Opinião

Com liberdade de imprensa, nenhum preciosismo é exagero

Autores

  • é advogado formado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo ) mestre e doutor em Direito do Estado pela mesma instituição. Vencedor do Prêmio Capes de tese em 2021. Integra o Instituto dos Advogados de São Paulo. Foi corregedor administrativo e procurador-geral ambos do município de São Carlos e subchefe-adjunto para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República de 2005 a 2007. Também é autor dos livros “Corrupção Política” publicado em 2019 e “Acordo de Leniência Anticorrupção” publicado em 2021.

    Ver todos os posts
  • é advogada formada na Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) e com mobilidade acadêmica na USP (Universidade de São Paulo). É pós-graduanda em direito processual civil pela Fundação Getulio Vargas e participou de grupo de estudos avançados em direito processual civil promovido pela Fundação Arcadas (USP).

    Ver todos os posts

18 de março de 2024, 9h18

No Brasil, não se pode jogar à sorte a defesa da liberdade de imprensa. O STF tem atuado firmemente nos últimos anos para garantir uma imprensa livre, mas, ao redigir a Tese de Repercussão Geral do Tema 995, parece-nos que alguns detalhes permaneceram à sombra.

No mundo jurídico, fixar uma tese desse tipo significa firmar um entendimento que será aplicado em todos os casos e tribunais do país. A intenção do Supremo foi a melhor possível, mas o tribunal deixou escapar de maneira inadvertida uma percepção mais profunda.

Por essa razão, a Abraji fez um pedido de ingresso no processo do Supremo Tribunal Federal  pedindo esclarecimentos e sugerindo uma nova redação por meio do que se chama de “amicus curiae”. Esse instrumento permite a participação da sociedade civil em discussões de grande repercussão, a fim de auxiliar os Tribunais com contribuições relevantes.

Em circunstâncias normais, o ingresso se daria antes do julgamento do caso. Mas, dado o impacto prático capaz de afetar a formação de opinião pública livre e consciente, a Abraji julgou se tratar de situação excepcional que demanda aperfeiçoamento por parte do STF mesmo agora, por meio de recurso.

A tese determina a responsabilização civil dos jornais ao publicar entrevistas em que o entrevistado imputa falsamente prática de crime a terceiro. Isso se dá quando há “indícios concretos da falsidade da imputação” e a inobservância do “dever de cuidado” na averiguação.

Sem precedentes

Não há precedentes consolidados para interpretar essas expressões. O que caracterizaria o “dever de cuidado” e os “indícios concretos da falsidade da imputação”?

Reprodução/Free Speech Fear Free

Não se sabe até que ponto o jornalismo teria a obrigação de averiguação ou quais condutas os jornais deveriam adotar. Seria suficiente dar espaço ao acusado para se manifestar? Fazer uma ressalva? Seria preciso que o jornal tivesse a efetiva intenção de publicar notícia falsa?

Deixar a resposta às instâncias inferiores da Justiça daria a inúmeros magistrados um poder de interpretação  elástico para o sentido amplo das expressões contidas na Tese de Repercussão Geral do Tema 995/STF.

Essa possibilidade de Instâncias inferiores decidirem de maneira diversa pode ter um efeito operacional nefando para o STF. Como se trata de uma tese de repercussão geral, quem se sentir desatendido recorrerá diretamente para o Supremo, inundando o tribunal com ações dessa natureza.

A Abraji propõe em seu pedido ao STF que a responsabilização civil deva se dar só em casos nos quais há ciência da falsidade da imputação ou quando se trata de fato notório, amplamente divulgado e derivado de decisão judicial irrecorrível.

Seria preciso, ainda, que o veículo não oferecesse ao acusado o direito de dar a sua versão do fato ou que o texto jornalístico não fizesse ressalva. Afinal, mesmo a notícia de uma fala em que se imputa crime que não ocorreu é notícia relevante.

Atividade de risco

O STF ainda deixou de considerar as entrevistas ao vivo. Nestes casos, sequer seria possível deixar de difundir as afirmações ou realizar apurações a serem veiculadas de imediato. Para evitar que as entrevistas ao vivo se tornassem atividades de risco, a Abraji sugere que elas sejam excetuadas, ainda que gravadas para visualização posterior.

Não se pode esquecer que as entrevistas são importantes instrumentos para suscitar o debate público. Em 1992, a revista Veja publicou uma entrevista com Pedro Collor com revelações que foram em parte responsáveis pelo impeachment de Fernando Collor de Mello.

A revista à época não teria condições de averiguar a veracidade dos fatos. Em 2005, a Folha de S.Paulo publicou entrevista na qual Roberto Jefferson fez acusações que levariam à descoberta do escândalo do mensalão. O julgamento condenou 25 pessoas à prisão e Jefferson, à época, não ofereceu provas além de suas afirmações na entrevista.

Advogado Igor Tamasauskas

Indaga-se, assim, até que ponto vale impor às empresas jornalísticas de maneira conclusiva “verificar a veracidade dos fatos”. Certamente os veículos jornalísticos têm a obrigação de buscar obsessivamente a objetividade e a verdade dos fatos. Mas o papel não de chancelar o que é verdade ou não é da polícia.  Jornais não podem concluir pelo cometimento ou não de crimes. Essa atribuição é do Poder Judiciário.

A formulação da Tese de Repercussão Geral do Tema 995/STF tal como está deve resultar num aumento das ações pedindo a responsabilização dos veículos, mas nem sempre com o intuito de buscar justiça. Muitas ações terão um objetivo inibidor e intimidador, transformando o Judiciário em arena para fins diversos, como o de silenciar pronunciamentos.

Os jornais, especialmente os de menor porte, não arriscariam condenações. É daí o risco da autocensura: a conjuntura levaria a imprensa a deixar de publicar conteúdos relevantes, não tendo recursos para arcar com numerosas defesas processuais ou condenações.

Entendemos que esses detalhes devem ser considerados, reconhecendo a nobre atuação do STF como um dos guardiões da liberdade de expressão e de imprensa.

Ao defender a liberdade de imprensa, nenhum preciosismo é exagero. Quando o debate público livre e de qualidade é manietado de alguma forma, quem perde é toda a sociedade.

Autores

  • é advogado formado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo ), mestre e doutor em Direito do Estado pela mesma instituição. Vencedor do Prêmio Capes de tese em 2021. Integra o Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo). Foi corregedor administrativo e procurador-geral, ambos do município de São Carlos, e subchefe-adjunto para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República de 2005 a 2007. Também é autor dos livros “Corrupção Política”, publicado em 2019, e “Acordo de Leniência Anticorrupção”, publicado em 2021.

  • é advogada, formada na Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) e com mobilidade acadêmica na USP (Universidade de São Paulo). É pós-graduanda em direito processual civil pela Fundação Getulio Vargas e participou de grupo de estudos avançados em direito processual civil, promovido pela Fundação Arcadas (USP).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!