Inelegibilidade de insurrecionistas

Suprema Corte pesa poder estadual e federal no caso de desqualificação de Trump

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5 de março de 2024, 10h41

Na decisão do julgamento sobre uma possível desqualificação da candidatura do ex-presidente Donald Trump às eleições presidenciais deste ano, a Suprema Corte dos EUA se esquivou de examinar uma questão fundamental: Trump se envolveu em “insurreição contra os Estados Unidos”, por ser o mandante da invasão do Congresso em 6 de janeiro de 2021?

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A resposta “não” isentaria Trump de qualquer responsabilidade. A resposta “sim” confirmaria que ele violou um dispositivo constitucional (Seção 3 da 14ª Emenda), que proíbe qualquer “oficial do Estados Unidos” de ocupar cargo público se, depois de ter prestado juramento de apoiar a Constituição do país, tenha “se envolvido em insurreição ou rebelião contra o mesmo”. E Trump seria inelegível.

Enfim, a corte não se pronunciou sobre a inelegibilidade de Trump. Nem entrou em outra questão que esteve presente nos julgamentos de cortes inferiores: se o presidente pode ser caracterizado como um “oficial dos Estados Unidos”.

Na opinião do Tribunal Superior do Colorado, que decidiu pela desqualificação de Trump, a resposta é “sim”. Para a juíza de primeira instância, a resposta é “não”, porque o texto da 14ª Emenda não usa a palavra “presidente”.

Porém, as decisões da justiça do Colorado concordam que Trump se envolveu em insurreição contra o país. A Suprema Corte, no entanto, só mencionou a palavra “insurreição” ao citar en passant essas decisões estaduais e o texto dos dispositivos constitucionais aplicáveis. A palavra não foi encontrada em qualquer outro lugar.

Ao anular as decisões contra Trump, a Suprema Corte declarou que, ao conceder certiorari à petição de Trump, iria responder a uma única questão: “O Tribunal Superior do Colorado errou ao ordenar a exclusão [do nome] do ex-presidente Trump da cédula eleitoral da eleição presidencial primária [do Partido Republicano] de 2024?”

Ou seja, a corte saiu pela tangente. Decidiu apenas que não cabe ao Colorado, nem a qualquer estado do país, decidir sobre a desqualificação de candidaturas a cargos federais — tais como o de presidente.

“Esse caso levanta a questão sobre se estados podem executar o disposto na Seção 3 [da 14ª Emenda da Constiuição]. Concluímos que os estados podem desqualificar apenas os candidatos a cargos públicos estaduais. Mas os estados não têm poder, garantido pela Constituição, de executar a Seção 3, com respeito a cargos federais, especialmente à Presidência.”

“Em nosso sistema federal, os poderes do governo nacional são limitados. Os estados e seu povo mantêm todos os poderes remanescentes”. Isso inclui, segundo a corte, o poder do estado de “ordenar os processos de sua própria governança”, bem como de “prescrever a qualificação de candidatos, de forma a impedir interferências externas em suas eleições, a não ser que algum dispositivo constitucional o permita”.

Colcha de retalhos

Para a Suprema Corte, permitir que os estados decidam se devem desqualificar ou não um candidato a cargo federal, como o de presidente, iria resultar em um processo eleitoral fundamentado em uma “colcha de retalhos” de decisões judiciais — e isso seria um caos.

Alguns estados, como o Colorado e Maine, podem entender que podem desqualificar um candidato a cargo federal com base nos dispositivos da 14ª Emenda. Outros, não. Alguns estados podem admitir como prova o relatório da CPI da Câmara dos Deputados sobre a invasão do Congresso. Outros rejeitariam esse tipo de prova.

Alguns estados poderiam entender que só é possível punir o candidato, se ele for condenado em processo criminal — não por meio de ação civil. Em outros estados não haverá qualquer fundamento jurídico ou decisão judicial que exclua um candidato a cargo público federal. Candidatos seriam inelegíveis em alguns estados, mas não em outros.

Essa confusão seria mais grave — e poderia anular milhões de votos e mudar o resultado das eleições — se a execução de dispositivos constitucionais ocorresse após as eleições. “Nada na constituição requer que endossemos tal caos, que poderia ocorrer a qualquer tempo e até mesmo após a posse do candidato eleito”, diz a decisão.

Todo o poder ao Congresso

Então, quem teria o poder de aplicar os dispositivos da 14ª Emenda, para desqualificar candidaturas de insurrecionistas a cargos federais? Apenas o Congresso, diz a decisão. Os fundamentos para isso seriam o disposto na última sentença da Seção 3 e na Seção 5 da Emenda.

A Seção 3 diz: “Mas o Congresso pode, por votação de dois terços dos votos de cada Casa [Câmara dos Deputados e Senado], remover tal impedimento”. A Seção 5 diz: “O Congresso terá poderes para fazer cumprir, por meio de legislação apropriada, as disposições deste artigo”.

“Os termos da Emenda só se referem à execução pelo Congresso, não pelos estados. No entanto, a 14ª Emenda confere ao Congresso o poder de executar tais disposições contra os Estados. Seria incongruente ler essa Emenda específica como concedendo aos Estados o poder (…) de desqualificar um candidato a um cargo federal”.

Todos os ministros votaram a favor da decisão da corte — uma decisão rara, por ser a favor do governo federal, contra os estados (cuja autonomia é frequentemente reconhecida) e por ser unânime — em parte.

As quatro mulheres da corte — a ministra conservadora Amy Coney Barrett e as ministras liberais Sonia Sotomayor, Elena Kagan e Ketanji Brown Jackson — escreveram votos concordantes apenas no que se refere à supremacia federal sobre a estadual para resolver o caso. Mas rejeitaram os votos dos cinco ministros da corte, que atribuem tal poder ao Congresso.

Basicamente, a questão é: quem perguntou? E a resposta é: ninguém. Elas argumentam que a corte deveria responder apenas à questão apresentada no processo — isto é, se o Tribunal Superior do Colorado errou ao desqualificar Trump da eleição primária do estado. Isso teria liquidado o caso. A questão sobre a quem atribuir o poder de aplicar a 14ª Emenda não foi apresentada.

A ministra Amy Barrett escreveu que concorda que os estados não têm poder para executar a Seção 3 contra candidatos presidenciais, um entendimento que seria suficiente para decidir o caso. “O processo não requer que respondamos a complicada questão sobre se a legislação federal é o veículo exclusivo para se executar esse dispositivo constitucional”.

As ministras liberais apresentaram o mesmo argumento, acrescentando que os ministros decidiram responder antecipadamente questões que podem surgir em futuras disputas judiciais.

“Ao decidir que só o Congresso pode resolver questões sobre desqualificação por insurreição, a maioria fecha as portas a outras possíveis maneiras de executar a lei. Como não aprovamos o voto que decide desnecessariamente questões difíceis e momentâneas, concordamos apenas com a decisão sobre a questão apresentada”, diz o voto concordante, parcialmente dissidente, das ministras.

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