos, limitando-se à arguição genérica de injustiça ou erro. Mesmo assim, decisões favoráveis são proferidas, gerando precedentes perigosos e incentivando a judicialização infundada. Esse cenário não apenas compromete o andamento regular do certame — atrasando etapas como homologação, nomeação e posse — como também desestimula a participação de bancas conceituadas, que passam a evitar parcerias com a Administração em razão do risco reputacional e da insegurança jurídica.

Encargos excessivos às bancas

A adoção de soluções por parte de alguns profissionais do setor jurídico — especialmente aqueles interessados em facilitar o próprio trabalho como advogados ou membros do Judiciário — em vez de contribuir para a racionalização dos processos, acaba por onerar ainda mais as bancas avaliadoras.

Um exemplo disso é a exigência de que a instituição responsável pela realização do concurso informe ao juízo, em cada caso individual, com quem se encontra determinada peça do processo ou quais outros processos estariam vinculados ao mesmo certame.

Embora essas exigências facilitem a organização das demandas para advogados de candidatos e para os magistrados, impõem um encargo desproporcional às instituições privadas que atuam em regime de delegação da função pública, obrigando-as a adotar medidas administrativas complexas e onerosas para atender às requisições, o que naturalmente extrapola as cláusulas contratuais e demandas licitatórios obrigando as bancas a inserirem nos seus procedimentos internos novas exigências para além daquelas que surgem constantemente e distorcem cada vez mais seu caráter seletivo e delegativo vinculado à administração pública.

Necessidade de limitação da judicialização

A judicialização deve ser exceção, não regra. A administração pública precisa garantir a legalidade, transparência e eficiência do certame; os candidatos, por sua vez, devem agir com responsabilidade e boa-fé, evitando recorrer ao Judiciário como meio de alterar resultados legítimos. O Judiciário, por fim, deve resguardar a isonomia entre os candidatos e o equilíbrio do processo seletivo, sem se tornar instrumento para satisfazer interesses individuais em detrimento da coletividade.

A excessiva judicialização, além de causar sobrecarga e retrabalho nas bancas examinadoras, compromete o andamento do certame e gera prejuízos não apenas para a administração pública, mas também para os próprios candidatos, que podem ver seus processos de nomeação e posse indefinidos por causa de decisões judiciais excessivas. É preciso que o Judiciário respeite os limites de sua atuação, preservando a autonomia técnica das bancas e garantindo a eficiência e celeridade dos processos seletivos, sem ceder à pressão de demandas infundadas e abusivas. O candidato, por sua vez, deve ser consciente da responsabilidade de se atentar às regras do concurso desde a inscrição, compreendendo que a adesão ao edital implica na aceitação dos termos nele descritos.

O que se espera, na verdade, é que o Judiciário desenvolva e utilize meios próprios, sistematizados e eficientes, que lhe possibilitem o correto entendimento e julgamento dos casos contenciosos, sem transferir responsabilidades que extrapolam a natureza da atividade fim das bancas. A imposição de obrigações acessórias sem fundamento técnico revela, além da falta de compreensão sobre o funcionamento da avaliação pública, um desprezo pelas diretrizes da própria Corte Suprema, que reiteradamente tem reafirmado o caráter técnico das decisões das bancas e a necessidade de deferência a esse juízo especializado. As chamadas “soluções” sugeridas por certos operadores do Direito, portanto, ao invés de promoverem justiça, apenas escancaram a fragilidade das decisões judiciais tomadas de forma indiscriminada e desprovidas de sustentação teórico-prática.

Somente com esse equilíbrio será possível preservar a meritocracia, a segurança jurídica e a legitimidade dos concursos públicos no Brasil.

 


Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

STF. Tema 485 – Concurso público – Controle jurisdicional. Recurso Extraordinário (RE) 632.853.

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