Direito Civil Atual

O que significa enriquecimento sem causa no Brasil?

Autor

  • João Costa-Neto

    é juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) professor doutor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) na graduação e na pós-graduação (mestrado e doutorado) doutor e mestre em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) doutorando em Direito Público pela Humboldt-Universität zu Berlin e mestre em Direito Romano pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

4 de março de 2024, 12h09

Existe uma pretensão que difere da contratual ou da indenizatória. Não é responsabilidade civil contratual, nem aquiliana. Seu nome é pretensão restitutória. Existem comportamentos que não causam dano, mas que geram dever de restituir um enriquecimento obtido às custas do direito alheio.

Imagine que eu tenha deixado meu carro na oficina por alguns dias, para ser consertado. Em uma das noites em que meu carro estava lá, o mecânico pega o carro e dá uma volta nele. Aproveita a noite; sai com pessoas; usa meu carro. [1]

O carro não foi danificado de nenhuma forma. Nenhum dano foi causado. A quilometragem aumentou, mas de forma totalmente insignificante. O valor de mercado do meu carro permanece rigorosamente o mesmo. Não mudou em nada o valor que eu viria a obter em eventual venda.

Existe responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana nesse caso? Existe dever de indenizar? A resposta é não. Não houve dano. Mas eu tenho direito de exigir do mecânico ou do proprietário da oficina — de quem o mecânico é preposto — restituição do que ele enriqueceu às custas do meu patrimônio.

Afinal, o carro é meu e eu não autorizei aquela pessoa a usá-lo. É um uso indevido e uma usurpação do meu direito de propriedade. O valor, nesse caso, deve equivaler a uma diária de locação: o que uma Localiza, Unidas ou Movida cobraria para alugar um carro como o meu.

O exemplo que mencionei é categorizado na Alemanha e em boa parte do mundo como enriquecimento sem causa por intervenção (Eingriffskondiktion). Ou seja: alguém interveio sobre algum direito meu e enriqueceu às minhas custas.

Mesmo que eu não tenha sofrido dano ou empobrecimento, faz sentido que eu possa exigir o que a outra pessoa obteve de vantagem em cima do meu patrimônio. Essa vantagem tem sido chamada pelo STJ de “lucro de intervenção”.

A intervenção que gera o dever de restituir pode ocorrer sobre direitos de propriedade de bens corpóreos (ex.: uso do imóvel de outrem sem autorização), sobre propriedade imaterial (ex.: uso de direito autoral ou propriedade industrial sem prévia autorização), ou sobre qualquer outro direito alheio.

Outro tipo de enriquecimento sem causa também é comum. Imagine que eu receba um Pix de R$ 1 milhão de reais por engano. Eu posso gastar esse dinheiro e nunca devolvê-lo? É claro que não. Só por causa do equívoco de quem efetuou a transferência, eu não sou obrigado a devolver? Sou sim.

Essa é uma outra pretensão restitutória. Na Alemanha, esse tipo de caso denomina-se de enriquecimento sem causa por prestação (Leistungskondiktion). A principal diferença é que, aqui, o titular do direito entrega-o por engano. É um Pix feito por erro.

Já no enriquecimento por intervenção, a parte que se enriquece às custas da outra intervém sobre o direito sem autorização do seu titular. É o caso do mecânico que dá um “rolê” no meu carro.

Há vários outros exemplos interessantes. O que gostaria de ressaltar, todavia, é que, no Brasil, estuda-se muito pouco o enriquecimento sem causa.

ConJur

Rodrigo da Guia, professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), um dos poucos estudiosos do enriquecimento sem causa no Brasil [2], escreveu certa feita que o “desenvolvimento histórico da vedação ao enriquecimento sem causa no direito brasileiro poderia ser sintetizado como a crônica de um instituto desprestigiado”. [3] Infelizmente, é verdade.

Cláudio Michelon, brasileiro que hoje é professor em Edimburgo, atribui o atual cenário a Beviláqua.[4] Inspirado no Código Civil francês, Beviláqua duvidava seriamente do enriquecimento sem causa enquanto categoria jurídica.

Embora à frente de seu tempo em vários tópicos (nos quais fortemente influenciado, sobretudo, pela doutrina alemã) [5], Beviláqua foi anacrônico até para os parâmetros de seu tempo quando o assunto era enriquecimento sem causa.

Em 1892, no célebre arrêt Boudier, a Corte de Cassação francesa já havia reconhecido a existência da pretensão restitutória como figura jurídica autônoma. Sanou a lacuna do Code civil. [6] Mas Beviláqua e o seu projeto de Código Civil de 1900 — que veio a tornar-se o Código Civil brasileiro de 1916 — não incorporaram nada disso.

O silêncio do Código Civil francês — que, infelizmente, inspirou Beviláqua — foi corrigido pela jurisprudência francesa em 1892 e, posteriormente, foi definitivamente consertado na Reforma do Código Civil francês de 2016.

A França evoluiu. O Brasil permaneceu estagnado. O Código Civil de 2002 não promoveu nenhuma reforma substancial nessa matéria.

Essa constatação é surpreendente. O Direito Civil brasileiro foi fortemente influenciado pelo Direito Romano, que dispunha de um sistema sofisticado e extremamente interessante de pretensões restitutórias. [7]

O estado da técnica do Direito Civil brasileiro atual é: nós não apenas temos ignorado boa parte do que se escreve no mundo sobre enriquecimento sem causa, como não aplicamos e não entendemos nem o que os romanos já haviam estabelecido e fixado.

Carlos E. Elias de Oliveira e João Costa-Neto têm escrito sobre o tema insistentemente e defenderam que deve haver uma disciplina de Direito Civil, nas Faculdades de Direito, de ao menos um semestre, dedicada exclusivamente ao Direito do Enriquecimento sem Causa. É o que acontece na Alemanha ou no Reino Unido, por exemplo. [8]

O Superior Tribunal de Justiça, quando invoca o enriquecimento sem causa, é quase que exclusivamente para dosar indenizações por danos morais. [9] Mas esse é um erro grave. Em primeiro lugar, o suposto “princípio do enriquecimento sem causa” não está em nenhum lugar do Código.

Foi inventado pela jurisprudência. Em segundo lugar, em qualquer lugar do mundo, enriquecimento sem causa é uma pretensão diferente da responsabilidade aquiliana. Aplica-se justamente quando não há dano. São coisas diferentes.

Outro exemplo de erro e de confusão conceitual é a Súmula 403/STJ:

“Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais.”

O STJ teve de dizer que cabe indenização mesmo sem haver prejuízo, porque realmente não costuma haver dano nesses casos. Não é caso de indenização, mas de restituição.

Quem usa imagem sem autorização tem de devolver ao titular dessa imagem cada centavo do que ganhou indevidamente. Não era preciso — e nem tecnicamente adequado — criar uma hipótese de dano moral in re ipsa. O certo seria perceber que o problema é outro.

Quem usa a imagem de alguém indevidamente tem que pagar: mas não danos morais, e sim restituição, a título de enriquecimento sem causa.

Não estou propriamente a criticar o resultado a que chega a súmula, mas a forma como se chegou a ele.

Existe um problema de cultura jurídica. Não é mera abordagem diversa. É erro mesmo. O resultado prático até pode ser o mesmo nos casos citados acima. Mas esse tipo de falta de clareza conceitual conduz (ou pode conduzir) a erros graves em outros casos.

Dou três exemplos
No caso Prada, o STJ confundiu totalmente dano moral com enriquecimento sem causa (STJ, REsp 1.730.067/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 15/12/2020).

No caso Coco Bambu v. Camarões — ainda pendente de julgamento no STJ —, discute-se sobre violação de trade dress. Um restaurante acusa o outro de concorrência desleal.

Não posso e não tenho opinião a emitir sobre o caso propriamente dito. Nunca formei posição a respeito. Mas sei que a decisão do TJ-RN — o acórdão recorrido — condenou uma das partes a pagar danos morais à outra (STJ, 4ª Turma, AREsp 1.303.548/RN, Rel. Min. Raul Araújo, pendente de julgamento).

Em princípio, não é de dano moral que se trata. Um restaurante não alegou que a sua imagem foi atacada ou vilipendiada.

O argumento do processo é que um restaurante tomou o conceito-imagem ou o “jeitão” do outro — o trade dress —, copiando-o para fazer concorrência desleal. Teria copiado pratos do cardápio, cooptado empregados, imitado o layout de cores e imagens da fachada e do interior do restaurante, etc.

Não sei se nada disso é verdade. Mas o que se pediu claramente não é dano moral. Ninguém falou mal de ninguém. Não houve violação a direitos de personalidade ou à honra objetiva ou à fama. Teria havido o rapto de um modelo de negócios por concorrência desleal. E esse tipo de conduta, se comprovada, gera enriquecimento sem causa; e não dano moral.

Na Alemanha, o caso seria classificado como enriquecimento sem causa por intervenção. Também seria classificado assim um outro caso julgado pelo STJ: a atriz Giovanna Antonelli teve sua imagem usada por uma farmácia sem a sua autorização. Processou a farmácia.

O TJ-RJ, inicialmente, queria condenar a farmácia a pagar um valor baixo e a título de danos morais (STJ, REsp 1.698.701/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Villas Bôas Cueva, j. 2/10/18). Mas o argumento da atriz — acolhido pelo STJ — foi o seguinte: a farmácia usar seu nome não gera somente um dissabor e um dano psicológico (se é que gera).

O que efetivamente gera é um enriquecimento indevido às custas do prestígio que a atriz construiu ao longo de sua carreira. Se a farmácia queria usar esse prestígio, deveria ter pago o respectivo cachê publicitário. Logo, o principal é fazer a farmácia devolver todo o lucro que obteve pelo uso indevido da imagem da atriz.

Aqui, cabe uma diferença muito interessante, que é um dos grandes temas discutidos no Direito Civil Comparado. No exemplo do mecânico que pegou meu carro, disse que ele deveria pagar o equivalente a um dia de aluguel de um carro análogo em uma locadora do mercado (Localiza, Unidas, Movida, etc.). Parte do Direito inglês chama esse valor de reasonable fee. [10]

Mas, no caso Giovanna Antonelli, a solução não pode ser a mesma. Se a farmácia só pagar o cachê normal da atriz, receberia um incentivo imenso para usar imagens de famosos sem autorização, porque, no fim das contas, “pior do que está não fica”.

Se pagasse só o cachê ou reasonable fee, mesmo após todo o processo, a farmácia só teria de pagar o mesmo valor que já estava obrigada por lei a pagar. Praticando ou não o ilícito, o valor a ser pago seria o mesmo. Haveria um forte incentivo a descumprir a lei.

A solução aqui, portanto, é o chamado disgorgement of profits. A farmácia tem que pagar cada centavo do que enriqueceu às custas da imagem da atriz. O cachê padrão de uma campanha publicitária funciona como piso restitutório.

Mas a atriz tem direito a pegar de volta cada centavo do que a farmácia obteve ilegalmente por causa de sua imagem. Não é fácil calcular esse valor. Por isso, o STJ devolveu o caso para liquidação por arbitramento (perícia).

O legislador brasileiro andaria bem se fixasse parâmetros mais seguros para o valor restitutório, como já fez no art. 210 da Lei de Propriedade Industrial.

O caso Giovanna Antonelli é quase idêntico ao caso “Paul Dahlke”, julgado em 1956 pelo BGH, o STJ alemão. [11]

A relação entre o enriquecimento sem causa e a propriedade imaterial, inclusive marcas, patentes e concorrência desleal, é pormenorizadamente estudada na Alemanha há mais de 100 anos. Um dos artigos seminais sobre o tema foi publicado em 1909 (!) pelo brilhante romanista alemão Fritz Schulz — um dos meus heróis jurídicos. [12]

O Brasil parou no tempo e perpetuou o erro de Beviláqua. Precisamos estudar mais sobre enriquecimento sem causa. A Comissão de Reforma do Código Civil deu alguns passos importantes nesse sentido.

Fixou, por exemplo, o termo inicial dos juros nas pretensões restitutórias. Mas acho que também é preciso promover um diálogo de esclarecimento e uma mudança de cultura jurídica. Nossos juízes e advogados precisam entender que dano moral é uma coisa. Enriquecimento sem causa é outra.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).

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[1] O exemplo pode ser encontrado em nosso manual: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. 3ª ed. São Paulo: Método, 2024, p. 742.

[2] Exceções, dignas de elogio, que, infelizmente, confirmam a regra: MICHELON, Cláudio. Direito Restitutório: Enriquecimento sem causa, pagamento indevido, gestão de negócios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007; NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010; SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil e enriquecimento sem causa: o lucro da intervenção. São Paulo: Atlas, 2012; LINS, Thiago. O lucro da intervenção e o direito à imagem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016; ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: o disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: JusPodivm, 2019; MORAES, Renato Duarte Franco de. Enriquecimento sem causa: e o enriquecimento por intervenção. São Paulo: Almedina, 2021; COSTA-NETO, João; NÓBREGA NETO, Elias C. A quantificação do enriquecimento sem causa por intervenção e o disgorgement of profits no Direito brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024; OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. 3ª ed. São Paulo: Método, 2024 [1. ed. 2022], pp. 741-766.

[3] SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem causa: as obrigações restitutórias no direito civil. 2. ed. São Paulo: RT, 2022 [1. ed. 2018], p. 25.

[4] Cláudio Michelon, Direito Restitutório: Enriquecimento sem causa, pagamento indevido, gestão de negócios (São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007) 19-26.

[5] Jan Peter Schmidt, Zivilrechtskodifikation in Brasilien (Tübingen, Mohr Siebeck, 2009) 43-48, 342-353.

[6] Cass. req. 15 Junho 1892, arrêt Boudier, GAJC, t. 2, 12e éd., no 239.

[7] Cf., e.g., Fritz Schulz, Classical Roman Law (Oxford, Clarendon Press, 1951) 610-619; Vincenzo Arangio-Ruiz, Istituzioni di diritto romano (Napoli, Jovene, 1957) 360 ss.; Max Kaser, Das römische Privatrecht, Das altrömische, das vorklassische und klassische Recht, 2nd edn (München, C.H. Beck, 1971) 592-600; M Talamanca, Istituzioni di diritto romano (Milano, Giuffrè, 1990) 611-614; Schmoeckel, J Rückert e R Zimmermann, Historisch-kritischer Kommentar zum BGB, Schuldrecht: Besonderer Teil §§ 657-853 (vol. III/2, München: C.H. Beck, 2013) 2593-95; Iole Fargnoli, ‘Condictio als Rückforderungsklage’ in U Babusiaux et al, Handbuch des Römischen Privatrechts (vol. 2, Tübingen, Mohr Siebeck, 2023) 2008-16.

[8] Cf. J Costa-Neto e Carlos E E de Oliveira, Direito Civil, 3º ed (São Paulo, Método, 2024) 743.

[9] STJ, Quarta Turma, AgInt no AREsp 868.437/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 16/3/2017, DJe 28/3/2017; STJ, Terceira Turma, AgInt no REsp 1.801.537/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 30/9/2019, DJe 3/10/2019; STJ, Quarta Turma, AgInt no REsp 1.406.227/PR, Rel. Min. Marco Buzzi, j. 4/5/2020, DJe 7/5/2020.

[10] Cf. referências: J Costa-Neto e Carlos E E de Oliveira, Direito Civil, 3º ed (São Paulo, Método, 2024) 741-766.

[11] BGH 8.5.1956, BGHZ 20, 345.

[12] Fritz Schulz, ‘System der Rechte auf den Eingriffserwerb’  (1909) 1 Archiv für die civilistische Praxis 1.

Autores

  • é professor doutor de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP).

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