Opinião

A Lei de Execuções Fiscais fracassou

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17 de março de 2024, 7h04

Em 1938, antes mesmo da unificação da legislação processual no país pelo Código de Processo Civil de 1939, o Decreto-Lei n° 960 dispôs sobre a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública em todo o território nacional. Ainda que sofrendo alterações pontuais, a regulação prevaleceu até o advento do CPC de 1973.

Em 1973, a Lei n° 5.869 instituiu o Código de Processo Civil. Em sua redação original, a tutela executiva através de um processo autônomo servia também à execução dos créditos públicos inscritos em dívida ativa. Mesmo sem uma revogação expressa do Decreto-Lei n° 960, unificaram-se as vias executivas (artigo 585, VI, do CPC/73).

Pouco tempo depois, em 1976, instituiu-se grupo de trabalho visando apresentar a redação final do anteprojeto de Lei de Execuções Fiscais. Com base na exposição de motivos n° 223/1980, o interesse na regulação específica do procedimento especial se deu pela necessidade de assegurar à cobrança do crédito público “um processo expedito de realização da receita pública” consentâneos com a garantia do interesse público.

Mesmo mantendo o regramento geral da execução previsto no CPC, o seu objetivo foi assegurar melhores técnicas à realização da receita pública, cujas inovações abreviariam “a satisfação do direito da Fazenda Pública. A tutela do crédito público em juízo justificaria a previsão de um procedimento especial executivo mais célere e eficiente, tudo em consonância com a prevalência do interesse público.

O escopo principal da Lei n° 6.830/80, todavia, não se realizou [1]. É que as execuções fiscais são responsáveis por boa parte do estoque de processos que congestionam o Judiciário. É, de fato, lugar comum apontar as execuções fiscais como causa da morosidade da justiça.

O relatório Justiça em Números, divulgado anualmente pelo CNJ, dá conta deste fracasso.

O relatório 2023 (ano-base 2022) mostra que as execuções fiscais representam aproximadamente 34% do total de casos pendentes e, dentre os feitos executivos, 64% dos pendentes no Poder Judiciário, com taxa de congestionamento de 88%.

Na Justiça federal, as execuções fiscais correspondem a 39% do acervo total no primeiro grau; na Justiça estadual, a 38% do acervo. As taxas de congestionamento são, respectivamente, de 91,3% e 88% [2].

O relatório aponta ainda que o tempo médio de tramitação do processo de execução fiscal é de seis anos e sete meses.

Considerada apenas a Justiça Federal, os processos duram em média oito anos e dez meses; na Justiça estadual, seis anos e três meses [3]. Conclui-se, assim, que a execução fiscal impacta de maneira relevante na chamada morosidade da justiça [4].

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Bem se vê que o tempo deu o golpe de misericórdias nas razões que justificaram a previsão de um procedimento especial para a cobrança do crédito público em juízo.

Diminuição da litigiosidade

Ao menos na atuação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, esta realidade já foi percebida. A persecução do crédito público vem sendo informada nos últimos anos pelo escopo de redução da litigiosidade.

Na cobrança, os esforços têm se desenvolvido a partir das técnicas extrajudiciais de exação, como o protesto de CDAs e os procedimentos administrativos de responsabilização tributária.

Além disso, o regime diferenciado de cobrança de créditos (RDCC), inaugurado pela Portaria PGFN n° 396/2016, viabilizou o arquivamento de mais de 1 milhão de execuções fiscais, evitando a prática de atos infrutíferos em busca de patrimônio inexistente.

O foco é dar continuidade à cobrança apenas quando houver sinal de manifestação patrimonial ou reconhecer — de ofício, inclusive — a ocorrência de prescrição intercorrente (iniciativa reforçada, recentemente, com a Portaria Conjunta n° 7, firmada entre AGU, PGFN, CNJ, CJF e todos os TRFs).

Já a Portaria PGFN n° 33/2018 previu o ajuizamento seletivo ao condicionar a propositura de novas execuções fiscais à identificação prévia de manifestação patrimonial do devedor.

Por outro lado, com o advento da Lei n° 13.988/2020, a transação tributária se tornou uma realidade, paradigma fundamental dentre as técnicas de solução consensual de conflitos tributários [5].

Em suma, a Lei n° 6.830/80 não ofereceu muito além de processos lentos, caros e ineficientes. O principal fundamento que impulsionou a iniciativa legislativa não subsiste. A Lei de Execuções Fiscais fracassou.

O Judiciário sinalizou a adoção de medidas concretas para tentar solucionar (ou ao menos reduzir) o problema no julgamento do RE n° 1.355.208/SC (relatoria da ministra Cármen Lúcia), em 19/12/2023 (cujo inteiro teor do acórdão ainda não foi publicado).

O STF fixou tese no Tema 1.184 da Repercussão Geral, nos seguintes termos:

  1. É legítima a extinção de execução fiscal de baixo valor pela ausência de interesse de agir tendo em vista o princípio constitucional da eficiência administrativa, respeitada a competência constitucional de cada ente federado. 2. O ajuizamento da execução fiscal dependerá da prévia adoção das seguintes providências: a) tentativa de conciliação ou adoção de solução administrativa; e b) protesto do título, salvo por motivo de eficiência administrativa, comprovando-se a inadequação da medida. 3. O trâmite de ações de execução fiscal não impede os entes federados de pedirem a suspensão do processo para a adoção das medidas previstas no item 2, devendo, nesse caso, o juiz ser comunicado do prazo para as providências cabíveis.

A tese fixada causou certo burburinho, especialmente pela má utilização de conceitos jurídicos indeterminados. O que caracterizaria uma execução fiscal de baixo valor? O que caracterizaria a tentativa de conciliação ou adoção de solução administrativa? O que seria necessário para demonstrar a inadequação do protesto?

O Conselho Nacional de Justiça, porém, foi rápido em regular o tema (o que reforça, inclusive, a natureza de fonte formal de processo das resoluções do CNJ), via Resolução n° 547/2024.

Propõe-se a regular os termos do julgamento, levando em consideração: os termos da tese fixada; os dados do relatório Justiça em Números; as Notas Técnicas n° 06/2023 e 08/2023 do Núcleo de Processos Estruturais e Complexos do STF, que apontam o custo mínimo de R$ 9.277,00 de uma execução fiscal; levantamento realizado pelo CNJ, dando conta de que 52,3% das execuções fiscais têm valor de ajuizamento inferior a R$ 10.000; as teses firmadas pelo STJ no Tema 566 dos Recursos Repetitivos e pelo STF no Tema 390 da Repercussão Geral.

Andou muito bem o Conselho ao se antecipar às eventuais dúvidas e ao potencial aumento da litigiosidade tributária em razão da fixação, com péssima redação, da Tese 1.184 da Repercussão Geral.

A resolução fixa que deverão ser extintas sem resolução de mérito as execuções fiscais de valor inferior a R$ 10.000,00 quando do ajuizamento (considerando a soma de principal e apensas), em que não haja movimentação útil há mais de um ano sem citação do executado ou, ainda que citado, não tenham sido localizados bens penhoráveis (artigo 1°).

Assim, para efeitos de extinção de execuções fiscais de baixo valor, considera-se o limite mínimo de ajuizamento de R$ 10.000,00.

Além disso, consolida o conteúdo do que significa tentativa de conciliação ou adoção de solução administrativa prévia (artigo 2°). Os parâmetros são postos com razoabilidade, merecendo elogios.

Segundo a resolução, a tentativa de conciliação pode ser satisfeita, exemplificativamente, pela existência de lei geral de parcelamento ou oferecimento de algum tipo de vantagem na via administrativa, como redução ou extinção de juros ou multas, ou oportunidade concreta de transação na qual o executado, em tese, se enquadre. Ainda, a notificação do executado para pagamento antes do ajuizamento da execução fiscal configura adoção de solução administrativa.

Em acréscimo, presumem-se cumpridos tais requisitos quando a providência estiver prevista em ato normativo do ente exequente.

Por último, o artigo 3° da resolução trata do protesto, prevendo um rol atípico de hipóteses quando poderá ser dispensado (o que demonstra sua inadequação): quando houver comunicação da inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres; quando houver averbação, inclusive por meio eletrônico, da certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora; ou quando houver indicação, no ato de ajuizamento da execução fiscal, de bens ou direitos penhoráveis de titularidade do executado.

A Resolução n° 547/2024 volta os olhos a uma solução prospectiva de problemas. Não apenas quanto à fixação da tese no tema 1184 da Repercussão Geral, mas também de iniciativa legislativa que propõe o texto de uma nova lei de execuções fiscais.

A exposição de motivos n° 8/2022/CJADMTR, da lavra da ministra Regina Helena Costa e do professor Marcus Livio Gomes anota a “necessidade inadiável de ser enfrentado o preocupante cenário que norteia a execução dos créditos públicos inscritos em dívida ativa” [6].

Consenso antes da execução fiscal

É interessante perceber que os objetivos da nova propositura legislativa são muito semelhantes aos que fundamentaram a iniciativa legislativa que deu origem à Lei n° 6.830/80.

O texto se mantém no objetivo de “unir celeridade e efetividade na recuperação dos recursos indispensáveis à realização de políticas públicas (…)” [7]. Visa, ainda, “promover uma mudança capaz de reduzir o volume de executivos fiscais em andamento e acelerar a resolução daqueles litígios, judicial ou extrajudicialmente” [8].

O projeto consolida a tendência de reforço à consensualidade na tutela do interesse público, prevendo expressamente a necessidade de tentativa de solução consensual anterior à propositura de execução fiscal [9], sob pena de indeferimento da petição inicial[10].

Em verdade, a noção de consensualidade permeia todo o texto, que preza, desde a inscrição em dívida ativa, pela adoção de métodos consensuais de solução de conflitos. O artigo 2° da Resolução n° 547/2024, sem dúvida, funcionará como parâmetro para a admissibilidade das execuções, dando conta do que significa a adoção prévia de métodos autocompositivos.

Também são previstas diversas estratégias de cobrança extrajudicial “tais como o protesto, a averbação da certidão e a comunicação aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres (…)” [11] (artigo 17 do projeto).

Não há dúvidas de que o artigo 3° da Resolução n° 547/2024 pode ser utilizado para justificar as hipóteses de dispensa do protesto das certidões, justificando a propositura da execução.

Em verdade, boa parte dessas técnicas de cobrança extrajudicial já estão em plena aplicação pela Fazenda Nacional, o que demonstra uma clara iniciativa de espalhar tais iniciativas aos estados e municípios.

É nesse mesmo sentido a previsão de valores mínimos de ajuizamento das execuções fiscais. Conforme proposto, fica dispensado o ajuizamento de execuções fiscais quando o montante consolidado do débito for inferior ao limite mínimo estabelecido pela autoridade competente (que no âmbito da dívida ativa da União será o procurador-geral da Fazenda Nacional e no âmbito da dívida ativa das autarquias e fundações públicas de direito público, o procurador-geral federal; portanto, para estados e municípios deve ser o procurador-geral respectivo) ou quando não houver a localização de patrimônio útil à satisfação do crédito, observados critérios de racionalidade, economicidade e eficiência.

O parâmetro fixado pelo artigo 1° da Resolução n° 547/2024, com limite mínimo de ajuizamento em R$ 10.000,00, sem dúvida servirá de parâmetro seguro para a gestão da cobrança, especialmente dos municípios menores, que utilizarão a norma para justificar — inclusive perante os órgãos de controle — a dispensa de ajuizamento de execuções fiscais.

Não parece haver dúvidas de que o rito previsto pela Lei n° 6.830/80, apesar dos objetivos de oferecer mais efetividade e celeridade à recuperação do crédito público, não conseguiu atingir o objetivo pretendido. Diversas razões poderiam ser apontadas para esta crise. E, da mesma forma, diversas soluções também poderiam ser desenvolvidas. Dentre as soluções propostas, há o projeto de uma nova Lei de Execuções Fiscais.

Apenas a experiência prática permitirá medir o sucesso das iniciativas para redução do volume de execuções, especialmente a partir da percepção de como os juízos de ponta, espalhados por todo o Brasil, interpretarão e aplicarão a Resolução n° 547/2024 [12]. De toda sorte, sem dúvida, o regramento veio em muito boa hora, para evitar o aumento da litigiosidade tributária, seja em razão da péssima redação da tese 1184 da Repercussão Geral, seja em razão dos termos adotados no projeto da nova LEF.

Aguardemos, com otimismo, as cenas dos próximos capítulos.

 


[1] Trabalhamos o tema, com maior profundidade em: AVELINO, Murilo Teixeira. Execução fiscal, processo flexível e trânsito de técnicas. Londrina, PR: Thoth, 2023, p. 93 e ss.

[2] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2023: ano-base 2022. Brasília: CNJ, 2023, p. 149-151.

[3] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2023: ano-base 2022. Brasília: CNJ, 2023, p. 155.

[4] “As execuções fiscais permanecem sendo um gargalo no Judiciário e abrangem 27,3 milhões (33,5%) do total de processos em tramitação, com a maior taxa de congestionamento do Poder Judiciário (88,4%)” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2023: ano-base 2022. Brasília: CNJ, 2023, p. 303).

[5] Tratamos do tema, com maior profundidade em: AVELINO, Murilo; PEIXOTO, Ravi. Consensualidade e Poder Público. São Paulo: Juspodivm, 2023, p. 111 e ss.

[6] BRASIL. Senado Federal. Parecer (SF) n° 1 de 2022, p. 185.

[7] BRASIL. Senado Federal. Parecer (SF) n° 1 de 2022, p. 186.

[8] BRASIL. Senado Federal. Parecer (SF) n° 1 de 2022, p. 186.

[9] Tratando o tema de forma mais detalhada: AVELINO, Murilo Teixeira. Um novo requisito de validade para a demanda executiva fiscal: a tentativa prévia de regularização tributária consensual. COSTA, Regina Helena et al (coords.). A nova execução fiscal. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2023, p. 85 e ss.

[10] Conforme o art. 6°, §3° do projeto: “As Fazendas Públicas deverão, sobretudo antes da propositura da execução fiscal, utilizar métodos de autocomposição e consensualidade previstos na Lei, com vistas a permitir a regularização do débito inscrito, sob pena de indeferimento da inicial”.

[11] BRASIL. Senado Federal. Parecer (SF) n° 1 de 2022, p. 187.

[12] Impõe-se, obviamente, o respeito aos requisitos previstos no ato. Já há, infelizmente, manifestações judiciais realizando um corte objetivo de valor, sem considerar, por exemplo, a soma dos apensos. Veja-se, nesse sentido, a decisão proferida nos autos de n° 0156900-32.2007.5.07.0006, processado perante a 6ª Vara do Trabalho de Fortaleza.

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