Opinião

Dois séculos de constitucionalismo: nossos sincretismos, entre antropofagia e autofagia

Autor

  • Lucas Fucci Amato

    é livre-docente pela Faculdade de Direito da USP foi pesquisador visitante na Harvard Law School (EUA) e na Universidade de Oxford (Inglaterra) e é autor de Inovações Constitucionais: direitos e poderes (Casa do Direito 2018).

24 de março de 2024, 9h22

Há exatos dois séculos, em março de 1824, o Brasil entrava para o rol dos estados constitucionais. Os grandes dilemas da relação entre as teorias constitucionais, os desenhos institucionais preconizados e a estrutura social circundante afirmaram-se desde então, sendo recorrentes na nossa trajetória. No esforço por tropicalizar as ideias e instituições modernas — sobretudo liberais, no século 19 — ora conseguimos chegar a uma criativa antropofagia, com soluções originais aderentes à realidade nacional.

Por vezes, entretanto, recaímos em uma autofagia, importando desenhos institucionais já disfuncionais em suas origens ou os transfigurando a tal ponto que seus resultados derrotaram suas pretensões e justificativas.

Para o bem e para o mal, o sincretismo nos marcou em três dimensões: estrutura social, ideias e instituições. Um diagnóstico crítico da importação das ideias liberais no Brasil oitocentista destaca que elas estavam “fora de lugar”[1] e tinham mais efeitos liberticidas que liberalizantes.

Em vez de serem ideologia da igualdade formal em uma sociedade de capitalistas e assalariados, eram o simulacro de liberdade política e econômica em uma sociedade onde, entre senhores e escravos, mediava uma camada precária de livres e libertos amparada pelo favor e pelo clientelismo.

De fato, a estrutura social brasileira estava longe da realidade de países onde a urbanização e a industrialização já começavam a transformar as práticas e a mentalidade da vida rural. Aqui, a emergente diferenciação de setores funcionais (economia, imprensa, política, direito), de instituições de Estado (Justiça, Polícia, política, administração) e de papéis sociais (patrões e empregados, eleitores e representantes, juízes e jurisdicionados) via-se coarctada por profundas clivagens raciais e sexuais, por relações de dependência pessoal (favor) e geográfica (entre os poucos centros urbanos e os vastos rincões) e por hierarquias menos de classe (abertas a certa mobilidade intergeracional) e mais de estratos fechados (encimados por certa nobreza da terra).

Esse sincretismo das formas de diferenciação na estrutura social brasileira criava um obstáculo: pareciam não estar presentes aqui as “condições extraconstitucionais” para um constitucionalismo liberal. De um lado, em vez de um Estado absolutista que houvesse centralizado o poder e unificado mercados, símbolos (“a nação”, “o povo”) e infraestruturas (integrando o território), tivemos durante o período colonial uma combinação de despotismo distanciado da Coroa metropolitana com o arbítrio privado direto daqueles a quem, formal ou informalmente, o poder, o dinheiro e o status foram delegados: donatários, sesmeiros, cobradores de impostos, funcionários patrimoniais.

Pedro Américo/Reprodução

De outra parte, se a vinda da família real liberalizou e modernizou o Rio de Janeiro e outras capitais (abrindo os portos, criando uma imprensa régia, fundando escolas superiores de medicina, formação militar, engenharia, agricultura e belas artes), seus efeitos foram circunscritos.

Sob a mácula da repressão dos movimentos mais revolucionários do nosso iluminismo republicano (a começar pela Inconfidência Mineira, que eclodira meses antes da própria Revolução Francesa), nossa independência não chegou a ser uma revolução liberal e anticolonial aos moldes da americana. Enquanto os Estados Unidos não apenas rompiam com sua metrópole, criando a primeira Constituição do mundo moderno (em contraste com a ausência de constituição escrita do direito inglês) e novos modelos de exercício do poder (como o presidencialismo e o federalismo), aqui mantivemos o rei e as velhas ordenações do reino português.

Europa era inspiração

E aqui chega o sincretismo no plano das ideias. Ainda sem uma elite formada nacionalmente — o que só começaria a ocorrer com a fundação das faculdades de direito em 1827 —, era precária a capacidade de um pensamento político-jurídico mais ou menos autônomo.

As soluções eram buscadas com olhos na Europa, em geral com receio das experiências mais radicais das revoluções francesa, haitiana ou americana. O casamento entre conservadorismo e liberalismo inglês e francês foi o amálgama principal do nosso primeiro experimento constitucional.

Chegamos então ao plano do sincretismo institucional propriamente dito: como as ideias políticas e jurídicas, mixadas, foram incorporadas nas instituições constitucionais de organização dos poderes e garantia de direitos. De

um lado, liberdades individuais e uma monarquia limitada pela supremacia do parlamento respondiam pela influência britânica; do lado francês, vinha a ideia de contrabalançar a divisão do poder executivo (agora entre um gabinete de ministros e o imperador) pela atribuição de um novo poder ao monarca: o poder moderador — que lhe permitia nomear e demitir livremente  seus ministros, nomear os senadores (a partir de uma lista tríplice gerada pela eleição censitária: para ser senador exigia-se oito vezes a renda requerida para ser eleitor de primeiro grau, e o dobro da renda exigida para ser deputado), dissolver a Câmara dos Deputados e convocar novas eleições (quando entendesse não ser conveniente a Câmara destituir o ministério com o qual estivesse em desacordo), suspender magistrados, moderar e dissolver penas.

Spacca

Como notava Zacarias de Góes[2], a moderação da monarquia parlamentar britânica era dada por um poder frear o outro, reciprocamente moderando-o, e não pela superposição do poder real (pelo contrário, vale lembrar, a tradição inglesa é da supremacia parlamentar). Muito mais explicitamente, o modelo madisoniano do presidencialismo americano obteve uma limitação do poder por freios e contrapesos entre os poderes — acrescente-se a fim de evitar a “tirania da maioria” sobre a minoria proprietária, cultura e cidadã.

Lembre-se, também, que o controle judicial de constitucionalidade (difuso), inventado no início do século 19 na experiência americana, apenas seria lá rotinizado ao final daquele século, gerando grandes embates com o então crescente poder executivo (do lado britânico, a tradição é de que as decisões do parlamento não são suscetíveis de revisão judicial e apenas em 2009 foi criada uma Suprema Corte com funções de controle de constitucionalidade).

Voltando ao caso brasileiro: em oposição a vetos entre os três poderes, a solução do poder moderador, inspirada por Benjamin Constant, importava a arbitragem superior de um quarto poder. Pimenta Bueno o considerava uma emanação natural da nação, corporificada na pessoa do imperador, árbitro conservador dos excessos propelidos pela facciosidade política. Só ele era capaz de ser “superior a todas as paixões, a todos interesses, a toda rivalidade” [3].

No exercício do poder moderador, o imperador contava com a consultoria decisiva do Conselho de Estado, ápice da jurisdição administrativa — de inspiração francesa — importada para o Brasil. Vale lembrar que, por desconfiança em relação ao poder dos juízes (associados à nobreza e ao antigo regime), a revolução francesa criou uma jurisdição administrativa e afirmou um controle de constitucionalidade apenas político e preventivo (por meio do Conselho de Estado); somente em 2010 entrou em vigor na França a possibilidade do controle a posteriori de constitucionalidade (de leis que já entraram em vigor), pela via de exceção no contencioso administrativo ou judicial.

De volta ao Brasil, passando do plano da organização dos poderes ao aspecto dos direitos constitucionais, duas questões-chave podem ser pontuadas. A primeira, evidentemente, diz respeito à escravidão. Garantir a propriedade privada, como fazia a Constituição de 1824, significava reconhecer a natural liberdade de todos os seres humanos (já que, segundo Locke, todos começam ao menos com a propriedade natural de seus corpos e mentes) ou considerar a possibilidade de alguns serem objeto da propriedade de outros? O que fazer: abolir a escravidão gradualmente, mas desde o princípio (como propunha José Bonifácio em 1823, antes de a assembleia constituinte ser dissolvida e o imperador outorgar a Constituição), ou mantê-la em nome do direito de propriedade dos senhores?

O dilema refletiu-se no direito privado: não conseguimos superar totalmente as Ordenações Filipinas (de 1603) até o advento do Código Civil de 1916. Teixeira de Freitas, que organizou a importante Consolidação das Leis Civis (1858), ressaltava que ela não era maculada pelo tema da escravidão, que deveria ser tratado à parte, em um Código Negro [4].

Voto censitário

A segunda questão diz respeito ao voto censitário: o nível de renda exigido (ao menos para eleitor de primeiro grau, com direito de voto para a assembleia paroquial, sendo exigido o dobro para votar em senadores, deputados e membros dos conselhos de província) era comparável ao de outros países (menor que o patamar francês da época) [5]; ao fim do império, estabeleceu-se um equivalente funcional muito mais restritivo da participação política: a exclusão dos analfabetos, que permaneceu até 1985.

As questões se conectam quando a exclusão política retroalimenta a exclusão econômica, e vice-versa: em setembro de 1850, após aprovar a abolição do tráfico de escravizados (Lei Eusébio de Queirós), a providência tomada (Lei de Terras) foi dificultar o acesso à terra pelos libertos e pelos imigrantes que chegavam para vender sua força de trabalho. De outra parte, a inclusão também era cumulativa: sobretudo nos cargos da política e da burocracia imperial, recolhida da oligarquia agrária: não faltavam magistrados-parlamentares, por exemplo.

Não precisamos idealizar as instituições importadas e afirmar que seu sentido apenas foi deformado com o transplante e a cópia malfeita. Certamente houve “refrações” que distorceram suas funções, enquanto os textos normativos permaneciam fiéis aos modelos dos países centrais. Porém, também é verdade que o que observamos aqui, como em outras experiências, foram disputas a respeito do sentido do liberalismo, como uma expressão política da modernização social.

Dadas nossas precondições sociais específicas, por exemplo, fazia sentido um Estado unitário (que concentrasse recursos para combater os mandonismos locais e integrar o país) ou um Estado federal (descentralizado)? Os debates políticos imperiais focalizavam questões como esta.

Entretanto, a pergunta-chave é: as instituições constitucionais de 1824 serviram para reforçar os vícios da estrutura social brasileira ou para facilitar sua transformação pela política, endogeneizando institucionalmente e catalisando politicamente as transformações sociais, em vez de represá-las até a crise e a ruptura?

A despeito da alta rotatividade dos gabinetes, conservadores e liberais, na fase mais estável do império, o segundo reinado (cada gabinete durou em média um ano e meio), as forças e ideias políticas eram mais ou menos homogêneas e elitistas. Durante o império, a escravidão, a miséria, a heterogeneidade cultural e social impediram a formação de um “povo” unificado a que se referisse o Estado; o território continuou fragmentado até, pelo menos, as revoltas do período regencial; a soberania continuou precária diante dos poderes privados e eclesiásticos.

Ao final de um período de grandes transformações — com o avanço da urbanização, da industrialização, de novas ideias (positivistas, sociológicas, republicanas, abolicionistas) —, a Constituição de 1824 foi rompida por um golpe militar. Aquela institucionalidade política não foi capaz de resolver o grande problema econômico, social e moral do país: a escravidão. Em um regime escravocrata, como sentenciou o Senador Saraiva[6], abolida a escravidão, restou o escravo sem valor e o império, sem apoio.

Durante o século 20, importamos o corporativismo do entreguerras e o autoritarismo antiliberal, ensaiado em meio a influências positivistas — amálgama autêntico do Estado Novo. Nossa primeira experiência de democracia de massas — sob a Constituição de 1946 — combinou-se a um período de grande expansão econômica, mobilidade social ascendente e vitalidade cultural; ao mesmo tempo, a institucionalidade política esteve sob permanente estresse, com suicídio e renúncia de presidentes, ameaças de não reconhecimento dos resultados eleitorais por parte da oposição derrotada, um parlamentarismo casuístico e, ao final, um golpe militar — inauguração de um regime que alguns justificaram como uma espécie de “autoritarismo liberal” [7].

Na nova experiência democrática, de 1988, a estabilização econômica e a ondas de inclusão social deram-se dentro de uma nova institucionalidade, na qual se destacam, entre muitos aspectos, os bloqueios legislativos à implementação dos programas governamentais, a ampliação das políticas públicas e das instituições judiciais e parajudiciais, o protagonismo do Supremo Tribunal Federal na arbitragem dos conflitos políticos (seria ele também “superior a todas as paixões, a todos interesses, a toda rivalidade”?) e a ascensão eleitoral de forças autoritárias, anticonstitucionais, “iliberais” — além de dois impeachments, um ex-presidente preso e solto, e outro condenado à inelegibilidade.

A estrutura social brasileira ainda guarda seus sincretismos — combinando diferentes formas de desigualdade. De outro lado, a cultura brasileira foi capaz de uma grande antropofagia, inventando expressões altamente originais a partir de raízes diversas. Nossas ideias político-jurídicas e soluções constitucionais, porém, ainda trazem uma combinação mais ambígua, entre a antropofagia criativa e a autofagia.

A lista de sincretismos, para o bem ou para o mal, é ampla. Abrange, por exemplo: teorias jurídicas do common law (inspiradas na criação jurisprudencial) e do civil law (baseadas na supremacia da lei); controle judicial de constitucionalidade incidental difuso (de inspiração americana oitocentista) e controle abstrato concentrado (de inspiração da Europa do pós-guerra); seleção meritocrática e competitiva dos juízes, como funcionários públicos (modelo francês), com composição política (modelo americano) quanto aos tribunais, sobretudo os superiores.

A pergunta persiste: em que medida cada uma dessas combinações reforça os problemas estruturais do país ou, pelo contrário, forja instituições aptas a combatê-los? Em que medida nosso sincretismo é uma solução criativa e adequada e quando se manifesta como uma cópia autofágica: instituições que são parte do problema, e não da solução?

 


[1] SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. Estudos CEBRAP, n. 3, p. 150-161, 1973.

[2] GÓES E VASCONCELLOS, Zacarias de. Da natureza e limites do Poder Moderador. 2 ed. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, 1862 [1860], p. 20.

[3] PIMENTA BUENO, José Antonio. Direito publico brazileiro e analyse da Constituição do Imperio. Rio de Janeiro: J. Villeneuve, 1857, p. 205.

[4] TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Introdução. In: Consolidação das Leis Civis, v. 1. Edição fac.-sim. Brasília: Senado Federal, 2003 [1858], p. xxxvii.

[5] CARVALHO, José Murilo de. Dimensiones de la ciudadanía en el Brasil del siglo XIX. In: SABATO, Hilda (org.). Ciudadanía política y formación de las naciones: perspectivas históricas de América Latina. México: Fondo de Cultura Económica, 1999, p. 327-328.

[6] 44ª Sessão do Senado (16 de julho de 1888), reproduzida em: LOPES, José Reinaldo de Lima; QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo; ACCA, Thiago Santos. Curso de história do direito. São Paulo: Método, 2006.

[7] CAMPOS, Roberto de Oliveira. A opção política brasileira. In: SIMONSEN, Mario Henrique; CAMPOS, Roberto de Oliveira. A nova economia brasileira. 3 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979 [1974]. p. 223-257.

Autores

  • é livre-docente pela Faculdade de Direito da USP, foi pesquisador visitante na Harvard Law School (EUA) e na Universidade de Oxford (Inglaterra) e é autor de Inovações Constitucionais: direitos e poderes (Casa do Direito, 2018).

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