Opinião

A polêmica marcação do 'tipo de gabarito' no Concurso Nacional Unificado

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2 de novembro de 2024, 11h19

Indubitável a grande relevância do Concurso Público Nacional Unificado (CPNU), considerado o maior processo seletivo para o serviço público já visto no Brasil, com mais de 2,1 milhões de inscritos, que, segundo as políticas de inclusão e de cotas, prometeram transformar o cenário do serviço público.

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Concurso, prova escrita

Todavia, ocorreram falhas que, segundo denúncias de candidatos nas várias regiões onde realizado o concurso, entre elas, a falta de isonomia, a  ausência de treinamento e orientações erradas por parte dos fiscais da prova e um erro no edital que causou a eliminação de um grande percentual de candidatos.

Alguns candidatos que se sentiram prejudicados ingressaram na Justiça para corrigir a eliminação por total impossibilidade de cumprimento, pelo candidato do item 8.12.1, que prevê:

“8.12.1 – O candidato deverá marcar o tipo de prova que consta na capa da sua prova nos respectivos Cartões-Resposta, sob pena de eliminação.”

Decisões diametralmente opostas para a mesma situação nos levam a refletir sobre o estado de insegurança jurídica que o caso em tela constitui.

É um verdadeiro dilema que, conforme o professor Eros Roberto Grau ensina em “Por que tenho medo dos juízes”, está também no ajuste do direito à vida real. A ética da legalidade não aceita a subjetividade do julgador. O Judiciário pode tornar-se um produtor de insegurança, na medida em que se afasta de uma prudência que lhe deve ser implícita, dada a inviabilidade fática de uma única solução correta para determinado caso. Ficamos reféns da subjetividade do julgador.

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Para reforçar o estado de insegurança jurídica a que se refere Eros Grau, neste artigo trazemos duas decisões opostas inteiramente para uma mesma situação sendo uma decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região e outra proferida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a qual consideramos a mais acertada e que serve de paradigma para a solução do caso concreto.

A exemplar atuação do MPF no Tocantins

Importa trazer à baila recente determinação do Ministério Público Federal no Tocantins, no  sentido de que seja estabelecida segurança jurídica na interpretação do edital  do CNU, sob pena de afetar um quantitativo considerável de candidatos.

O procurador da República Humberto de Aguiar Junior, do 3º Ofício da Procuradoria da República no Tocantins, emitiu uma recomendação à organização do CNU e à Fundação Cesgranrio, não acatada pelos responsáveis pela aplicação do concurso.

Esse cenário resultará em intensa judicialização que poderá comprometer todo o certame, além de ferir a isonomia e ocasionar intranquilidade e danos emocionais aos candidatos. À administração se impõe o dever de prevenir litígios, o que se alcançará adotando-se o entendimento que mais se coadune ao que dispõe o edital. Nesse cenário, recomenda o MPF:

“II – expeça-se recomendação ao Grupo Técnico Operacional  Executivo do CPNU e à Banca Cesgranrio a fim de que observem  estritamente o disposto no item 9, alínea “f”, das instruções do  caderno de prova, c/c com o item 8.17, alínea “i” do edital (todos os  blocos) do Concurso Público Nacional Unificado, com vistas a que  sejam eliminados candidatos que, cumulativamente, não tenham  assinalado o tipo de gabarito e transcrito a frase no Cartão

Resposta, fixando-se prazo de 10 (dez) dias para resposta. (doc. Anexo)”

(MPF. Procuradoria da República no Tocantins. Procedimento nº 1.36.000.000694/2024-52)

Como a Banca Cesgranrio não acatou a recomendação do MPF no Tocantins, este ingressou com uma ação civil pública contra a Fundação Cesgranrio, a qual tramita no Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

Decisões diametralmente opostas para a mesma situação

Em ambas as situações postas a seguir os candidatos aduzem que  havia no campo superior esquerdo o tipo de prova com um número e no campo superior direito o campo tipo de gabarito com um número diferente, o que gerou dúvidas nos candidatos que optaram por não marcar, sob risco de ser penalizado com a eliminação conforme prevê o edital.

“Poder Judiciário

JUSTIÇA FEDERAL

Seção Judiciária do Distrito Federal

9ª Vara Federal Cível da SJDF

PROCESSO: 1074747-78.2024.4.01.3400

CLASSE: MANDADO DE SEGURANÇA CÍVEL (120)
(…)

POLO PASSIVO: FUNDAÇÃO CESGRANRIO e outros

(…)

“No presente caso, a parte impetrante requer a concessão da liminar para ter sua prova corrigida.

Sobre as normas e procedimentos relativos à realização das provas assim constou do EDITAL N.º 04/2024 – CONCURSO PÚBLICO NACIONAL UNIFICADO, 10 DE JANEIRO DE 2024 (destaque nosso):

“8.12 – O candidato deverá assinalar as respostas na folha própria (Cartão-Resposta) durante o tempo de realização das provas e assinar no espaço devido. O preenchimento do Cartão-Resposta será de inteira responsabilidade do candidato, que deverá proceder em conformidade com as instruções específicas contidas neste Edital e na capa das provas, salvo em caso de deficiência impeditiva de realização da providência pelo próprio candidato. Em hipótese alguma haverá substituição do Cartão Resposta por motivo de erro do candidato.

8.12.1 – O candidato deverá marcar o tipo de prova que consta na capa da sua prova nos respectivos Cartões-Resposta, sob pena de eliminação.

(…)

Verifica-se que o edital previu expressamente que “O preenchimento do Cartão-Resposta será de inteira responsabilidade do candidato, que deverá proceder em conformidade com as instruções específicas contidas neste Edital e na capa das provas” e que “O candidato deverá marcar o tipo de prova que consta na capa da sua prova nos respectivos Cartões-Resposta, sob pena de eliminação”.

Do mesmo modo, o caderno de prova juntado pelo impetrante (IDs 2149041444) traz instruções claras e destacadas acerca da necessidade de preenchimento correto do cartão de resposta, que é de responsabilidade exclusiva do candidato ao concurso público.

Assim, não pode a parte requerente atribuir à banca examinadora ou aos fiscais a responsabilidade pela sua inobservância das regras editalícias e das orientações da capa do caderno de provas.

Nesse contexto em que a administração agiu conforme as disposições postas no edital, não resta configurada ilegalidade patente que autorize o Judiciário a imiscuir-se no mérito do ato administrativo em debate, sob pena de violação do princípio da separação dos poderes.

(…)

Ante o exposto, indefiro o pedido liminar.

(…)

Assinado e datado eletronicamente

Assinado eletronicamente por: JOAO MOREIRA PESSOA DE AZAMBUJA
25/09/2024 14:42:52
https://pje1g.trf1.jus.br:443/consultapublica/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam
ID do documento:

Poder Judiciário

JUSTIÇA FEDERAL

Seção Judiciária do Rio Grande do Sul

6a Vara Federal de Porto Alegre

PROCEDIMENTO COMUM No 5048613-17.2024.4.04.7100/RS

(…)

RÉU: UNIÃO – ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO

RÉU: FUNDAÇÃO CESGRANRIO

 (…)

Decido.

(…)

  1. Tutela Provisória de Urgência

(…)

Autora se insurge contra ato da banca examinadora, que a excluiu do Concurso Público Nacional Unificado por não ter assinalado o campo “tipo de prova” no cartão de respostas.

No ponto importante, vale ressaltar que Administração Pública, ao realizar concursos, deve sempre pautar-se pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Nesse contexto, o ato de eliminação de um candidato deve ser adequado e proporcional à irregularidade supostamente cometida. No caso em análise, a exclusão da candidata por não assinalar o tipo de prova no cartão de respostas, sem qualquer prejuízo concreto à identificação de sua prova, não se revela razoável. A penalidade aplicada, de exclusão do certame, parece desproporcional à falha apontada.

Ainda que a autora não tenha preenchido o campo específico de identificação do tipo de prova no gabarito, com um de seus elementos, essa exigência tem como única finalidade a identificação da correspondência entre o candidato e a prova realizada.

No entanto, como a candidata escreveu a frase “vidas secas” (evento 1, OUT19) em seu cartão de respostas, essa anotação é suficiente para identificar inequivocamente a prova por ela realizada, que aponta ao Gabarito 1, como está, inclusive, no site do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (https://www.gov.br/gestao/pt-br/concursonacional/caderno-de-provas/manha/prova-4-gabarito-1-trabalho-e-saude-do-trabalhador-manha.pdf)

Dessa forma, a ausência da marcação do tipo de prova (gabarito 1) no cartão de respostas não é suficiente para invalidar sua participação, tampouco para justificar sua eliminação, dado que a aposição da frase “Vidas Secas”, aponta para o citado Gabarito 1, o que torna a penalidade aplicada desproporcional.

Diante do exposto, verifico a presença da probabilidade do direito alegado pela autora.

Assim, defiro o pedido de tutela de urgência para determinar aos demandados que reintegrem a candidata ao certame, com a correção da sua prova Bloco 4 – Manhã, assegurando-lhe o direito de participar das demais fases do concurso, caso alcance a nota suficiente para isso.

Intime-se os requeridos para cumprimento no prazo de 2 dias, da forma mais expedita possível, inclusive por mandado em regime de plantão.

(…)

Documento eletrônico assinado por RODRIGO MACHADO COUTINHO, Juiz Federal, na forma do artigo 1o, inciso

III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4a Região no 17, de 26 de março de 2010. A conferência

da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php,

5048613-17.2024.4.04.7100 710020903500 .V11″

Duas soluções diametralmente opostas para caso idêntico. Tornamo-nos reféns da subjetividade do julgador.

Considerações finais

Duas soluções opostas inteiramente para caso idêntico. Verdadeiro dilema que, na visão do professor Eros Roberto Grau, pode tornar o Judiciário um produtor de insegurança, na medida em que se afasta de uma prudência que lhe deve ser implícita, dada a inviabilidade fática de uma única solução correta para determinado caso e ai a consequência é que tornamo-nos reféns da subjetividade do julgador.

É exatamente disso que se trata.

A Banca Cesgranrio, ao utilizar argumentos para eliminação de candidatos que não reflete a imparcialidade, reforça padrões discriminatórios e se torna enviesada.

Sem mecanismos de regulamentação, responsabilização e transparência, estes processos podem levar a perdas financeiras  e a questões jurídicas, além de levantar questões morais e éticas.

No âmbito do Poder Judiciário, espera-se uma decisão final e justa para os candidatos que investiram, se prepararam, se apresentaram, realizaram as provas e foram eliminados por um dispositivo que não constava do edital, que é a lei que regula o concurso.

O cenário resultará em intensa judicialização que poderá comprometer todo o certame, além de ferir a isonomia e ocasionar intranquilidade e danos emocionais aos candidatos. À administração pública se impõe o dever de prevenir litígios, o que se alcançará adotando-se o entendimento que mais se coadune ao que dispõe o edital, como bem pontuou o ilustre procurador da República no Tocantins.

Por fim, cabe ressaltar ademais que o presente caso não necessitaria chegar ao Poder Judiciário, caso a Banca Cesgranrio observasse os princípios gerais de direito, como bem enfatizada na decisão proferida pelo 6ª Vara Federal de Porto Alegre. 

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Referências

  • CARRERA, Fernanda. Artigo Racismo e Sexismo em bancos de imagens digitais, no livro Comunidades, Algoritmos e Ativismos Digitais: Olhares Afrodiaspóricos.
  • GRAU. Eros Roberto, Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e os princípios. Edição: 10ª, ano 2021, Editora Malheiros.
  • Vieses inconscientes, equidade de gênero e o mundo corporativo. http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/Vieses_inconscientes_16_digital.pdf
  • Dicionário eletrônico Aurélio.
  • Dicionário eletrônico Houaiss.
  • TRF 1ª Região. Seção Judiciária do Distrito Federal. 9ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal. PROCESSO: 1074747-78.2024.4.01.3400 CLASSE: MANDADO DE SEGURANÇA CÍVEL (120)
  • TRF 4ª Região. Seção Judiciária do Rio Grande do Sul. 6ª Vara Federal de Porto Alegre.  PROCEDIMENTO COMUM No 5048613-17.2024.4.04.7100/RS.
  • TRF 1ª Região. Seção Judiciária do Distrito Federal. PROCESSO: 1072606-86.2024.4.01.3400 CLASSE: AÇÃO POPULAR (66) POLO ATIVO: IGOR OLIVA DE SOUZA REPRESENTANTES POLO ATIVO: IGOR OLIVA DE SOUZA – DF60845 POLO PASSIVO:UNIÃO FEDERAL e outros
  • https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/concursos/noticia/2024/08/27/cnu-grupo-de-candidatos-recebeu-prova-da-tarde-por-engano-no-turno-da-manha-confirma-governo.ghtml

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